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3 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DO DIREITO SUBJETIVO À HERANÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

3.3 FUNÇÃO DA HERANÇA

3.3.2 A visão clássica do interesse social na herança: estímulo à produtividade e poupança

De modo geral, encontramos na doutrina afirmações de que a sociedade como um todo se beneficia com a existência de sucessão hereditária por se tratar de estímulo à poupança, à produtividade, à economia. Existe uma clara função econômica da herança; mas rejeitamos a tão difundida visão tradicional, porque a consideramos baseada mais em senso comum do que em argumentos científicos, além de excessivamente patrimonialista.

Clovis Bevilaqua (1978, p.16) tentou identificar a função social do direito hereditário no fato de, em seu entendimento, a herança ser um fator poderoso para o aumento da riqueza pública; um meio para distribuir a riqueza de forma apropriada à sua conservação e ao bem-estar dos indivíduos; um vínculo para a consolidação da família; bem como estímulo para sentimentos altruísticos. Para Washington de Barros Monteiro (2011, p.18), a função social do direito das sucessões se resume à conservação de “unidades econômicas a serviço do bem comum”. De acordo com esse autor, “ocorreria, sem dúvida, improdutivo dispêndio de energias se essas unidades devessem desaparecer pela morte das pessoas que as criaram e as mantiveram, impondo-se-lhes a restauração por outros homens”.

Alguns enxergam na propriedade uma função econômica no sentido de estímulo à conservação dos bens (LORENZETTI, 1998, p.99). Comumente vemos na doutrina nacional afirmações como a de Silvio Rodrigues (2003, p.06), no sentido de que a função do direito sucessório é incentivar a poupança, na medida em que o indivíduo busca aumentar os seus haveres almejando assegurar o bem-estar de seus sucessores140. Ainda segundo Rodrigues, caso a herança não fosse admitida, o sujeito não teria incentivo para adquirir e conservar riqueza, podendo inclusive passar “os últimos anos de sua vida a esbanjar um patrimônio que não pode deixar aos seus entes queridos”. Em sentido semelhante, afirma-se que a herança é um estímulo à iniciativa individual e um incentivo ao trabalho (TRABUCCHI, 1952, p.736). Por exemplo, de acordo com Silvio Venosa (2011, p.04), “se não houvesse herança, estaria prejudicada a capacidade produtiva

140 Em sentido semelhante, Luís Pinto Ferreira (1990, p.10) afirma que “o trabalho, a operosidade, a economia que levam ao acúmulo de bens são feitos também visando o bem-estar futuro da família e a garantindo economicamente, amparando e desenvolvendo o direito hereditário”. Igualmente, Orosimbo Nonato (1957, v.II, p.366).

de cada indivíduo, que não teria interesse em poupar e produzir, sabendo que sua família não seria alvo do esforço”.

Para Francisco José Cahali (2003, p.27-28), a função social da herança se encontra no fato de que ela propulsiona, direta ou indiretamente, o desenvolvimento da sociedade ao valorizar o interesse individual na poupança, no progresso econômico e no avanço patrimonial. Semelhantemente se posiciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2004, p.185), para quem a função social da sucessão hereditária consiste na valorização da aquisição, da conservação e do aprimoramento da propriedade; no aumento patrimonial; no crescimento da poupança individual e familiar; no estímulo ao aperfeiçoamento familiar. Segundo Gama, esses fatores, entre outros, levam ao desenvolvimento da própria sociedade.

De acordo com Gustav Radbruch (1997, p.305; p.310), a função social da herança é o estímulo à atividade econômica. Para ele, as unidades econômicas (agrícolas, industriais e comerciais) existem no interesse lucrativo dos seus donos, mas também atendem ao bem comum; dessa forma, é desejável que elas perdurem para além da morte dos atuais proprietários. O próprio Radbruch entende, porém, que há certo caráter ilusório nessa hipótese, na medida em que esse cenário levaria à conclusão de que apenas aqueles com condições de continuar as atividades econômicas poderiam ser herdeiros. Radbruch também menciona a existência, na herança, de, por um lado, interesses individuais (a autonomia testamentária da parte do de cujus e a permanência no patrimônio por parte do sucessor); e, de outro lado, interesses familiares (a perduração e a conservação da família).

Não negamos a relação entre o direito sucessório e a estrutura econômica nacional. Tratando do Direito Civil de modo geral, Rodrigo Daniel Félix da Silva (2014, p.59) demonstrou as relações entre o modo de produção capitalista e o fenômeno jurídico, em especial como este é moldado por aquele; as normas positivadas de modo geral visam a garantir o funcionamento da ordem capitalista, em especial assegurando o movimento e a lógica da mercadoria nas relações sociais.

Ocorre que rejeitamos aceitar o aspecto econômico como o principal perfil funcional da herança. Na esteira de Luiz Edson Fachin (2012, p.51), recusamos nos render a um “aprisionamento conceitual” que meramente faz uma releitura mercadológica da instância jurídica, submetendo-a aos critérios de um regime econômico. Como Fachin, preferimos focar no sentido transformador e construtivo do Direito, em especial no contexto do neoconstitucionalismo. Então, assim como

Pietro Perlingieri (2008, p.509), compreendemos que a função do ordenamento jurídico não deve ser entendida exclusivamente e prevalentemente a serviço de razões econômicas; na verdade, deve se opor a elas, impedindo a mercantilização da sociedade.

Ademais, para Perlingieri (2002, p.37-38), o princípio da solidariedade constitucional exige que as formações sociais não sejam direcionadas ao eficientismo, mas ao pleno desenvolvimento da pessoa. Rejeitamos as tentativas de exaurir os institutos jurídicos e as normas a uma avaliação exclusivamente econômica, ou seja, de elevar a economia a um parâmetro de controle da atuação do jurista. Acreditamos, como Perlingieri (2002, p.63), que se trata de uma postura “individualista, materialista e conservadora, certamente em contraste com a legalidade constitucional”.

Mesmo que tomássemos o parâmetro econômico como adequado para fundamentar o Direito, entenderíamos como inadequada a adesão acrítica à ideia de que a função da herança é estimular o empreendedorismo, a iniciativa, o trabalho, a acumulação, com consequências benéficas para a economia. Como bem apontou Anton Menger (1908, p.09), há mais de um século, o argumento da herança enquanto incentivo ao trabalho deve ser questionado na medida em que as classes que mais trabalham apenas conseguem subsistir, deixando na melhor das hipóteses uma parca pensão para suas viúvas e órfãos.

Por outro lado, discordamos da alegação de que a extinção da herança seria necessariamente um desestímulo ao trabalho e à acumulação; não há qualquer evidência que sustente essa afirmação tão repetida nos livros de Direito das Sucessões. Como ressaltado por Mark Ascher (1990, p.100), as pessoas trabalham e acumulam por muitas outras razões, a exemplo dos próprios interesses imediatos relacionados ao dinheiro – subsistência e lazer e, a partir de determinado nível de vida, poder e prestígio.

Também Harlan Eugene Read (1918, p.58-60) critica o argumento de que a função da herança consiste na preservação e na eficiência das unidades econômicas: muitas vezes o herdeiro não preserva a atividade, mas a destrói; afinal, para ser sucessor, não se exige qualquer habilidade ou qualificação acadêmica ou profissional, apenas uma certidão de nascimento ou de casamento141.

Jens Beckert (2007, p.85) aduz que, de um ponto de vista economicista, na medida em que a

141 Estas são as palavras de Read, em um contexto distinto do atual. Hoje no Brasil reconhecemos como herdeiros pessoas sem certidão de nascimento ou casamento: os companheiros. Além disso, também não podemos deixar de suscitar a possibilidade de o testador levar em consideração as habilidades gerenciais ou negociais de eventuais sucessores para destinar, por testamento, as atividades econômicas de que é titular.

herança não está inserida no Mercado, ela tende a ser ineficiente; ademais, em matéria comportamental, a riqueza herdada (ou seja, adquirida gratuitamente) é um incentivo a uma vida de ócio. De fato, como demonstraremos na seção 3.3.4, notadamente em sociedades com fraco crescimento da atividade econômica, surge a figura do rentista, que nada mais é do que o sujeito que subsiste, principal ou exclusivamente, da renda do capital herdado.

Marcos Catalan (2010, p.139) afirma que uma consequência da impossibilidade de transmissão causa mortis de parcela do patrimônio é a sua utilização em vida, o que tem como consequência a efetiva circulação dessa riqueza. Entretanto, não entendemos essa estimativa como óbvia. Afinal, conforme ressaltado por Mark Ascher (1990, p.106), o aumento do consumo por parte do sucedido seria compensado pela redução do consumo por parte do sucessor.

Por fim, ressaltemos que, ainda que se pudesse identificar a existência de sucessão hereditária como mecanismo maximizador de riqueza, isso não necessariamente estaria em conformidade com a Constituição. Como Michael Trebilcock (1997, p.158), acreditamos ser muito pobre a visão que foca exclusivamente na maximização dos recursos, sem se preocupar como eles são distribuídos ou utilizados para melhorar a vida das pessoas (e não de apenas algumas pessoas). É necessário, então, questionar a quem essa riqueza beneficiaria. Nesse sentido, Zygmunt Bauman (2013) notou que o tratamento benéfico aos ricos de modo geral fez as desigualdades dispararem142. Ele também apontou para a existência de um fenômeno interessante: externamente, o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos diminuiu a sua distância em relação aos mais ricos; porém, ao mesmo tempo, internamente aprofundou os abismos sociais. Bauman alertou inclusive que o aprofundamento das desigualdades é um risco para a democracia. Retomaremos essa questão na seção 3.3.4.

142 “In addition, however, all studies agree on yet another point: almost everywhere in the world inequality is growing fast and that means that the rich, and particularly the very rich, get richer, whereas the poor, and particularly the very poor, get poorer – most certainly in relative, but in a growing number of cases also in the absolute terms. Moreover: people who are rich are getting richer just because they are rich. People who are poor get poorer just because they are poor” (BAUMAN, 2013). Em tradução livre: “Ademais, porém, todos os estudos concordam em outro ponto: em quase todo o mundo, a desigualdade está crescendo rapidamente, e isto significa que os ricos, particularmente os muito ricos, fica ainda mais ricos, enquanto os pobres, particularmente os mais pobres, ficam ainda mais pobres – certamente em termos relativos, mas em um crescente número de casos também em termos absolutos. Além disso: pessoas que são ricas estão ficando mais ricas simplesmente porque são ricas. Pessoas que são pobres estão ficando mais pobres simplesmente porque são pobres”.