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3 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DO DIREITO SUBJETIVO À HERANÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

3.3 FUNÇÃO DA HERANÇA

3.3.3 A “função familiar” da herança

Para além do aspecto individual, não é necessário muito esforço para identificarmos interesses familiares tutelados pelo perfil funcional da sucessão hereditária. Na seção 3.2.3 discorremos sobre a íntima conexão entre a família e o Direito das Sucessões.

Mesmo sob a predominância do individualismo típico do Direito Civil oitocentista, a doutrina mais tradicional já reconhecia a funcionalização da sucessão causa mortis aos interesses familiares. Por exemplo, tratando sobre a legítima dos herdeiros necessários, Pontes de Miranda (2005, v.IV, p.74-75) enxergava na proteção à família uma negação da sucessão individualista, em que há irrestrito direito de testar. Segundo ele, atualmente não há cabimento para uma sucessão com plena liberdade de testar143. Assim, Pontes de Miranda afirmava que, não havendo socialização dos bens da vida, o direito sucessório necessário tem que existir; se um Estado o abolir, deverá assegurar a subsistência dos descendentes dos mortos. Semelhantemente, Eduardo de Oliveira Leite (2003, p.263) elenca três objetivos da política sucessória dominante: o dever para com a família; a conservação dos bens nas famílias; e um mínimo de igualdade entre os herdeiros necessários. Mais recentemente, encontramos em Paulo Lôbo (2014, p.41-42) a noção de que a funcionalização da herança passaria pela mudança de paradigma sucessório, com a redução do papel da vontade do testador e aumento do prestígio à sucessão legítima, uma vez que esta última “contemplaria melhor os valores sociais e de solidariedade familiar”.

Ocorre que, conforme já defendemos, a Constituição Federal não tutela a família enquanto entidade abstrata, mas enquanto vínculo de promoção da dignidade e da personalidade de cada um de seus membros.

Dentro da lógica de promoção da dignidade dos membros da família, individualmente considerados, o foco dado à proteção à família em si mesma cede espaço à noção de solidariedade familiar. Esta linha argumentativa não é nova, muito menos surgida com a Constituição de 1988: há muitas décadas já havia sido proposta como razão de ser da sucessão legítima por Alberto Trabucchi (1952, p.736). Semelhantemente, Orosimbo Nonato (1957, v.II, p.360) identificou

143 “Ora, sucessão individualista com a plena liberdade de testar só a fantasia podia aceitar fora das condições gerais da Roma patriarcal, prepotente, rígida, que passou, como tudo, e dos anglo-saxões da era individualista e mercantilista” (PONTES DE MIRANDA, 2005, v.IV, p.74).

“elevados deveres de ordem moral e social” como fundamentos da herança. O referido autor continua: “mais do que a simples prestação alimentícia deve o pai ao filho, à família: deve-lhes todos os esforços e desvelos para sua felicidade e também para seu conforto material, conservando- lhes e guardando-lhes o patrimônio”.

Para Carlos Maximiliano (1964, v.I, p.132-133), a sucessão legítima decorre da preocupação social com a unidade e a solidariedade da família; nesse sentido, o direito de suceder se estende até onde pode se presumir a existência dessa solidariedade. Segundo ele, na medida em que os membros da família “se apoiam, animam, estimulam e consolam mutuamente nas provações, dificuldades e desastres”, é justo que participem “todos da riqueza, para a qual contribuíram quando se lhes ofereceu oportunidade e na medida das próprias forças: um laborando, outro economizando, este vigiando, aquele aconselhando, repreendendo, providenciando”.

Quanto à doutrina mais atualizada, encontramos em Ana Carolina Brochado Teixeira e Anna Rettore (2015, p.126-127) a fundamentação da sucessão legítima no princípio da solidariedade constitucional144. Segundo as autoras, o objetivo da solidariedade econômica entre os membros da mesma família é a proteção patrimonial da entidade familiar, “proporcionando-lhe condições de continuar a subsistir sem aquele que poderia ser o provedor”. Por ter esse caráter protetivo, a sucessão legítima não se encontra no terreno da autonomia privada, e sim da ordem pública. Já para Roxana Borges e Renata Dantas (2017, p.88), a solidariedade familiar enquanto fundamento da herança somente se sustenta “quando os herdeiros forem vulneráveis economicamente”, na medida em que “a transmissão de patrimônio a alguém maior, capaz e apto a se sustentar não consubstancia um ato de solidariedade”145.

Em sentido semelhante, de acordo com Ana Luiza Maia Nevares (2008, p.626-627), a sucessão hereditária no âmbito familiar é um instrumento de concretização da solidariedade constitucional. Daí derivam as regras da sucessão legítima,

especialmente aquelas que consagram a sucessão necessária, uma vez que estas estabelecem uma possibilidade de distribuição de valores materiais entre os

144 Constituição Federal de 1988, artigo 3º, I.

145 As autoras completam: “em muitas hipóteses, a solidariedade familiar pode ser concretizada na proteção financeira a um parente que não se inclua no rol dos herdeiros necessários”. Acreditamos que essa afirmação é totalmente pertinente e, por isso mesmo, refletiremos com profundidade sobre a questão no capítulo 5.

familiares e, dessa forma, um mecanismo em potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna.146

Os argumentos acima mencionados abordam libertação das necessidades, bem como a subsistência após a morte de quem seria o provedor da família. Contudo, conforme ressaltou Josiah Wedgwod (1939, p.203-204), é sem sentido imaginar que o fenômeno hereditário necessariamente envolve viúvas indigentes e órfãos pobres, que não podem prover por si mesmos. Utilizando dados referentes ao seu próprio tempo e local, Wedgwood afirmou que a idade média da pessoa que recebe herança era aproximadamente 40 anos; no momento da morte do de cujus, o herdeiro médio já está inserido no mercado de trabalho, podendo obter subsistência por suas próprias forças147.

Não entendemos que a solidariedade familiar deva ser destinada exclusivamente aos vulneráveis. Conforme discorremos na seção 3.3.1, admitimos que mesmo uma pessoa capaz de prover o próprio sustento pode ter interesses legítimos na herança, no sentido de esta ser utilizada para melhorar as suas condições de vida dentro de um certo nível de razoabilidade (entenda-se: proteção à pessoa e desenvolvimento de sua personalidade). Assim, por exemplo, identificamos a existência de solidariedade familiar como fundamento da transferência de um patrimônio hereditário que será destinado a assegurar moradia própria a um sucessor que até então vivia pagando aluguel com os frutos do próprio trabalho. Apesar disso, reconhecemos que, na hipótese de haver um conflito entre a garantia de subsistência do vulnerável que dependia do de cujus, de um lado, e a melhoria da condição de vida do não-vulnerável, de outro, familiar a primeira deverá prevalecer. Por essa razão, defenderemos na seção 5.4.4.1 que as necessidades excepcionais de um dos sucessores poderão ser utilizadas como critério legitimamente desequiparador deste em relação aos demais, afastando a presunção de isonomia formal na distribuição da herança.

Acreditamos que a ideia de solidariedade familiar é adequada à releitura constitucional do fenômeno familiar, já que se trata de reconhecer a proteção à família, enquanto base da sociedade,

146 Ana Nevares aponta criticamente, entretanto, que a solidariedade constitucional não está sendo adequadamente realizada sem que as qualidades pessoais do sucessor, assim como suas relações com o sucedido, sejam avaliadas. Retomaremos essa questão na seção 5.4.

147 Um cálculo desse tipo, mesmo grosseiro, para a nossa realidade nacional deve levar em consideração a expectativa de vida do brasileiro, que é de 76 anos, e a idade média em que se têm filhos no Brasil, informação esta que não está disponível. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística disponíveis em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23206-expectativa-de-vida- do-brasileiro-sobe-para-76-anos-mortalidade-infantil-cai.

mas com foco na dignidade dos seus membros, individualmente considerados. Assim como Nelson Rosenvald (2018), compreendemos que esse princípio implica a responsabilização recíproca dos membros “para que a felicidade seja uma via possível, através da formação da personalidade de cada um, que tem ampla liberdade para construir-se segundo as próprias concepções individuais”148. Faz sentido, portanto, que o patrimônio deixado pelo morto, no todo ou em parte,

seja direcionado tanto à promoção da vida digna quanto à melhoria das condições de vida de pessoas a ele ligadas pelo vínculo familiar. Ocorre, porém, que a solidariedade familiar dificilmente se encontra adequadamente realizada por nossa legislação infraconstitucional; destacamos três fenômenos nesse sentido.

Em primeiro lugar, o Código Civil atribui a qualquer pessoa, independentemente do tamanho do seu patrimônio, o direito de dispor de metade dos seus bens pela via testamentária. Acreditamos que não se cumpre a promessa de solidariedade quando, desconsiderada a parte disponível, os bens que restam na legítima dos herdeiros necessários149 se mostram insuficientes para proporcionar um sustento digno àqueles sobreviventes necessitados. Voltaremos a essa questão na seção 4.1.

Em segundo lugar, o sistema desenhado por nossa ordem de vocação hereditária150 estabelece de forma rígida aqueles que são chamados à sucessão, colocando os descendentes em primeiro lugar, em alguns casos com a concorrência do cônjuge supérstite. Se algum dependente econômico do de cujus não atender à lógica de “o parente mais próximo exclui o mais remoto”, não terá qualquer direito sucessório atribuído pelo Código Civil. Onde está, nesse caso, a solidariedade familiar? Voltaremos a essa questão na seção 5.3.

Em terceiro lugar, é muito forçado fundamentar a solidariedade familiar como função da sucessão causa mortis nos casos em que o patrimônio hereditário é extenso e vai muito além do necessário para manter a subsistência digna dos economicamente dependentes do falecido. Conforme ressaltado por Mark Ascher (1990, p.111), dificilmente o propósito de sustento à família justifica direitos hereditários ilimitados. Como veremos na seção 3.3.4, as grandes (e mesmo as médias) heranças contribuem para a concentração de riqueza e têm um efeito cumulativo em

148 Ressalvemos que Rosenvald relaciona a solidariedade familiar à existência de vulnerabilidade, algo com o que, reiteramos, não concordamos.

149 Que, por sua vez, ainda será repartida igualmente entre eles, independentemente de suas condições pessoais. 150 Código Civil de 2002, artigo 1829.

gerações sucessivas. Não vemos como a solidariedade familiar pode ser utilizada como argumento para embasar a existência de, a título ilustrativo, herdeiros rentistas.

Por essa razão, sem desconsiderar a íntima relação entre sucessão hereditária e solidariedade familiar, aderimos ao pensamento de Gustavo Tepedino (2017, p.11), que sugeriu que talvez seja o momento de uma reformulação qualitativa do conteúdo desse princípio: de um lado, para que seja “efetivamente exigida no âmbito de toda e qualquer entidade familiar”; de outro, para que se analise se o sistema sucessório codificado se mostra “consentâneo com a proteção que se pretende atribuir às famílias da atualidade, constituídas ou não pelo casamento”.

3.3.4 A função antissocial da herança: um direito fundamental que contribui para a