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Husserl, intencionalidade e eu transcendental

3.1 A CONCEPÇÃO SARTRIANA DO PSÍQUICO

3.1.2 Husserl, intencionalidade e eu transcendental

Do encontro com Husserl e sua fenomenologia26, Sartre extraiu o método que guiou

suas pesquisas, a idéia de “volta às coisas mesmas” e, em especial, a noção de intencionalidade que serviu de fio condutor para o desenvolvimento de seu projeto filosófico. Já que, “contra a filosofia digestiva27 do empiriocriticismo, do neokantismo, contra todo ‘psicologismo’, Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na consciência” (SI, p.55). Ora, a árvore vista está “no lugar exato em que está: à beira da estrada, em meio à poeira, só e curvada sob o calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Ela não conseguiria entrar em suas consciências, pois não é da mesma natureza que elas” (SI, p.55-56). Assim, na medida em “que Husserl vê na consciência um fato irredutível” (SI, p.56), devolve a ela sua transparência, seu modo de ser não-substancial; a consciência “não é nada a não ser o exterior de si mesma [...] essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância”

26Este assunto já foi abordado em maiores detalhes no capítulo 2.1 deste trabalho.

27A expressão “filosofia alimentar” ou “digestiva” é utilizada por Sartre como referência à “ilusão comum ao

realismo e ao idealismo, segundo a qual conhecer é comer” (SI, p.55); assim, as coisas seriam conteúdos de consciência, seriam digeridas pelo “espírito” e transformadas em substância (consciente) ao modo dos alimentos ingeridos.

(SI, p.56). E foi a partir da intencionalidade que Sartre pode afirmar “que o eu [je] se acha excluído da imanência e que seu ser se distingue radicalmente do ser da consciência” (MOUILLIE, 2000, p.18, tradução nossa).

Para resolver o problema da existência de fato do eu, Sartre usou o procedimento fenomenológico adotado por Husserl: a intuição28. Sim, pois este acreditava que “todo ente teria a possibilidade de princípio de ser intuído simplesmente como aquilo que ele é e, em especial, de ser percebido numa percepção adequada que o daria a ele mesmo em carne e osso” (HUSSERL, 2006, p.102). O fenomenólogo estaria interessado em uma “ciência rigorosa”, em um método que tornasse viável o acesso à coisa mesma ou à coisa “no original”. Em meio aos questionamentos típicos da modernidade, Husserl debruçou-se sobre o problema da viabilidade do conhecimento ou, melhor expresso, nas palavras de Moura (2007, p.9): “como a subjetividade pode ter acesso à transcendência? Como o sujeito pode se reportar a um mundo de objetos? É com a formulação desta questão que nasce a fenomenologia”.

A “inauguração” da fenomenologia ocorreu com a publicação da obra Investigações Lógicas (1900) que suplantou o psicologismo e também pincelou os primeiros traços daquilo que seria o método fenomenológico (GOTO, 2007). Nesta etapa de suas pesquisas, Husserl estava preocupado, entre tantos outros aspectos, com o problema da unificação das vivências ou em como garantir a unidade dos “conteúdos” da consciência, já que via que eles variavam a cada vez diante de sujeitos que também alteravam seu ponto de vista. Nas Investigações, segundo Alves de Souza (2000, p.41), “Husserl pergunta pelo ‘eu puro’, um ponto unitário de referência constante em todo conteúdo de consciência”, mas afirma não encontrar esse “eu primitivo”, demonstrando aí sua recusa a um eu unificante, subjacente a cada consciência. Tese essa mantida, ainda, em 1905, nas Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo, onde a unidade da consciência é tida como constituída no tempo, pelo próprio fluxo da consciência: “aquilo que nas Investigações Lógicas chamamos ‘ato’ ou ‘vivência intencional’ é sempre, portanto, um fluxo em que se constitui uma unidade temporal imanente” (HUSSERL, 1994, p.102), ou seja,

cada objeto individual [...] dura e dura necessariamente, a saber, ele está continuamente no tempo e é idêntico neste ser contínuo, o qual pode também ser visto como processo. Inversamente: o que está no tempo está continuamente no tempo e é a unidade do processo que traz

28Intuição é entendida como um “tipo de conhecimento ditado predominantemente pelos sentidos e que não

envolve, portanto, qualquer cogitação prévia ou pensamento refletido” (Cabral e Nick, 2006, p.175). E ainda, segundo Abbagnano (2000, p.582), a intuição “é uma relação com o objeto, caracterizada: 1º pela imediação e 2º pela presença efetiva do objeto [...] a intuição é considerada uma forma de conhecimento privilegiado”.

inseparavelmente consigo a unidade do duradouro no processo (HUSSERL, 1994,p.100).

Até aqui se vê claramente que Husserl não recorreu ao “poder sintético” de um eu para justificar a “unificação subjetiva das consciências”29, ao contrário, assegurou que “o fluxo da consciência constitui sua própria unidade” (HUSSERL, 1994, p.105). No entanto, pouco mais tarde, em 1913, nas Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica, em especial no tomo um, Husserl aprofundou seu método e desenvolveu o conceito de redução fenomenológica. Ao colocar entre parênteses o mundo natural e o eu empírico, desvendou a região da subjetividade transcendental ou o eu puro, conforme a explicação que segue:

depois que executamos essa redução, não encontramos o eu puro em parte alguma do fluxo de diversos vividos [...]. O eu parece estar ali de maneira constante e até necessária [...]. Ele faz parte, ao contrário, de cada vivido [...]. O eu puro [...] parece ser algo necessário por princípio e, enquanto absolutamente idêntico em toda mudança real ou possível dos vividos, ele não pode, em sentido algum, ser tomado por parte ou momento real dos próprios vividos (HUSSERL, 2006, p.132, grifo do autor). A partir das Idéias I, o eu transcendental se tornou o “novo centro de gravidade das vivências” (ALVES DE SOUZA, 2000), já que ao atingir o “eu absoluto” se encontraria o campo “da experiência genuinamente filosófica” (FRAGATA, 1959, p.112) ou o terreno apodíctico tão almejado por Husserl. No desejo de construir uma filosofia como “ciência de rigor”, Husserl estava certo de que a busca por “uma solução segura sobre a essência do conhecimento” (FRAGATA, 1959, p.88) deveria ser levada às últimas conseqüências e o eu transcendental seria a radicalização máxima a ser alcançada. No entanto, para Sartre, o caminho e as conclusões de Husserl foram, pouco a pouco, distanciando-se daquilo que era seu projeto filosófico. Assim, fazendo uso do que considerou serem os “ganhos” alcançados pela fenomenologia e dispensando os “equívocos”, iniciou a crítica já na discussão sobre a consciência e o ego, conforme se descreve a seguir.