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Analogon físico, analogon psíquico e o caso da imagem mental

3.2 CARACTERÍSTICAS DA CONSCIÊNCIA IMAGINANTE

3.2.3 Analogon físico, analogon psíquico e o caso da imagem mental

Há, no mundo exterior, uma série de objetos que se costuma chamar de imagens, tais como um retrato, uma caricatura, um reflexo no espelho, entre outros. No entanto, tais objetos não podem ser ditos “imagens” tal qual a concepção de Sartre. A imagem é uma consciência, é relação a um objeto e não pode ser confundida ou reduzida a um simples objeto, a uma simples coisa. O que Sartre procurou mostrar, ao considerar tais objetos como integrantes de uma “família da imagem”, foi a relação existente entre estes objetos e a consciência imaginante.

Ao querer lembrar o amigo Pierre, como é possível fazer surgir suas características de modo a fazê-lo presente ou tê-lo em imagem? De saída, Sartre aponta três possibilidades através das quais uma imagem de Pierre pode ser produzida: uma representação mental, um

retrato e uma caricatura. Nos três casos, há uma intenção que visa um objeto, e visa-o sobre o “terreno da percepção”. O que se quer é tornar presente um objeto ausente: Pierre. Mas como Pierre não está aqui “em carne e osso” e por isso não se consegue percebê-lo diretamente, faz- se uso “de uma certa matéria que age como analogon, como um equivalente da percepção” (Im, p.42, grifo do autor).

A caricatura pode servir de objeto para a percepção tanto quanto o retrato. Um e outro são “coisas” e sua “matéria pode ser percebida por si mesma” (Im, p.42). No caso da representação mental ou imagem mental, há uma dificuldade maior de determinar sua matéria. O que é certo, porém, é que qualquer que seja a matéria, ela “não ganha sentido senão através da intenção que a anima” (Im, p.42). E acrescenta que a imagem mental talvez nem pudesse existir fora da intenção; mas, mesmo outras imagens – aquelas que se utilizam de objetos exteriores – não poderiam assumir a função de imagem sem uma intenção que lhes conferisse tal designação. Há ainda, uma “diferença capital: uma foto funciona em primeiro lugar como objeto [...]. Uma imagem mental se entrega imediatamente como imagem” (Im, p.44-45). A questão é que, em qualquer dos casos, trata-se de “fazer presente” um objeto que não está aqui. Assim, há, “em primeiro lugar, uma intenção dirigida sobre um objeto ausente, mas esta intenção não é vazia: ela se dirige sobre um conteúdo [...] que deve apresentar alguma analogia com o objeto em questão” (Im, p.45). O analogon seria, então, segundo Sartre, este elemento que “preenche” a intenção da consciência imaginante, de modo que se a idéia é visar o rosto de um ente querido, não adianta dirigir-se para qualquer objeto. São necessários “determinados” objetos, aqueles que têm alguma relação com a pessoa que se quer retomar (em imagem). A foto, a caricatura e a representação mental - para falar apenas dos objetos citados aqui - podem servir “como representantes do objeto ausente, sem, todavia suspender essa característica dos objetos de uma consciência imaginante: a ausência” (Im, p.45, grifo do autor).

Um trecho retirado do livro De Psychiatrishe Patient do psiquiatra holandês J.H. Van den Berg ilustra a noção de analogon sartriana:

É inverno. A noite está caindo e eu me levanto para acender a luz. Olhando para fora, vejo que começou a nevar. Tudo está coberto pela neve brilhante, que está caindo silenciosamente do céu encoberto. A gente caminha sem ruído ao longo da minha janela. Ouço alguém sacudir a neve dos seus pés. Esfrego as mãos e aguardo a noite com satisfação, pois, faz alguns dias,

telefonei a um amigo convidando-o a vir ter comigo esta noite. Dentro de

uma hora estará batendo à minha porta. A neve lá fora parece que dará a sua visita um caráter ainda mais agradável. Ontem comprei uma boa garrafa de

vinho, que coloquei a distância apropriada do fogo.

Sento-me à mesa para responder algumas cartas. Meia hora mais tarde, toca o telefone. É meu amigo, a dizer que não poderá vir. Trocamos algumas

palavras e marcamos novo encontro para outro dia. Quando torno a colocar o fone no gancho, o silêncio do meu quarto ficou mais profundo. As próximas horas se parecem mais longas e mais vazias. Coloca mais uma acha de lenha no fogo e volto à minha escrivaninha. Dentro de alguns minutos estou absorto num livro. O tempo passa lentamente.

Ao levantar os olhos por um momento, para refletir sobre um trecho pouco claro, a garrafa, perto do fogo, chama a minha atenção. Percebo mais uma

vez que meu amigo não virá e volto à minha leitura. (VAN DEN BERG,

2000, p.33, grifo nosso)

A garrafa de vinho comprada para a ocasião da visita do amigo é um exemplo de analogon ou de um elemento material que auxilia a formação da imagem. A garrafa estava, desde o início, intimamente ligada à situação que se realizaria. Ocorre que o amigo que se faria presente em breve, fez-se, subitamente, ausente. O momento aguardado com satisfação esvaiu-se e perdeu-se em meio à leitura do livro que se seguiu à ligação do amigo. No entanto, pouco tempo depois, a ausência do amigo foi retomada a partir de um elemento material - a garrafa de vinho. Aquela garrafa ali perto do fogo, encostada na lareira, ao ser contemplada, serviu de matéria à imagem posteriormente formada. Naquele instante, a ausência do amigo se fez presente e provocou afetação. O amigo é colocado como “não estando ali” e por isso alcançado como imagem, através ou por intermédio da garrafa. Deste modo, na relação imaginante um objeto ausente é colocado como presente ao mesmo tempo em que é posto como ausente; ou seja, o amigo que não estava ali foi lembrado, foi retomado, se fez presente justamente pela sua ausência. E, no entanto, em nenhum momento, deixou de ser concretamente ausente para a consciência que o colocou, pois a consciência imaginante, que é não-tética (de) si, não ignora, jamais, seu movimento, ela sabe que o amigo não estava ali.

Além de posicionar um objeto como ausente, a consciência imaginante pode, também, posicionar um objeto como inexistente. É o caso de um monstro imaginado por uma criança ou mesmo um marciano imaginado por um adulto. Em qualquer dos casos, os objetos são colocados como inexistentes, pois não existem, de fato, na realidade; e os sujeitos que produzem tais imagens, sabem que tais objetos não podem existir. E, precisamente aí reside a contradição: não existem na realidade, mas existem em imagem, ou seja, existem para mim. A partir destas tantas considerações, Sartre sintetizou uma definição:

a imagem é um ato que visa na sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente através de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá propriamente, mas a título de ‘representante analógico’ do objeto visado (Im, p.46, grifo do autor)

do mundo mental”, pois “não há um mundo das imagens e um mundo dos objetos. Mas todo objeto que se apresenta à percepção exterior ou que aparece ao senso íntimo, é suscetível de funcionar como realidade presente ou como imagem” (Im, p.46-47). Isso quer dizer que o mundo imaginário e o mundo real são povoados pelos mesmos objetos e o que os diferencia, em última instância, “é uma atitude de consciência” (Im, p.47).

De acordo com o interesse deste trabalho, Sartre não será seguido em sua vasta descrição da “família da imagem” e passar-se-á diretamente para a (continuação da) caracterização da imagem mental. Tal descrição é relevante na medida em que a imagem mental – que tem uma matéria psíquica – é objeto direto de estudo da psicologia e por isso, servirá de auxílio na empreitada de compreender o psíquico.

O caso da imagem mental não é diferente dos outros tipos de imagens, pois aqui também se trata de uma intenção que vem “animar uma certa matéria para fazer dela a representação de um objeto ausente ou inexistente. A matéria não é jamais o análogo perfeito do objeto representado: um certo saber vem interpretá-la e preencher suas lacunas” (Im, p.104-105, grifo do autor). Diferentemente da imagem formada a partir de uma coisa, a imagem mental possui um conteúdo psíquico, sem exterioridade. Isso quer dizer que “não vemos uma imagem mental” (Im, p.109, grifo do autor), pois não ela não pode ser localizada no espaço, entre as outras coisas, tal como um objeto físico. Pode-se dizer, então, que “a imagem mental visa uma coisa real, que existe entre as outras, no mundo da percepção, mas visa esta coisa através de um conteúdo psíquico” (Im, p.110, grifo do autor). E este “conteúdo psíquico” deve atender à mesma lei que qualquer outro objeto-em-imagem, ou seja, necessita constituir-se, de saída, como objeto para consciência imaginante, afirmando, assim, sua transcendência. Agora, a matéria da imagem mental tem necessidade - diferentemente da matéria de outras imagens - de “ser já constituída em objeto pela consciência” (Im, p.110) ao que Sartre chamou de “transcendência do representante”. E aqui é preciso atentar ao risco de cair novamente na “ilusão da imanência”, pois “é a coisa representada que é exterior e não seu analogon mental. Em suma, não se pode atribuir a exterioridade e as qualidades sensíveis da coisa ao conteúdo psíquico, pois ele representa tais qualidades, porém ao seu modo.

Cabe destacar aqui uma referência à discussão com Husserl travada no final de L’Imagination, a parte crítica do estudo sobre a imaginação. É que Sartre estava preocupado em distinguir a percepção e a imaginação e concluiu que as intenções não eram suficientes para diferenciá-las. Era preciso que as matérias também fossem dessemelhantes e isso por causa da imagem mental que possuía uma matéria (hýle) puramente psíquica. Esta hýle, animada por uma intenção, serviria de analogon para a formação de uma consciência de algo-

em-imagem, sendo este objeto uma transcendência, como qualquer objeto de uma consciência. É que uma hýle material, que tem um equivalente físico, poderia servir de matéria tanto a uma percepção quanto a uma imaginação, daí a diferença na intenção, neste caso, ser suficiente para distingui-las. Uma fotografia é um exemplo simples e claro a respeito disso, já que se pode perceber/observar a foto e também produzir uma imagem da pessoa através da foto. O caso da imagem mental, porém, que possui uma matéria sem exterioridade, revela o grau de espontaneidade que a consciência imaginante assume, não restando nenhum resíduo a ser descrito por uma suposta consciência de segundo grau. Assim, devido ao seu caráter espontâneo, a imagem mental constitui e conserva, ela mesma, seu objeto; e sua “hýle [...] por ser puramente psíquica, não resiste à reflexão” (MOUTINHO, 1995, p.122), tal como explica o existencialista:

[...] a descrição reflexiva não nos ensina diretamente sobre a matéria representativa da imagem mental. Pois, quando a consciência imaginante se dissipa, seu conteúdo transcendente se dissipa com ela; não resta nenhum resíduo que possa ser descrito, estamos diante de uma outra consciência sintética, que não tem nada em comum com a primeira [...]. É preciso escolher: ou formamos a imagem, e aí só conhecemos o conteúdo através de sua função de analogon [...] e apreendemos nele as qualidades da coisa visada; ou então não formamos a imagem, e aí também não temos mais o conteúdo, e não sobra nada (Im, p.110).

A consciência imaginante é, então, uma espontaneidade que produz e conserva seu próprio objeto. Isso indica a transcendência da hýle da imagem mental por oposição à hýle da percepção, que é imanente; de um lado, “uma síntese passiva para a percepção” e, de outro, “uma síntese ativa para a imagem”. Assim, a distinção das intenções e das matérias esclareceria, por ora, o problema que poderia ser resumido, segundo Moutinho (1995, p.126), na “recusa do caráter sensível da hýle da imagem mental ou [...] recusa da tese do preenchimento”. Sim, pois se a imagem é, ela mesma, uma consciência, como poderia “preencher” uma consciência vazia?