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A função antissocial da herança: um direito fundamental que contribui para a concentração de riqueza e aumento das desigualdades sociais?

3 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DO DIREITO SUBJETIVO À HERANÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

3.3 FUNÇÃO DA HERANÇA

3.3.4 A função antissocial da herança: um direito fundamental que contribui para a concentração de riqueza e aumento das desigualdades sociais?

Propusemo-nos na presente investigação a uma reconstrução crítica do fenômeno hereditário à luz da Constituição Federal de 1988. Para Norberto Bobbio (2007, p.92), uma teoria crítica da sociedade deve não apenas ver como uma sociedade funciona, mas também como ela não funciona ou como deveria funcionar; por essa razão, a crítica de um instituto começa com a crítica à sua função. E aqui cabe uma constatação: de fato, a herança desempenha um papel problemático na concentração de riqueza. É o que chamamos de função antissocial da herança, no sentido de esse instituto poder beneficiar alguns poucos privilegiados em detrimento da coletividade.

Na fundamental obra O Capital no Século XXI, o economista francês Thomas Piketty estuda a concentração de riqueza. Piketty (2014, p.238-241) afirma que a desigualdade em todas as sociedades resulta da soma de dois componentes: a desigualdade da renda do trabalho e a desigualdade da renda do capital151. A desigualdade total será maior quanto mais desigual a distribuição em cada um desses componentes; e isso é potencializado à medida que as pessoas que

151 Na definição de Piketty (2014, p.52), capital consiste em “todo tipo de riqueza que, pressupõe-se, pode pertencer a indivíduos (ou a grupos de indivíduos), além de também poder ser transmitida, comprada ou vendida, de modo permanente, em algum mercado”. De acordo com Piketty (2014, p.238), as “rendas do trabalho compreendem sobretudo os salários, e, para simplificar a exposição, iremos nos referir à desigualdade dos salários para designar a desigualdade da renda do trabalho. Na verdade, para sermos exatos, as rendas do trabalho abrangem, igualmente, as rendas do trabalho não assalariado, que há muito desempenham um papel essencial e hoje ainda são bastante relevantes. As rendas do capital também tomam diferentes formas: representam o conjunto de rendas recebidas sobre títulos de propriedade do capital, independentemente de qualquer trabalho e da denominação jurídica formal (aluguéis, dividendos, juros, royalties, lucros, ganhos de capital etc.)”.

dispõem das mais altas rendas do trabalho são as mesmas pessoas que têm as mais elevadas rendas do capital. Piketty observa que, na prática, “a desigualdade do capital é sempre mais forte do que a do trabalho”, no sentido de que “a distribuição da propriedade do capital e das rendas que dele provêm é sistematicamente mais concentrada do que a distribuição das rendas do trabalho”. De acordo com Piketty, um dos fatores significativos que explicam a forte concentração do capital é a herança e os seus efeitos cumulativos152, particularmente em um cenário de estagnação econômica. A tese de Piketty (2014, p.227) é a de que, em sociedades com crescimento econômico fraco, há um aumento considerável da importância dos patrimônios acumulados no passado.

Quando a taxa de remuneração do capital excede substancialmente a taxa de crescimento da economia – como ocorreu durante a maior parte do tempo até o século XIX e é provável que volte a ocorrer no século XXI -, então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que a renda e a produção. Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da renda de seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia como um todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas. (PIKETTY, 2014, p.33)

Segundo Piketty (2014, p.368-369), quando a taxa do rendimento do capital se mantém, por um longo período, muito mais elevada do que a taxa de crescimento econômico, “o passado tende a devorar o presente”: as riquezas vindas do passado – transmitidas intergeracionalmente através da herança – tendem a automaticamente progredir mais rápido – e sem qualquer necessidade de trabalho para isso – do que as riquezas produzidas pelo trabalho153. Por essa razão, Piketty (2014, p.342) afirma que “estão dadas as condições ideais para que prospere uma sociedade de herdeiros, caracterizada ao mesmo tempo por uma enorme concentração da riqueza e uma forte continuidade, ao longo dos anos e das gerações, desses patrimônios elevados”. O capital constituído se reproduz sozinho e mais rapidamente do que a produção; consequentemente, o empresário “tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho” (PIKETTY, 2014, p.555).

152 Piketty (2014, p.241) ilustra os efeitos cumulativos da herança: “por exemplo, é mais fácil poupar quando se herdou um apartamento e não se tem de pagar aluguel”.

153 Em relação aos Estados Unidos, Kotlikoff e Summers (1981, p.707; p.730) demonstraram que o papel da poupança durante a vida é bem pequeno, uma vez que estatisticamente a acumulação de capital resulta principalmente de transferências intergeracionais de riqueza.

Piketty observa que, quanto maior o patrimônio acumulado, muito provavelmente o seu retorno será mais elevado: quando se dispõe de mais reservas, há também mais meios para investir, melhores consultorias, maiores margens de conforto para aplicar em investimentos arriscados de alto retorno, mais paciência para aguardar o retorno do capital. Assim, “se o patrimônio do décimo superior ou do centésimo superior da hierarquia mundial do capital avançam mais rápido do que o dos décimos inferiores, a desigualdade da riqueza tende a se ampliar sem limites” (PIKETTY, 2014, p.420). Isso é reforçado pelo fato de que, a partir de um determinado patamar de riqueza, o patrimônio tem o potencial de se recapitalizar quase integralmente: o estilo de vida do seu titular absorve apenas uma pequena parcela do rendimento, e todo o restante pode ser reinvestido. Isso significa que o dinheiro acaba se reproduzindo sozinho (PIKETTY, 2014, p.429).

Por outro lado, Thomas Piketty (p.409-410) reconhece que o número de heranças enormes hoje em dia é bem menor do que nos séculos XIX e anteriores, muito em razão da abolição de antigos mecanismos hereditários como a primogenitura, bem como a repartição obrigatória entre os herdeiros. Entretanto, ele também aponta que, em números absolutos, a massa global de riquezas transmitidas hereditariamente permanece a mesma, o que significa que ainda existem muitas heranças médias e médias-altas. Elas não são suficientes para garantir uma vida como rentista, mas ainda assim representam uma quantia significativa em relação ao que boa parte da população pode acumular exclusivamente com seu trabalho. De acordo com Piketty, então, “passamos de uma sociedade com um pequeno número de grandes rentistas para uma sociedade com um grande número de rentistas menores: uma sociedade de pequenos rentistas, de certa maneira”.

Vemos no Brasil um terreno fértil para a reprodução do cenário acima descrito por Piketty. Em primeiro lugar, porque, no momento em que a presente Tese é elaborada, o país tem enfrentado há alguns anos cenários desanimadores (quando não desoladores) de crescimento econômico154. Além disso, como bem ressaltou Aluizio Porcaro Rausch (2016, p.569), a tributação de heranças é “significantemente inferior à da aquisição onerosa pelo trabalho, em termos absolutos”155. Para

154 De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tanto em 2017 quanto em 2018 o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 1,1%; em 2016 o PIB sofreu uma retração de 3,3%, e em 2015, de 3,5%. Mais informações podem ser encontradas em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9300- contas-nacionais-trimestrais.html?=&t=series-

historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=pib%23evolucao-taxa#evolucao-taxa. 155 Conforme Resolução 09/1992 do Senado Federal, a alíquota máxima do Imposto de Transmissão Causa Mortis atualmente é de 8%. Ao mesmo tempo, a do Imposto de Renda da pessoa física é de 27,5% e da pessoa jurídica de 15% sobre o lucro apurado (com adicional de 10% sobre a parcela do lucro que exceder R$ 20.000,00). Aluizio Rausch (2016, p.566) aduz que “é inevitável a conclusão de que a atual tributação de heranças e doações no Brasil, cuja alíquota

agravar esse cenário, profissionais oferecem seus serviços de “planejamento sucessório”156, justamente para, entre outras finalidades, reduzir ao máximo o valor do imposto de transmissão devido à Fazenda Pública.

Marcos Catalan (2010, p.141-142) argumenta que nada justifica a manutenção de um sistema sucessório que apenas legitima a transmissão de patrimônio acumulado ao longo de um processo histórico de apropriação de riqueza, ao mesmo tempo em que grande parte da população brasileira ainda continua experimentando miséria e exploração. Nesse mesmo sentido, pouco tempo após a promulgação da Constituição de 1988, Dalmo Dallari publicou um artigo em tom pessimista. Dallari (1993, p.430) denunciou um conflito aparente entre duas orientações diferentes dentro da Constituição, “uma fortalecendo os Direitos Humanos e ampliando suas garantias e outra privilegiando os interesses econômicos”. Para ele, o conflito seria meramente aparente na medida em que, no conjunto, a Constituição prioriza a pessoa humana e subordina a atividade econômica aos direitos fundamentais e interesses sociais. Apesar disso, e a despeito de trazer como princípios expressos a função social e a redução das desigualdades sociais, a Constituição também “manteve integralmente e sem restrições o direito de herança, por força do qual haverá brasileiros nascendo muito ricos ao lado de outros que já nascerão miseráveis, porque só herdarão a miséria dos seus pais” (DALLARI, 1993, p.432). Sua conclusão é a de que “os Direitos Humanos ainda não adquiriram existência real para grande número de brasileiros”, uma vez que “a marginalização social é imensa e a discriminação econômica e social está apoiada na própria Constituição” (DALLARI, 1993, p.436). Mais de uma década depois, depois, Daniel Sarmento (2006, p.01) também ressaltou o abismo que meia as promessas generosas da Constituição e a realidade nacional: “a Constituição fala em justiça social, mas o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo”.

máxima é 8%, é extremamente injusta, anacrônica e, por permitir excessivo acúmulo intergeracional de riqueza, desestimula o trabalho, leva a menor desenvolvimento econômico e a maior pobreza, e ofende a democracia e a meritocracia”.

156 Agradecemos aqui ao Professor Leandro Reinaldo da Cunha, que no Exame de Qualificação da presente Tese levantou a interessante questão: não estaria o planejamento sucessório, em contrariedade à visão constitucionalizada que adotamos, fomentando excessivamente a patrimonialização da sucessão hereditária? Se esse planejamento estiver focado principalmente em medidas visando à redução do tributo a ser pago, a resposta é positiva. Infelizmente, aparentemente essa é a tendência; faltam-nos os dados necessários para fazer uma afirmação peremptória nesse sentido. De todo modo, não descartamos a existência de um planejamento sucessório constitucionalizado, focando na busca por uma partilha que atenda, por exemplo, à proteção a sucessores vulneráveis, à promoção da função social da posse, à distribuição mais cômoda a todos os envolvidos, ao respeito ao direito à moradia dos envolvidos.

Agravando o cenário acima descrito, observamos também que a transmissão intergeracional de riqueza é potencializada quando levamos em consideração que ela não envolve pura e simplesmente a transferência causa mortis de patrimônio. Liam Murphy e Thomas Nagel, em The Myth of Ownership: Taxes and Justice (2003, p.143; p.159-160), analisam a herança enquanto uma relevante fonte de desigualdade econômica na sociedade157. Ademais, ressaltam que outro fator

promotor da desigualdade social é a passagem de capital humano, em especial vantagens educacionais, o que ocorre no seio da família antes da idade na qual as pessoas geralmente se tornam herdeiras. A esse respeito, os autores sugerem que uma solução para essa questão é a educação pública universal de qualidade. Mark Ascher (1990, p.71) também apontou que há diferenças em habilidade, sorte e educação que impedem que a competição na seara econômica não seja isonômica; e que, apesar disso, sem uma boa razão, a sociedade permite que alguns competidores – notadamente aqueles que já têm mais vantagens educacionais e culturais – herdem enormes riquezas, não merecidas em qualquer sentido.

Em Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive, Jessé Souza (2009, p.15-20) aponta que o processo de competição social já está pré-definido na socialização familiar produzida por “cultura de classe” distintas. O mencionado autor ressalta que facilmente se enxerga a herança material, mas a perspectiva economicista não presta atenção à transferência de valores imateriais na reprodução das classes sociais e de seus privilégios. Para os mais ricos, isso envolve manter certo estilo de vida, saber o que é de “bom tom”, partilhar certo capital cultural; não é apenas o patrimônio que garante acesso a relações sociais privilegiadas (que, por sua vez, permitirão a reprodução do próprio capital material158). Por outro lado, na classe média se verifica ainda mais intensamente o papel significativo da herança imaterial, na medida em que as transmissões patrimoniais causa mortis são de valor menos elevado. Com a chamada “transmissão afetiva”159,

157 Ressalvamos, porém, que os autores focam especificamente na questão da tributação da transmissão de riqueza causa mortis.

158 Essas relações sociais privilegiadas também facilitam o acesso a oportunidades melhores no mercado de trabalho. O filho do empresário de sucesso, para além da herança e da educação de alto nível, também receberá do seu ascendente indicações para cargos de prestígio. Nesse sentido, recomendamos o livro de Daniel Halliday (2018, p.148). Para uma análise mais aprofundada do fenômeno do nepotismo no mercado de trabalho, em especial no setor privado, remetemos o leitor para o artigo de Robert G. Jones e Tracy Stout (2015).

159 “O filho ou filha da classe média se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a mãe lendo um romance, o tio falando inglês fluente, o irmão mais velho que ensina os segredos do computador brincando com jogos. O processo de identificação afetiva — imitar aquilo ou quem se ama — se dá de modo “natural” e “pré-reflexivo”, sem a mediação da consciência, como quem respira ou anda, e é isso que o torna tanto invisível quanto extremamente eficaz como legitimação do privilégio” (SOUZA, 2009, p.18).

legitimam-se os privilégios e se reproduzem certas precondições que darão à nova geração da classe média a possibilidade de competir com chances de sucesso no mercado de trabalho: capital cultural, predisposição para o aprendizado, concentração e disciplina. A inexistência de todos esses fatores nas classes mais baixas representa as raízes familiares da reprodução e legitimação dos privilégios de classe, nos sentidos econômico e cultural.

A combinação entre sucessão causa mortis e a transferência de capital humano aos filhos foi estudada por Daniel Halliday (2018, p.123-152). A tese de Halliday é que a transmissão intergeracional de riqueza não pode ser analisada como um fenômeno isolado, mas sim como um elo em uma cadeia de transferências com efeito cumulativo. Halliday menciona o grandparent effect: pais que receberam herança dos próprios pais têm um potencial maior de transmitir capital humano para os seus filhos, além do próprio patrimônio hereditário material. Existem práticas de criação dos filhos que não consistem em transferências formais de riqueza, mas ao mesmo tempo comprovadamente exercem um impacto positivo em relação às vantagens competitivas: leituras para a criança, ajuda com o dever de casa, exposição à cultura, atividades extracurriculares. Halliday documenta como a existência de riqueza herdada ajuda a aumentar e melhorar essas práticas no seio das famílias em gerações sucessivas. Em sua opinião, há aos menos três razões pelas quais pais mais ricos têm melhores condições de transmitir capital humano para sua prole160: eles têm que passar menos tempo trabalhando e, portanto, têm mais tempo livre para acompanhar os filhos nas atividades; eles têm mais dinheiro para bancar as atividades extracurriculares desde a mais tenra idade dos filhos; e eles buscam um maior investimento na educação formal dos filhos, na medida em que outros pais de mesma classe social estão fazendo o mesmo. Dessa forma, pais que herdaram estão em melhor posição de proporcionar vantagens competitivas aos seus filhos do que aqueles que não herdaram. Assim, para Halliday, os efeitos cumulativos da herança tornam a sucessão causa mortis um mecanismo que permite a replicação, de uma geração para outra, de uma concentração de capital tanto patrimonial quanto extrapatrimonial.

Reconhecer o papel da herança no fenômeno de concentração de riqueza é ainda mais problemático quando se levam em conta os objetivos fundamentais da República, em especial a

160 E aqui não estamos, de maneira alguma, afirmando que pessoas mais ricas criam melhor os seus filhos; compreendemos, sim, que o dinheiro facilita proporcionar aos filhos futuras vantagens competitivas no mercado de trabalho.

construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; e a redução das desigualdades sociais.

De forma a combater os efeitos negativos do fenômeno hereditário, entre os quais o principal podemos identificar como sendo a concentração de riqueza, já se defendeu a extinção da sucessão causa mortis. Assim, por exemplo, em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels (1997) publicaram seu Manifest der Kommunistischen Partei. Entre as sugestões ali apresentadas, eles defenderam a abolição do direito de herança. Já em 1869, escrevendo só, Karl Marx161 (2005)

afirmou que o direito sucessório, assim como qualquer outra legislação burguesa, não é a causa e sim o efeito da organização econômica fundada na propriedade privada dos meios de produção; nesse sentido, o desaparecimento da herança “será o resultado natural de uma mudança social que suplantará a propriedade privada dos meios de produção”. Marx então afirmou que a abolição da sucessão hereditária “não pode ser jamais o ponto de partida de uma tal remodelação”, pois isso “significaria apenas desviar a classe trabalhadora do verdadeiro centro de atenção da sociedade contemporânea”. Marx então sugeriu como medidas transitórias: a ampliação da tributação sobre a herança; a aplicação dos respectivos fundos em projetos de emancipação social; bem como a limitação do direito de testar.

Anton Menger (1898, p.394) entendia que o Direito das Sucessões era uma instituição aristocrática, na medida em que o regime hereditário favorece a aglomeração de riqueza nas mãos de poucos, fazendo com que o número de pobres aumente e a sua vida seja pior. Segundo ele, a estrutura do direito sucessório exerce um influxo decisivo sobre a estratificação das classes sociais. Menger (1908, p.09) defendia a criação de um Estado Democrático do Trabalho, no qual haveria herança apenas de bens de consumo. Segundo o jurista austríaco, uma restrição dessas eliminaria um dos aspectos mais obscuros do direito, qual seja, a sorte do indivíduo estar ligada ao seu nascimento, não ao seu mérito. Para Menger (1908, p.05), seria de supremo interesse que os bens acumulados fossem, com a morte do dono, distribuídos racionalmente entre as novas gerações.

Harlan Eugene Read (1918, p.03) chegou a afirmar que riqueza herdada é inimiga da liberdade, perpetuadora de desigualdades, reprodutora de pobreza e aristocracia. Para ele, a herança

161 “O Direito de herança possui apenas importância social na medida em que deixa para o herdeiro o poder exercido pelo falecido durante o tempo em que viveu, nomeadamente: o poder de atribuir a si mesmo, por meio da propriedade do de cujus, os frutos do trabalho alheio” (MARX, 2005).

rouba da nova geração as suas oportunidades e, portanto, deve seguir o caminho da monarquia162 e da escravidão em direção à lista de coisas do passado. A conclusão de Read (1918, p.138) é simples e direta: não pode haver civilização perfeita enquanto o poder de herdar riqueza não for inteiramente destruído163. No Brasil, encontramos em Alvaro Costa (1939, p.55) um crítico à noção de direitos hereditários, que, sendo um privilégio comparável aos antigos privilégios de casta e de sangue, devem ser condenados pela economia política.

Costumamos encontrar na doutrina referências às experiências comunistas de abolição da sucessão hereditária. Ocorre que, conforme Frances Foster-Simons (1985, p.35-43) relata, o direito sucessório, tanto na União Soviética quanto na China, acabou se expandindo em vez de desaparecer; a herança não apenas sobreviveu, como se institucionalizou e se expandiu. Na União Soviética, não houve abolição absoluta da herança. Em 1918, aproximadamente 4 meses após a tomada do poder, os soviéticos de fato determinaram que, com a morte do proprietário, todos os seus bens móveis e imóveis se tornariam propriedade da República Soviética Russa. Ocorre que desde incialmente já havia exceções em favor de certos parentes, em casos específicos164. Em 1922, o Código Civil institucionalizou novamente os direitos sucessórios na União Soviética; em 1936, a herança ganhou status constitucionalmente garantido. Em 1945, o Código Civil Soviético foi emendado, e o regime sucessório ali adotado muito se assemelhava aos demais sistemas codificados do restante da Europa. Na década de 1960, a União Soviética passou a permitir uma liberdade testamentária semelhante à de países capitalistas.

Por outro lado, na lição de Frances Foster-Simons (1985, p.37-44), os comunistas chineses não decretaram a abolição da herança, ao contrário dos soviéticos; ela foi mantida como um vestígio da China pré-comunista. O governo ignorou a herança, focando em reestruturar

162 Read (1918, p.80-82) chega a traçar um paralelo entre os argumentos a favor da herança e a teoria do Direito Divino dos Reis. Em primeiro lugar, trata-se da vontade do de cujus ou do rei morto. Em segundo lugar, há um direito