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4 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DA SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

4.1 LIBERDADE DE TESTAR

4.1.1 O direito fundamental a fazer testamento

Na seção 2.3, abordamos a tendência individualista ainda fortemente existente no Código Civil de 2002, que também notadamente conforma o Direito das Sucessões brasileiro. Naquela oportunidade, criticamos a tendência a considerar o testamento um elemento direcionado a realizar os interesses exclusivos do testador. Ainda sobre o regime da codificação de 1916, Orosimbo Nonato (1957, v.I, p.76) já alegava que, na medida em que o testamento é o instituto que mais energeticamente exprime o individualismo, as doutrinas socialistas e coletivistas remetem contra ele, propugnando sua abolição ou intensa restrição.

185 Ressalvemos nesse sentido, na esteira de Zeno Veloso (2004, p.118), que o testamento não se trata da vontade de um morto, na medida em que morto não tem vontade; trata-se da vontade manifestada por um vivo e cujos efeitos ocorrem com o falecimento do agente.

Historicamente muitos autores criticam a faculdade de testar. A título ilustrativo, Harlan Eugene Read (1918, p.38) considerava que, do túmulo, o morto não tem o direito de governar o mundo dos vivos; quando uma pessoa morre, suas vontades, desejos e poderes acabam no mesmo tempo, cessando a sua autoridade nos assuntos dos vivos. Para Read (1918, p.70), tratar o testamento como uma manifestação de vontade é uma contradição nos próprios termos, na medida em que, quando o testador está morto, sua vontade não mais existe. Jeffrey Sherman (1999, p.1281- 1284) sustentava que testar é uma anomalia. Sua afirmação se embasa na comparação com as eleições: simplesmente não permitimos que mortos votem, ainda que não haja obstáculos práticos a isso186. Uma objeção ao voto póstumo é que o adequado ato de votar exige conhecimento das circunstâncias contemporâneas à eleição; outro problema seria a tendência ao voto póstumo ser mais irresponsável, já que o eleitor não estará mais vivo para sofrer as consequências. Sherman argumenta que, se tudo isso é verdade em relação a direitos políticos, também é em relação ao uso e à distribuição de propriedade. Para este autor, então, a liberdade de testar, anômala que é, só deve ser permitida nos limites do necessário para evitar as consequências negativas que haveria com a proibição de se fazer testamento.

A discussão sobre o fundamento do direito de testar não é recente, podendo inclusive ser encontrada na obra de filósofos da Antiguidade greco-romana (MIRAGLIA, 1943, p.555). Acreditamos, porém, que a concepção moderna sobre a natureza do testamento ganhou os atuais contornos a partir dos debates sobre o tema no movimento jusracionalista europeu dos séculos XVII e XVIII187. De um lado, tínhamos Hugo Grotius (2012, p.143) e seus seguidores considerando que a sucessão testamentária decorre naturalmente do direito de propriedade e, assim, tem seu fundamento no Direito Natural. Por outro lado, tínhamos Samuel Pufendorf (1703, p.369) e seus discípulos negando que a livre disposição post mortem seja inerente à propriedade e compreendendo assim o testamento como meramente fundamentado em leis humanas (e suscetível, portanto, de abolição pelas legislações).

186 Sherman ilustra seu comentário com o exemplo de uma urna em que, após as devidas formalidades para dar mais segurança ao ato, o sujeito deixasse seu voto em um partido pelas próximas 3 eleições presidenciais para depois de sua morte.

187 Na medida em que o aprofundamento do debate jusracionalista foge ao escopo da presente Tese, remetemos o leitor à nossa contribuição sobre o tema, Hugo Grotius and Samuel Pufendorf on Last Wills and Testaments, referenciada ao final (RIBEIRO, 2019).

Imaginemos hipoteticamente que, supostamente movido pelo espírito civil-constitucional, o legislador brasileiro queira combater o individualismo oitocentista do Código Civil com uma proposta de revogar, em território nacional, a liberdade de testar. Um dos possíveis argumentos para tanto é facilmente encontrado na doutrina (e sobre ele comentaremos mais à frente): a sucessão legítima atende adequadamente aos valores estampados na Constituição e, assim sendo, o testamento é desnecessário. A pergunta que devemos fazer então é: tal medida legislativa seria constitucional? O direito de testar pode ser abolido no Brasil? Acreditamos que a resposta é negativa. Entendemos que fazer testamento é um direito fundamental, protegido assim pela Constituição e consequentemente pela intangibilidade das cláusulas pétreas.

Se procurarmos no rol dos direitos e garantias individuais da Constituição, não encontraremos ali um dispositivo expressamente tutelando o direito de testar. Contudo, isso não é um impeditivo para nossa análise, uma vez que o próprio texto constitucional admite a existência de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados188.

Na doutrina brasileira, normalmente encontramos reflexões imputando o fundamento do direito de testar como decorrência da propriedade, da vontade ou até mesmo da personalidade do testador. Por exemplo, Itabaiana de Oliveira (1936, p.46) considerava a sucessão testamentária como uma emanação do direito de personalidade. Carlos Maximilano (1964, v.I, p.338) entendia que o direito de testar tem um duplo fundamento, econômico e moral. Trata-se primeiramente de desdobramento do poder de disposição patrimonial; e, também, de poder da personalidade o fazer ou revogar ato causa mortis. Segundo o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, por um lado, providenciar o futuro dos filhos é justo e animador para a pessoa que trabalha e economiza; por outro lado, é justa a oportunidade de ponderar os méritos e deméritos pessoais de cada descendente189. Semelhantemente, e mais recentemente, para Zeno Veloso (2004, p.123), o testamento emana tanto do direito de propriedade quanto da personalidade. Eduardo de Oliveira Leite (2003, p.302) igualmente considera que o fundamento da faculdade de testar é encontrado na liberdade de dispor livremente do próprio patrimônio, bem como de tomar outras decisões extrapatrimoniais com eficácia póstuma. Pontes de Miranda (2005, v.I, p.36) defendia que no poder

188 Art. 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 189 “Ponderando, quanto a uns, os méritos pessoais, os serviços, a dedicação, os sacrifícios, o afeto demonstrado; noutros, a indiferença, a frieza, a ingratidão; galardoa o que fez jus ao prêmio, esquece ou destitui o desamoroso” (MAXIMILIANO, 1964, v.I, p.338).

de testar existe um “inteiro reconhecimento legal da dignidade humana e concepção de ser assaz respeitável, só por si, a vontade individual”. Entretanto, o mencionado jurista argumentava que a faculdade de testar pressupõe uma postulação político-individualista e, também, um grande enfraquecimento da extrema significação que a família tinha nas sociedades antigas.

Não negamos a íntima relação entre o direito de testar e a liberdade, a propriedade e a autonomia privada (em suas dimensões patrimonial e existencial). Entendemos, porém, que a faculdade de testar é fundamental notadamente porque se trata de um desdobramento da perspectiva subjetiva do direito fundamental à herança. Primeiramente, conforme terceiro comentário introdutório à seção 3.1, devemos recordar que adotamos na presente Tese a teoria da dupla titularidade da herança. O fenômeno sucessório envolve dois diferentes aspectos, o direito de transmitir e o direito de receber; consequentemente, de um ponto de vista individual, ele interessa tanto ao sucedido quanto ao sucessor.

Com base na doutrina de Robert Alexy sobre a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, verificamos que estes podem ser entendidos como “direitos a algo”, “liberdades” e “competências”. Na seção 3.1.1.2, identificamos que a ideia de “liberdade jurídica” envolve uma alternativa de ação, ou seja, a possibilidade de o titular desse direito fazer ou não fazer algo. Dessa forma, compreendemos que no âmbito de proteção do direito fundamental à herança, quando se considera o sucedido, está a alternativa de ação, ou seja, a faculdade de fazer testamento.

Já na seção 3.1.1.3 depreendemos que os direitos fundamentais, em sua perspectiva subjetiva, podem se apresentar como competências, através das quais uma situação jurídica é alterada, seja pela criação de normas (tanto individuais quanto gerais) ou pela alteração das posições jurídicas daqueles indivíduos submetidos às normas. Aduzimos também que existe uma relação entre liberdades e competências: a atribuição de competências a alguém cria novas (e, portanto, aumenta o número de) alternativas de ação disponíveis a esse sujeito. Identificamos assim a competência para fazer testamento no âmbito de proteção do direito fundamental à herança do ponto de vista do sucedido: o testador altera a situação jurídica dos sucessores, em especial modificando, dentro de certos limites, o esquema legal de distribuição do patrimônio hereditário. Sustentamos, por fim, que existe uma proteção contra a ação do legislador direcionada à eliminação ou à alteração substancial desses institutos jurídicos de Direito Privado que configuram direitos

fundamentais a competências, o que se relaciona com a “teoria da garantia de institutos”. Nessa perspectiva, a competência para testar é protegida contra a ações legislativas tendentes a aboli-la.

Ressaltamos, porém, que demonstraremos na seção 4.2 as crescentes interações entre o testamento e autonomia privada existencial, o que faz o direito de testar se relacionar cada vez mais intensamente com interesses existenciais e mesmo com direitos da personalidade do testador. Caminhamos assim para a superação da tendência de se enxergar o testamento exclusivamente com a transmissão post mortem de propriedade. Entretanto, sustentaremos, na oportunidade, que o direito sucessório codificado dedica pouca (quase nenhuma) atenção a essas interfaces.

Por fim, devemos enfrentar o argumento encontrado, por exemplo, na doutrina de Paulo Lôbo (2017, p.150), no sentido de que os valores sociais e de solidariedade familiar são mais bem contemplados na sucessão legítima, enquanto a sucessão testamentária privilegia excessivamente a autonomia individual. Não concordamos com a generalização feita pelo referido autor nem com a sua pressuposição de que a autonomia individual é necessariamente antissocial e realizadora de valores contrários aos estampados na Constituição.

Assim como Jeffrey P. Rosenfeld (1979, p.03), discordamos da tendência de rotular disposições testamentárias como intrinsecamente antissociais ou idiossincráticas. Já discorremos na seção 3.3.5.3 que a solidariedade constitucional se relaciona com a solidariedade familiar, contudo a ela não se limita. Semelhantemente, Rosenfeld critica o considerar que a sucessão em benefício da família sempre deve prevalecer em relação a obrigações para com terceiros; para este autor, esta crença obscurece as forças sociais que atuam quando alguém dispõe de patrimônio. Compreendemos que, com a liberdade de testar, o sujeito pode chamar à própria sucessão pessoas que dele dependiam e que seriam deixadas de lado pela rígida ordem de vocação hereditária prevista em lei, como por exemplo um irmão – no capítulo 5 demonstraremos que a ordem sucessória definida em lei é insuficiente para adequadamente promover os valores constitucionais. A título ilustrativo, Daniel Monk (2011, p.231) relata que, antes de as legislações ou os tribunais reconhecerem a existência de direitos sucessórios legítimos nas relações entre pessoas do mesmo sexo, foi a liberdade de testar que permitiu que homossexuais beneficiassem seus parceiros. Ademais, como defendemos na seção 3.3.5.4, a sucessão testamentária pode e deve ser utilizada como instrumento de filantropia, em especial no que se refere a grandes heranças.

Obviamente reconhecemos a possibilidade de a autonomia testamentária ser utilizada de forma abusiva. Identificar o direito de testar como fundamental não significa que ele seja absoluto, ilimitado. Na seção seguinte, refletiremos sobre alguns dos limites à liberdade de testar, que conformam o âmbito de proteção do referido direito aos demais valores e objetivos estampados na Constituição da República.