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O fenômeno de quase-observação

3.2 CARACTERÍSTICAS DA CONSCIÊNCIA IMAGINANTE

3.2.2 As quatro características definidoras da imagem

3.2.2.2 O fenômeno de quase-observação

perceber, pensar41 e imaginar. Ao perceber um objeto se está em uma atitude de observação: se está diante do objeto, pode-se vê-lo em seus diferentes perfis, porém não todos de uma só vez. Seus lados são apreendidos sucessivamente, através de vários atos perceptivos. O cubo percebido – exemplo usado por Sartre – pode ser percebido somente a partir de três lados de cada vez, nunca mais do que isso. É preciso, portanto, “faire le tour”, mas sem a intenção de esgotar o objeto, pois “a percepção de um objeto é um fenômeno com uma infinidade de faces” (Im, p.23) que realiza lentamente o aprendizado acerca do objeto. Assim, é “esta infinidade de relações que constituiu a essência mesma de uma coisa” (Im, p.25) e o objeto percebido – enquanto coisa - nada mais é do que a síntese destas múltiplas aparições.

Pensar um objeto é tomá-lo através de um conceito. O conceito de cubo é apreendido inteiro: “eu penso seus lados e seus oito ângulos de uma vez” (Im, p.24, grifo do autor). Isso ocorre porque ao pensar, a consciência toma seu objeto abstratamente, em conceito, em idéia; ou seja, se está no centro da idéia, ela se dá “inteira de uma vez” (Im, p.24). Isso quer dizer que se pode pensar “essências concretas num só ato de consciência” (Im, p.24), sem ter que restabelecer aparências ou fazer qualquer aprendizado. Daí o porquê de não ser possível perceber um pensamento e nem pensar uma percepção. Em suma, pensar é um “saber consciente de si mesmo que se coloca de uma vez no centro do objeto” (Im, p.24).

Imaginar é ser consciência de um objeto-em-imagem, lembrando que a consciência imaginante visa um objeto exterior, tal qual qualquer consciência e que este objeto se dá à consciência como imagem. Tal como na percepção, o objeto se dá por perfis só que não se tem “mais necessidade de dar a volta”. É que a imagem “se dá imediatamente pelo que ela é” (Im, p.24), ou seja, “na imagem, o saber é imediato” (Im, p.25). Assim, na imagem, tem-se somente aquilo que se coloca nela, nada além, nenhum excesso. Na percepção, diferentemente, os objetos estão sempre “carregados”, mostrando mais do que é possível apreender de uma única vez. E isso ocorre porque os objetos do mundo da percepção se dão através de uma infinidade de relações que mantém com as outras coisas. Por isso, há “algo de excessivo no mundo das ‘coisas’: há, a cada instante, infinitamente mais do que nós podemos ver; para esgotar a riqueza de minha percepção atual, é preciso um tempo infinito” (Im, p.25- 26). Em contrapartida, “os diferentes elementos de uma imagem não estabelecem nenhuma relação com o resto do mundo” (Im, p.26), o que confere à imagem uma “pobreza essencial”. Sim, pois, na medida em que a imagem se dá inteiramente naquilo que ela é, de uma única

41 Do francês concevoir, de acordo com o original L’Imaginaire (1986). Sartre refere-se ao fenômeno concevoir

vez, não restam perfis a serem vistos; daí a pobreza – a carência de relações - constitutiva da imagem. O objeto-em-imagem é, portanto, um tipo de objeto que só existe na medida em que uma consciência o intenciona, enquanto que o objeto percebido “excede constantemente a consciência” (Im, p.27) e conserva sua opacidade, sua independência e sua inesgotabilidade frente a ela. Tem-se, então, que “os objetos do mundo das imagens não poderiam de forma alguma existir no mundo da percepção; não preenchem as condições necessárias” (Im, p.26). Ora, embora a imagem dê em bloco tudo o que ela possui, Sartre afirma que seu objeto

se apresenta como devendo ser apreendido em uma multiplicidade de atos sintéticos. Por isso e por seu conteúdo guardar como que um fantasma de opacidade sensível, por não se tratar nem de essências nem de leis gerais, mas de qualidade irracional, ele parece ser objeto de observação (Im, p.28).

No entanto, não é mais do que uma atitude de quase-observação justamente porque quando se imagina se está em posição de observação. A consciência se posiciona frente ao objeto, mas este é estático, fixo, sem tempo e espaço, dado em bloco. Deste modo, a consciência e o objeto-em-imagem, na medida em que são contemporâneos, produzem este ato de observação que não ensina nada, que não traz nada novo. O que existe em imagem é o que está aí, é o que a consciência imaginante põe como objeto num movimento único. Assim, sabe-se o que tal objeto contém, afinal, foi a própria consciência que o produziu. Diferentemente da percepção que é obrigada a confrontar a inesgotabilidade de seu objeto, pois este possui uma inércia que garante sua permanência para além da consciência que o intenciona.

O exemplo do livro utilizado por Sartre é bastante ilustrativo, pois quando se imagina a página de determinado livro se está diante do livro, em frente a ele, observando-o, na atitude de leitor. No entanto, a imagem do livro se dá de uma maneira fixa e não exige que seja feita, efetivamente, a leitura. Pois, na realidade, já se sabe o que está escrito naquela página; o livro é aquele livro, de capa dura e amarelada, que conta aquela instigante história, lida há muitos anos atrás. Não há dúvidas acerca de que livro se trata, pois ele foi lido, vivido no passado. O que ocorre é que, no momento presente, o livro lido é retomado através da consciência imaginante.

Ao se deparar com uma praça, em meio à caminhada, no centro da cidade, é possível parar e observá-la. Reparar nas árvores, nos bancos, na grama ainda úmida em função do sereno caído na noite anterior. Poder-se-ia dar inúmeras voltas em torno da praça, analisando- a (percebendo-a), e, de modo algum, seria presumível esgotá-la; a cada volta, numerosos detalhes não vistos anteriormente seriam notados. Em contrapartida, imaginar uma praça é tê-

la inteira de uma única vez, é poder afirmar que é tal praça, localizada em tal lugar, com tais características. E isso porque “não se pode apreender nada de uma imagem que já não se saiba antes [...] e nenhuma observação, por mais prolongada que seja, poderia dar-me o conhecimento que me falta” (Im, p.27). A imagem, portanto, “não se prende às propriedades materiais dos objetos reais, não segue o determinismo do mundo natural” (SCHNEIDER, 2002, p.245). Seu modo de aparecer é espontâneo, imediato e não tem a necessidade de atender às exigências de qualquer tipo de arranjo prévio. O objeto-em-imagem é, portanto, contemporâneo da consciência que imagina, ou seja, existe enquanto existir a consciência que o intencionou e do modo que esta o colocou, sem nada acrescentar. A imagem caracteriza-se por uma “pobreza”, pois na medida em que é carente de “mundo”, exclui de seu espectro a incerteza, o risco, a espera. O mundo das imagens, portanto:

é um mundo onde nada acontece. Eu posso, a bel-prazer, fazer evoluir em imagem este ou aquele objeto [...]; não se produzirá jamais a menor defasagem entre o objeto e a consciência. Nenhum segundo de surpresa; o objeto que se move não é vivo, não precede jamais a intenção. Mas também não é inerte, passivo, “agido” de fora, como uma marionete: a

consciência não precede jamais o objeto, a intenção se revela nela mesma

ao mesmo tempo que ela se realiza, na e por esta realização (Im, p.29-30, grifo do autor).

A imaginação é, então, “uma certa consciência que se dá um certo objeto” (Im, p.28), sendo que este objeto compreende uma intenção e um saber:

a intenção está no centro da consciência: é ela que visa o objeto, isto é, que o constitui pelo que ele é. O saber, que está indissoluvelmente ligado à intenção, especifica que o objeto é este ou aquele, acrescenta sinteticamente determinações. [...] Meu saber é um saber do objeto, um saber tocando o objeto (Im, p.28-29, grifo do autor).

A intenção da consciência imaginante “constitui” o objeto pelo que ele é, mas somente se dá junto com um saber que determina de que objeto se trata. O saber constitutivo da imagem advém de experiências anteriores vividas pelo sujeito - seu passado - e é sempre saber de um sujeito, ou seja, é pessoal, singular. Ao imaginar uma boneca, não imagino uma boneca qualquer, e sim aquela boneca de cabelos longos castanhos feitos de lã, com pernas e braços roliços feitos de borracha, com um vestido branco com pequenas flores vermelhas, sem sapatos, à qual costumava brincar na companhia de minhas primas e da qual gostava e cuidava imensamente. Outro sujeito que imagine uma boneca, terá como imagem a sua boneca, com determinadas qualidades e características e que, certamente, serão diferentes daquelas que a minha boneca possuía. Fica expressa a singularidade de cada um, a individualidade de cada história e como tal conjuntura altera o saber do qual se lança mão

para constituir as imagens. Além disso, pode-se dizer que a boneca é experimentada “de fora” e “de dentro” ao mesmo tempo. “De fora” porque a intenção visa um objeto concreto e sensível que é a boneca de “carne e osso”, mas, de fato, ela é dada em imagem, em sua ausência. E “de dentro” porque o saber – que é a história de relação com a boneca – se junta à intenção e possibilita ao sujeito “viver” a presença da boneca como se ela estivesse aqui. Sem dúvida, há um aí um paradoxo, afirma Sartre, mas reside justamente neste ponto a razão de “imagens extremamente pobres e truncadas [...] poderem ter para mim um sentido rico e profundo” (Im, p.29).