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2.2 REESCREVENDO A ONTOLOGIA A PARTIR DA FENOMENOLOGIA

2.2.3 O homem como em-si-para-si

Avançando um pouco mais na ontologia sartriana é possível compreender que a definição de realidade humana está pautada naquilo que Leopoldo e Silva (2009)23 chamou de “reviravolta na concepção de existência”. Para a tradição filosófica, a existência sempre foi determinada por sua essência, ou seja, aquilo que uma coisa é já está definido antes mesmo dela existir. Deste modo, o que aparece não revela a essência, porque algo sensível e variável não poderia explicar algo que é fixo e dado pela razão. Para Sartre, em contrapartida, “a existência precede a essência”, ou seja, a existência é primeira e a essência é segunda. Disso decorre que não há razão a priori que defina a existência; ela é sem razão de ser, é indeterminação. E por ser indeterminada, a realidade humana é, também, liberdade. Daí que os critérios que vão guiar uma existência singular são escolhidos livremente pelo próprio

Transcendance de L’Ego, dois absolutos foram factualmente constatados: “a consciência como absoluto de

existência ou transparência e a coisa como absoluto de opacidade”. O absoluto de objetividade, bem como o absoluto de subjetividade foram conseqüências necessárias das pesquisas filosóficas de Sartre.

23 Material em CD-ROOM referente às aulas ministradas pelo professor Franklin Leopoldo e Silva no curso “A

sujeito ao longo do seu existir. Um sujeito nasce em meio ao mundo, em determinada época histórica, em uma dada materialidade e em meio a um núcleo familiar. Tais limites não são escolhidos pelo sujeito, simplesmente, ele nasce aí, em meio a eles. No entanto, o sujeito é livre para lidar com tal aparato factual, para dar um significado para esta conjuntura e para o que vive. Isso é o mesmo que dizer que a liberdade é exercida em situação.

No intuito de clarear sua noção de existência, Sartre resumiu-a na conferência L’Existentialisme est um Humanisme, de 1946 - considerada uma “das obras mais lidas e mais criticadas de Sartre”, de acordo com Contat & Rybalka (1970, p.131). Há, segundo Sartre, um conjunto de limites que definem a situação do ser humano no mundo, e embora se considere a singularidade, “há nele [no ser humano] algo de que ele não é fundamento: sua presença no mundo” (EH, p. 137). Deste modo, o ser humano está aí lançado no meio do mundo, livre para fazer-se e eleger-se, mas cercado por uma conjuntura material e histórica que ele não escolhe. Isso significa que ele está limitado por aspectos que possuem uma face objetiva e outra subjetiva: “objetivos porque tais limites se encontram em todo o lado e em todo o lado são reconhecíveis; subjetivos porque são vividos e nada são se o homem não os viver” (EH, p.251).

O ser humano pode, então, ser definido como corpo/consciência ou “totalização perpétua do em-si-para-si” na medida em que não cessa de se produzir, de se transformar; é “uma totalização sempre em curso” (SCHNEIDER, 2002, p.83). E por isso, pode-se dizer que o ser humano está no tempo ou que “a realidade humana se capta a si mesma como temporal” (EN, p.168). O ser humano “em cada um de seus atos cotidianos [...] é passado, presente e futuro, as três dimensões ao mesmo tempo, de uma só vez” (EHRLICH, 2002, p.64). A temporalidade precisa ser entendida aqui como ontológica na medida em que é condição de possibilidade para o ser humano personalizar-se, não podendo ser uma qualidade acrescida de fora. Assim, o sujeito constitui seu ser em meio ao mundo através da articulação das três dimensões temporais: passado, presente e futuro. O passado é, não pode deixar de sê-lo, é imutável, não há como refazê-lo. A atitude de ontem não pode ser apagada ou feita de outro modo, está dada. No entanto, pode-se refletir sobre o ato realizado, satisfazer-se com ele ou envergonhar-se dele. E isso coloca o sujeito em um movimento de transcendência em direção ao futuro, onde a possibilidade continua aberta. Antes ainda, há o presente que nada mais é do que presença a, ou seja, “uma relação interna do ser que é presente com os seres aos quais é presente” (EN, p.186) O presente, portanto, “não tem ser, é precisamente a fuga de ser o que é” (EHRLICH, 2002, p.75), pois, na medida em que é, já se tornou em-si, já deixou de ser, já é passado. O ser humano é este ser que é seu passado, mas que não se reduz a sê-lo, que é

presença a, sem ser seu presente, pois este lhe escapa na direção de um futuro, de um possível sempre aberto à sua frente. É o futuro, portanto, que ilumina seus atos presentes, que confere um sentido às suas ações, que faz do ser humano um vir-a-ser. É que o futuro “não é: se possibiliza. O futuro é a possibilização contínua dos possíveis como o sentido do para-si presente, enquanto que este sentido é problemático e escapa radicalmente, como tal, ao para-si presente” (EN, p.196). Assim, “a condição de possibilidade do homem é ter seu ser sempre à distância de si e o futuro sempre aparecer como possibilidade de superação dessa carência. Esse futuro nunca se realiza, transforma-se em presença e com ele surge uma nova carência” (EHRLICH, 2002, p.81).

As ações humanas são, portanto, preenchidas de sentido pelo futuro, por aquilo que se alcança a partir do movimento presente. E tais ações não são aleatórias, são escolhidas livremente por cada sujeito em um dado contexto. Essa eleição é chamada projeto-de-ser e é realizada de maneira singular por cada ser humano. Assim,

na realidade humana, nenhuma ação se reduz a si mesma, necessariamente se articula com a totalidade do ser, que vem a ser o projeto de ser ou eleição original. Todo ato é significativo, não se limita jamais a si mesmo, remete necessariamente a uma eleição mais ampla de um mundo porvir (EHRLICH, 2002, p.125).

A realidade humana é, deste modo, definida, ontologicamente, pela anterioridade de sua existência sobre sua essência, tal como expressa a máxima sartriana: “a existência precede a essência”. Ele primeiro existe, depois se faz este ou aquele a partir de uma dada situação. Ou seja, “o ser do homem consiste em existir, o que significa que a realidade humana se define no curso de sua existência” (LEOPOLDO E SILVA, 2007, p.56). Este fazer é pleno de liberdade na medida em que não há nenhuma razão a priori que defina o caminho a ser seguido, ou ainda, “a ausência de essência enquanto determinação prévia é a liberdade” (LEOPOLDO E SILVA, p. 56, grifo do autor). Assim, o ser humano precisa escolher seu ser em meio a esta liberdade esmagadora, a esta total indeterminação, pois “não existe fundamento” (LEOPOLDO E SILVA, p.57) para a realidade humana. E na medida em que é ele mesmo que escolhe, ele é responsável por sua escolha. E escolhe no tempo, enquanto vir- a-ser futuro, o que faz com que seu ser lhe escape a todo o momento, obrigando-o a escolher- se a cada vez, sem que possa furta-se a isso. E, ao mesmo tempo, permitindo que suas possibilidades estejam sempre abertas, nunca totalizadas.

3 A IMAGINAÇÃO