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Analogon, afetividade e movimento

3.2 CARACTERÍSTICAS DA CONSCIÊNCIA IMAGINANTE

3.2.4 Analogon, afetividade e movimento

Considerando que a matéria da imagem mental – que é psíquica – não deixa nenhum resquício que se possa descrever fenomenologicamente, Sartre afirma ser necessário abandonar este método e seguir pelo terreno da psicologia experimental. Ora, mas o que isso significa? Sem dados certos para descrever, não há meio de determinar sobre a matéria da imagem mental, salvo através da formulação de hipóteses e posterior confirmação pela

observação e pela experiência. Daí o porquê de Sartre anunciar, a partir daqui, a entrada no domínio do provável.

A imagem se define por sua intenção e esta intenção se junta um saber que é, também, uma estrutura ativa da imagem. A intenção visa o objeto e o saber fornece determinações ao objeto. O saber enquanto aspecto constitutivo da imagem é tão relevante que se pode dizer que “uma imagem não pode existir sem um saber que a constitui” (Im, p.116). Dizer que o saber é parte integrante de uma consciência imaginante é ratificar a “pobreza essencial” da imagem e sua ocorrência como fenômeno de quase-observação. Ora, se o saber vem junto com a intenção, nada de novo pode surgir, tudo já é conhecido; observa-se o objeto (em imagem), mas não se aprende nada; afinal, foi uma intenção e um saber de um sujeito concreto e singular que produziu tal imagem. O saber, porém, pode também ser encontrado em estado puro, livre. Daí Sartre falar em um processo de degradação do saber que seria a transformação do saber livre (estado de sentido puro) em saber imaginante (que constituiu a imagem). Por exemplo, ao visar Pierre-em-imagem, ele aparece em suas qualidades gerais, o “Pierre em geral”, que nada mais do que a síntese de suas aparições passadas. Assim, é como se a intenção fosse “portadora” de conhecimentos que permitiriam visar Pierre tal como ele é de fato.

O analogon serve de “representante analógico” para a formação da imagem e constitui-se de dois elementos principais: “o analogon cinestésico42 engendrado pelos movimentos cinestésicos unificados num ato sintético pelo saber, e o analogon afetivo, transcendente” (BERTOLINO, 1979, p.39). Assim, “o substituto afetivo, transcendente, mas não exterior, dá-nos a natureza do objeto naquilo que ele tem de mais pleno e inexprimível; o substituto cinestésico, transcendente e exterior, permite-nos ‘exteriorizar’ o objeto em imagem” (CASTRO, 2006, p.185). A afetividade e os movimentos (cinestésicos) realizam, portanto, o papel de analogon para a consciência imaginante, sendo que o caráter afetivo, em especial, ajuda a explicar as emoções que ocorrem quando se imagina algum objeto. Pode-se dizer, então, que na imaginação “um saber reflexivo precede o sentimento e o incorpora [...] determinando uma conduta que gera o objeto-em-imagem, destinado a alimentar aquele mesmo sentimento. Tudo fica mais fácil, porém, pobre e inútil [...]” (BERTOLINO, 1979, p.42). Ela é, assim, entendida como “uma espontaneidade criadora, pois ela inventa seu objeto como lhe aprouver, a partir de uma síntese de elementos afetivos (o valor e o significado que as coisas têm para mim) e de elementos de meu saber (conhecimentos,

42Cinestesia pode ser entendida como o “sentido que produz o conhecimento dos movimentos do corpo ou de

experiências que possuo sobre o objeto)” (SCHNEIDER, 2002, p.246, grifo da autora). Um exemplo pode auxiliar a compreensão. Imagino Letícia. Ela tem cabelos curtos e escuros, olhos castanhos e lábios finos. Suas sobrancelhas muito escuras e levemente curvadas dão a impressão de uma mulher séria, talvez sisuda. No entanto, basta trocar com ela uma palavra para receber dela um sorriso e assim ter a certeza de sua doçura. Mas Letícia não está aqui. Aliás, não a vejo há meses. Tenho comigo um cartão com apenas algumas linhas escritas por ela, à mão. Por um instante, ao relê-las, a saudade que sinto dela diminui e quase consigo ouvir sua voz falando para mim aquelas palavras. Por um instante, estou de volta aos ótimos momentos que passamos juntas. Mas, subitamente, alguém entra no quarto e percebo que Letícia não está aqui, que continua há quilômetros de distância. Neste momento, a saudade parece ficar mais forte. Aqui, neste exemplo, utilizando-se de um objeto-coisa, que serviu de analogon, pude retomar uma amiga querida que está ausente. Neste movimento, minha consciência imaginante produziu uma imagem de Letícia carregada de afetividade, já que na minha história de relação com ela vivi momentos de alegria, descontração e satisfação. Tal passado fornece dados para a imagem que formo, hoje, de minha amiga, já que não posso vê-la nesse momento, tal como desejo. E isso porque há uma materialidade que se impõe entre nós - ela está há mais de mil quilômetros de distância - o que nos impede de nos vermos pessoalmente com facilidade. Posso, porém, através da imaginação, encurtar tal distância, fazer aparecer Letícia em minha casa. Ocorre que, neste caso, diferente de quando ela esteve aqui, não conversaríamos de fato; eu apenas conseguiria reproduzir em imagem uma das conversas que já tivemos. Seria uma espécie de repetição, mas que possibilitaria retomar o sentimento de satisfação vivido durante nosso encontro. E como fica claro, também, neste exemplo, só podemos separar o saber, a afetividade e os movimentos de maneira abstrata, didática; porque, de fato, a imagem é uma síntese e não pode ser reduzida a uma soma de elementos.

A imaginação envolve, ainda, um certo fascínio, um encantamento diante do objeto, de modo que o sujeito que imagina encontra-se em uma espécie de deslumbramento frente ao objeto, ou seja, crê no objeto mesmo que este não se mostre coerente com a materialidade. É que a realidade ou concretude do objeto-em-imagem é tal que se acredita, inclusive, poder agir sobre o objeto; mas não, está-se diante de uma ilusão; “o objeto visível está bem aqui, mas não posso vê-lo – é tangível e não posso tocá-lo – é sonoro e não posso ouvi-lo” (Im, p.174). Essa “disposição” do sujeito que imagina não ocorre aleatoriamente, mas justamente porque o objeto-em-imagem não presta contas ao determinismo das coisas e sim à espontaneidade da consciência. É por isso que quando o sonho – sonhar é um ato de

imaginação – traz a imagem de um ladrão tentando arrombar a casa, fica-se assustado; sabe-se que a porta está chaveada e que para abri-la seria necessária uma chave; mas, no sonho, tal materialidade não tem validade, pois se está mergulhado na certeza do ladrão dentro de casa. Esse caráter mágico da imagem é o que possibilita que a necessidade da chave seja desconsiderada ou mesmo a concretude do próprio homem que quer entrar, já que ele não pode simplesmente atravessar a porta. A afetação que resulta de um determinado ato de imaginação não pode, portanto, ser negligenciada. Embora se tenha o conhecimento de que sem a chave não se pode abrir a porta, o ladrão imaginado é assustador. E isso porque o comportamento que se assume diante do imaginado, correlativamente ao seu objeto, não toma o real como base.

Em síntese, ao estudar a imaginação, Sartre pretendeu reafirmar o papel fundamental que ela exerce na vida psíquica:

bem longe de negar [...] a especificidade da imagem, nós lhe conferimos uma dignidade maior, já que não fazemos dela uma sensação renascente, mas, pelo contrário, uma estrutura essencial da consciência – mais ainda: uma função psíquica. Correlativamente, afirmamos a existência de uma classe especial de objetos da consciência: os objetos imaginários. [...] Para nós, a imagem representa um certo tipo de consciência absolutamente independente do tipo perceptivo e [...] um tipo de existência sui generis para seus objetos. Ao mesmo tempo, [...] a imaginação [...] retoma uma importância que não se poderia exagerar, como uma das quatro ou cinco grandes funções psíquicas (Im, p.183).

O processo imaginário cumpre, portanto, um importante papel para o funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo em que as consciências imaginantes permitem ao sujeito ultrapassar, momentaneamente, a sua situação atual em direção a um futuro diferente, podem, também, abrir caminho para um mergulho mais profundo no mundo imaginário. Assim, tendo esclarecido como se constituem as imagens em geral, a função atribuída ao imaginário dependerá da condição singular de apropriação de tais experiências, podendo o sujeito se complicar psicologicamente ou não. É que o movimento de apropriação das experiências vividas exige um distanciamento, um ato de segundo grau. A partir deste ato, o sujeito pode se localizar, se situar frente ao que viveu. Muitas vezes, porém, o sujeito não tem condições de fazer tal movimento ou o faz equivocadamente; é que ele pode não conseguir integrar a experiência de imaginação ao conjunto de sua vida. Aí, pouco a pouco, ele vai se absorvendo no imaginário e perdendo a realidade, o determinismo das coisas. Geralmente é o que ocorre quando um sujeito está diante de um mundo demasiado difícil e se experimenta sem condições de enfrentá-lo. Enquanto no mundo real ele seria exigido e teria que agir, tomar

uma posição, no “mundo imaginário” esta necessidade desaparece.

4 O IMAGINÁRIO