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3 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DO DIREITO SUBJETIVO À HERANÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

3.3 FUNÇÃO DA HERANÇA

3.3.5 A função social da herança

Na seção 3.1.2.1 descrevemos o direito fundamental à herança enquanto componente de uma ordem de valores fundamentais objetivos. Argumentamos que, em conformidade com sua dimensão objetiva, os direitos fundamentais não devem ser analisados exclusivamente com base no ponto de vista da pessoa individualmente considerada, mas também sob a perspectiva social, isto é, da comunidade como um todo. Sustentamos também a dificuldade atual em se sustentar que um direito é exclusivamente particular ou individual, não considerando o interesse público ou coletivo. Por essa razão, rechaçamos a conclusão apressada de que o direito fundamental à herança se trata apenas de um direito subjetivo e individual que interessa apenas aos sujeitos envolvidos no fenômeno sucessório, quais sejam, sucedido (de cujus) e sucessores. Antecipamos, na mencionada seção, que podemos identificar interesses da coletividade relativos ao direito à herança; e que esses interesses sociais podem atuar enquanto fatores de limitação do conteúdo e alcance do referido direito.

Adotamos na presente Tese a metodologia civil-constitucional. Consequentemente, abandonamos a concepção tradicional de que os institutos jurídicos estão à livre disposição do indivíduo e de sua vontade; acreditamos que o exercício de qualquer direito – inclusive a herança – deve transcender os interesses individuais (sem, obviamente, desconsiderá-los). Desse modo, a postura metodológica que utilizamos, na esteira de Anderson Schreiber (2013, p.20), enfatiza a “necessidade de que os institutos jurídicos de direito civil, outrora compreendidos como meros instrumentos de perseguição do interesse particular, sejam redirecionados à realização dos valores constitucionais, em especial à realização da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana”. Como bem expôs Paulo Lôbo (2017, p.147), na medida em que a Constituição de 1988 orientou a transição do paradigma individualista e liberal das titularidades, também o Direito das Sucessões está direcionado à função social.

Na presente seção, então, apontaremos de que forma os interesses da coletividade limitam o conteúdo e alcance do direito subjetivo à herança, ou seja, conformam o seu âmbito de proteção.

Dessa maneira, identificaremos uma função social da herança165, de modo a tornar esse direito verdadeiramente compatível com a tábua axiológica constitucional, em especial a promoção da dignidade da pessoa humana; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; e a redução das desigualdades sociais.

Sobre o interesse social no fenômeno hereditário, Jens Beckert (2010, p.14) relembra, ainda, que a herança já foi encarada como um mecanismo de modernização e reforma da sociedade, envolvendo discussões sobre igualdade, liberdade e justiça social. O autor alemão reconhece, porém, que o interesse na questão vem amplamente desaparecendo, em razão de fatores como a antipatia em relação à tributação causa mortis; a falta de solidariedade decorrente das pressões sobre a classe média; a ideia de que a herança é uma proteção à própria prole contra as adversidades do mercado; e a legitimação social do crescente desejo de enriquecer independentemente de performance individual (seja por trabalho, por ser uma celebridade, pela loteria ou até mesmo pela herança). Acreditando no papel transformador do Direito, em especial com o direcionamento da metodologia civil-constitucional, pretendemos resgatar aquela postura original apontada por Jens Beckert.

3.3.5.1 Restrição à ocorrência do fenômeno sucessório

Precisamos primeiramente analisar criticamente a ideia de que, para compatibilizar a herança com os interesses sociais, devemos restringir direitos sucessórios apenas a casos específicos, especialmente quando os sucessores se encontram em posição de vulnerabilidade.

Marcos Catalan (2010, p.144) sustenta não há conflito entre, de um lado, as garantias à propriedade e à herança e, de outro, a busca da redução das desigualdades sociais. O mencionado autor entende que há fundamento constitucional, então, para que se determine que parte da herança seja distribuída aos necessitados; o que falta é vontade política para tomar essa medida. A sugestão de Catalan (2010, p.145-146) é a criação de um fundo de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, a ser gerido pela iniciativa privada sob a fiscalização do poder público.

165 Destacamos aqui que buscaremos “uma”, e não “a”, função social da herança. Como Tepedino e Schreiber (2000, p.49) afirmaram, é “infrutífera resulta a tentativa de atribuir conceito unitário para a função social, visto tratar-se de noção flexível, variável”.

Catalan (2010, p.142-143) ressalva, porém, que a questão passa pelo respeito à transmissão do mínimo para a subsistência digna dos filhos menores ou de outros sucessores sem condições para o trabalho (ou seja, assegurando-se-lhes o mínimo existencial); e que, ao menos inicialmente, não se deve causar a redução drástica do padrão econômico familiar. Semelhantemente, Mark Ascher (1990, p.73) propôs que a herança não fosse sempre protegida, mas apenas tolerada estritamente quando necessária – ou seja, em casos excepcionais, como uma pessoa sem aptidão para prover o próprio sustento e que dependia do morto.

Por quatro razões entendemos inadequada a proposta de se fazer justiça distributiva limitando a sucessão causa mortis às hipóteses de vulnerabilidade. Em primeiro lugar, conforme discutimos na seção 3.1, a herança foi incluída pelo constituinte no rol de direitos fundamentais e, como tanto, deve ter seu núcleo essencial preservado. Tornar a transmissão hereditária uma exceção, e não uma regra, é subverter a lógica do sistema, segundo a qual os direitos fundamentais devem ser promovidos. Em segundo lugar, acreditamos se tratar de um contrassenso querer conformar um instituto do Direito Civil aos interesses da sociedade basicamente abolindo o referido instituto. Em terceiro lugar, como demonstramos na seção 3.3.1, existem situações nas quais mesmo o sujeito apto para o trabalho tem interesse constitucionalmente tutelado em receber herança. Em quarto lugar, por fim, não se pode ignorar que algumas incapacidades (notadamente a por idade) são passageiras, enquanto a transmissão causa mortis de propriedade é definitiva. Nesses casos, quando o herdeiro supervenientemente adquirisse capacidade, haveria uma desigualdade injustificada em relação a pessoas de mesmo vínculo com o de cujus que nada receberam porque, no momento da morte, já eram capazes.

3.3.5.2 Alteração estrutural do direito subjetivo à herança

Como Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber (2000, p.47) ensinam, a ideia original de função social nasce como antítese do direito subjetivo à propriedade, representando a propriedade como um dever, uma tarefa166. Na Itália, a doutrina deu um melhor sentido a essa concepção,

compreendendo a função social como um elemento capaz de alterar a estrutura do direito subjetivo.

166 Remetemos o leitor à obra clássica de León Duguit (1923). Mencionaremos novamente mais à frente a fundamental concepção de função social elaborada por este autor francês.

Assim, a função social é inserida no perfil interno do direito, atuando como critério de valoração do seu exercício. Isso não significa, porém, que o direito subjetivo se torna exclusivamente social; ele ainda atende, sim, aos interesses individuais do seu titular. Entretanto, reconhece-se uma capacidade expansiva do direito subjetivo, no sentido de atender simultaneamente também aos interesses daqueles que dele não são titulares.

Dessa forma, Gustavo Tepedino (2004b, p.317) leciona que, com o fenômeno da funcionalização, a propriedade deixa de ser uma atribuição de poder com potencial de plenitude, de acordo com a qual o proprietário teria liberdade irrestrita para o exercício do seu domínio sobre o bem. No contexto de função social, “a determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade”. Semelhantemente, na esteira de Pietro Perlingieri (2008, p.677), entendemos que a tutela jurídica de um direito depende de sua conformidade tanto com o interesse do titular quanto o da coletividade. É nesse contexto que surge o que Perlingieri chama de “crise do direito subjetivo”:

enquanto este nasceu para exprimir um interesse individual e egoísta, a complexidade das situações subjetivas – pela qual em cada situação estão presentes momentos de poder e de dever, de modo que a distinção entre situações ativas e passivas não deve ser entendida em sentido absoluto – exprime a configuração solidarista do nosso ordenamento constitucional.

Compreendemos, assim, que, após uma filtragem constitucional, a estrutura do direito subjetivo à herança é alterada. Não se eliminam dela os interesses individuais, em especial os daqueles sucessores ligados ao sucedido por vínculos familiares ou beneficiados em testamento. O que a releitura do fenômeno hereditário à luz da Constituição faz é determinar que o conteúdo do direito à herança dependa também de centros de interesses não-herdeiros, ou seja, da coletividade, passando a ter assim uma configuração solidarista.

Acreditamos então que a função social da herança é atendida quando os interesses individuais e familiares envolvidos fenômeno hereditário estão em conformidade com os interesses da coletividade. Existem casos em que isso é evidente. Assim, por exemplo, há violação da função social da sucessão causa mortis um testamento no qual se afasta um herdeiro (mesmo que apenas da parte disponível) por motivações machistas, racistas, homofóbicas ou transfóbicas. A sociedade como um todo é atingida por uma disposição como essa, ainda que o diretamente patrimonialmente

prejudicado seja um único indivíduo; por essa razão, o juízo do inventário deve recusar o registro e cumprimento de tal negócio jurídico. Com base na doutrina de Ana Luiza Maia Nevares (2009, p.184), compreendemos que o controle quantitativo das disposições testamentárias é insuficiente para assegurar que os valores constitucionais sejam tutelados e realizados; dessa forma, acreditamos ser necessário o desenvolvimento da noção de tutela qualitativa da liberdade testamentária, sobre o que trataremos na seção 4.1.2.2.

De forma semelhante, há descumprimento da função social da herança quando se reconhecem direitos sucessórios em favor de pessoas que praticaram atos excessivamente reprováveis em desfavor do sucedido. É nesse sentido que entendemos adequada a reforma legislativa que introduziu a legitimidade do Ministério Público para demandar a exclusão por indignidade do sujeito que tenha atentado contra a vida do de cujus ou de pessoas próximas a ele167. Por essa mesma razão, na seção 5.4.4.2 defenderemos a inclusão do abandono e da violência doméstica entre as causas de indignidade.

Também há violação da função social da sucessão hereditária quando se dá injustificadamente tratamento desigual a pessoas em situações semelhantes. Essa é uma das razões que justificaram a declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, do tratamento sucessório dado pelo Código Civil de 2002 à união estável. Por outro lado, argumentaremos na seção 5.4 que descumpre a função social da herança garantir mera igualdade formal a possíveis sucessores em condições materialmente distintas.

3.3.5.3 Os deveres associados ao direito à herança

Devemos, por fim, conciliar a noção de herança ao dever de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, estabelecido como primeiro objetivo fundamental da República pela Constituição Federal de 1988168. A tutela da pessoa humana se relaciona inseparavelmente com a solidariedade: “ter cuidado com o outro faz parte do conceito de pessoa” (PERLINGIERI, 2008, p.461). A Constituição coloca a solidariedade social em uma posição normativa privilegiada. Para

167 A Lei 13.532/2017 inseriu essa possibilidade no art.1815 do Código Civil de 2002. 168 Art. 3o, I.

Nelson Rosenvald (2018, p.01), a solidariedade deixa de ser reputada como um sentimento genérico de fraternidade, sendo entendida como um princípio que é dotado de exigibilidade; ela “se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo a fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum”. De acordo com Ana Luiza Maia Nevares (2008, p.627), a Constituição não determina que uma pessoa efetivamente sinta algo de bom pela outra, mas que aja como efetivamente sentisse; “tem-se, portanto, o que podemos chamar de solidariedade objetiva, ou, em outras palavras, dever de solidariedade”. A solidariedade social é projetada nas normas do assim tradicionalmente chamado Direito Privado por força do princípio da função social, que “indica um rumo a seguir, oposto ao do individualismo predatório” (MARTINS-COSTA, 2005, p.41).

Não podemos reduzir, no plano da sucessão hereditária, a solidariedade constitucional à noção de solidariedade familiar. Como bem ressaltou Pietro Perlingieri (2008, p.462), a solidariedade constitucional não se restringe aos confins de um único grupo social, mas impõe a cooperação e a igualdade na concretização da dignidade social de todas as pessoas. Rosa Maria de Andrade Nery (2011, p.763-764) ressalta a transição da ideia primitiva de proteção ao grupo para atingir aqueles que não pertencem ao grupo; “a passagem da ideia da solidariedade em face dos seus, para a de solidariedade para com todos, convive com a transposição dos conceitos jurídicos em torno da tribo/cidade e ainda marca, de alguma forma, os nossos dias”. Conforme a autora sustenta, nas diferentes vertentes do Direito Privado há reflexos dessa contraposição entre, de um lado, a realização dos interesses dos seus, e, de outro, os interesses dos outros169. Como vimos, a solidariedade familiar é um princípio conformador do Direito das Sucessões; entretanto, ele não justifica a transmissão de enormes patrimônios hereditários, que por sua vez contribuem para a concentração de riqueza e aumento das desigualdades sociais. Assim, concluímos que o fenômeno hereditário deve ser orientado também pela solidariedade em relação à coletividade como um todo, não apenas à família do falecido.

Pietro Perlingieri (2008, p.925) afirma ainda que a sucessão causa mortis é instrumento de tutela do indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, o ordenamento realiza obra de justiça distributiva

169 Para Rosa Nery, no fenômeno hereditário, essa questão se relaciona com as discussões sobre a fundamentalidade do direito de sucessão hereditária e testamentária, bem como sobre a tributação pesada sobre transmissão causa mortis de grandes fortunas.

freando a sucessão hereditária que supere uma certa consistência; para isso, são utilizados gravames, deveres específicos e ônus. Por outro lado, Luiz Edson Fachin (2012, p.180) argumenta que o regime jurídico das titularidades não se limita aos interesses dos titulares atuais, ou seja, daquelas pessoas que, em determinado momento, são os sujeitos concretos de um patrimônio específico; esse regime jurídico deve coexistir com a “garantia de um patamar digno de bens materiais indispensáveis à vida, proporcionar vias reais de acesso a essa esfera jurídico- patrimonial”.

Encontramos em Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p.27-28) um adicional ponto de partida para nossa concepção de funcionalização do direito à herança. Na seção 3.1.1.2 mencionamos a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. O reconhecimento dessa eficácia é um pouco mais problemático em se tratando de direitos a prestações sociais. Nesse sentido, Sarlet afirma que “os particulares não estão obrigados, em princípio e com base nas normas de direitos fundamentais sociais, a edificar escolas e hospitais, fornecer medicamentos ou outras prestações sociais típicas”. Apesar disso, não é possível reduzir a oponibilidade desses direitos sociais apenas em face do Estado; por exemplo, pelo menos os direitos dos trabalhadores são expressamente e diretamente vinculantes nas relações entre particulares, inclusive aqueles que envolvem prestações, como o salário mínimo170 e os adicionais de insalubridade e periculosidade171. Além disso, aos direitos a prestações também é reconhecida aplicabilidade imediata172. Da mesma forma, o princípio da solidariedade “implica deveres de solidariedade decorrentes da própria dignidade da pessoa”; sob essa perspectiva, ele pode ser utilizado como argumento a justificar uma eficácia de direitos a prestações fáticas em relação a particulares. Sarlet ressalva, porém, que é necessário ter cautela, na medida em que “também em homenagem ao bom nome da solidariedade é sempre possível justificar uma limitação excessiva da dimensão individual e subjetiva dos direitos fundamentais”.

De acordo com Daniel Sarmento (2008, p.295-297), a construção da sociedade justa e igualitária projetada pela Constituição é um dever tanto do Estado quanto de toda a sociedade e de cada um dos seus integrantes, na medida das respectivas possibilidades. Para Sarmento, a solidariedade é um princípio jurídico dotado de certo grau de eficácia imediata, apesar da sua

170 Constituição Federal de 1988, art. 7o, IV. 171 Constituição Federal de 1988, art. 7o, XXIII. 172 Constituição Federal de 1988, art. 3º, § 1º.

abertura e indeterminação semântica; ela significa que a sociedade não é um espaço de concorrência entre indivíduos isolados, mas de assunção de responsabilidades comuns, em especial em benefício daqueles que se encontrarem em situação de maior vulnerabilidade. Por essa razão, segundo Sarmento, justifica-se a concepção de que, sem excluir dever primário do Estado, os particulares também têm um dever secundário de assegurar os direitos sociais. Semelhantemente, em Pietro Perlingieri (2002, p.38) encontramos a noção de que os direitos sociais possuem como pressuposto e fundamento uma forte carga de solidariedade e devem ser entendidos como instrumentos para construir uma comunidade.

Também encontramos em Perlingieri (2008, p.940) a ideia de que, por força da solidariedade, “o conteúdo da função social assume um papel promocional”. Para o autor italiano, isso significa que o regime jurídico do direito subjetivo deve não apenas garantir, mas também promover os valores fundantes do ordenamento jurídico. Perlingieri (2002, p.113; p.107) defende ainda que a configuração solidarista do ordenamento é exprimida pela complexidade das situações subjetivas, que são compostas de poderes, deveres, obrigações e ônus. Pietro Perlingieri (2008, p.16) acentua que o Estado Social não apenas se funda sobre direitos, mas também sobre deveres sociais; “a democracia é também a assunção de responsabilidades”. Para o autor italiano, a crise do Estado Social vem justamente do fato de a cultura dos deveres não ser difusa. Perlingieri (2008, p.728-729) defende então uma perspectiva relacional do ordenamento, que examina as correlações entre as diferentes situações jurídicas: “não é suficiente aprofundar no poder atribuído a um sujeito se não se compreende ao mesmo tempo os deveres gerais, os deveres específicos, os interesses dos outros”. O autor italiano propõe, dessa forma, a superação da tendência a se construir os institutos do Direito Civil exclusivamente em termos de atribuição de direitos. Conforme Pietro Perlingieri (2002, p.120-121), o mais básico dever que acompanha o direito subjetivo, que o funcionaliza e socializa, é o relativo ao seu exercício em harmonia com o princípio da solidariedade política, econômica e social, sem provocar danos excepcionais aos outros.

Semelhantemente, Ricardo Luis Lorenzetti (1998, p.312) afirma que a funcionalização outorga um feixe unificado de direitos, deveres, poderes e faculdades ao titular de um direito, para que este seja regularmente exercido em conformidade com sua finalidade social. No mesmo sentido, Luiz Edson Fachin (2012, p.317) relaciona a ideia de interesse social à noção de “distribuição de cargas sociais, ou seja, da previsão de que ao direito subjetivo da apropriação também correspondem deveres”.

Assim como Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber (2000, p.48-49), entendemos que a função social remodela o conteúdo interno do direito subjetivo, vinculando-o ou gravando-o com deveres de atuação, tanto negativa quanto positiva; com a funcionalização, passam a ser exigidas atuações positivas do titular do direito, para que se adeque ao que dele se espera na sociedade. Podemos estender os comentários dos referidos autores, que se referem especificamente à propriedade, para os direitos subjetivos de modo geral: de um lado, estes passam a enfeixar poderes, deveres, ônus e obrigações; de outro, seu conteúdo passa a ser modelado levando em consideração, também, os interesses de quem não é titular.

É dessa forma que fundamentamos a existência de deveres atribuídos aos sujeitos envolvidos na sucessão causa mortis. Tanto sucedido quanto sucessor devem participar do fenômeno hereditário atuando para a promoção dos valores constitucionais, beneficiando assim toda a coletividade. A existência desses deveres independe de quanta riqueza foi transmitida causa mortis; entretanto, quanto maior o acervo hereditário, maiores as exigências daí decorrentes.

Por força do esquema rígido de vocação hereditária estabelecido no Código Civil, potencialmente haverá dependentes do de cujus que não terão título legal ao acervo hereditário necessário para a sua subsistência. Alguns não serão chamados, outros terão de repartir patrimônio igualmente com sucessores que estão em condições de prover adequadamente o próprio sustento. No capítulo 5, defenderemos reformas legislativas que adequem a sucessão intestada aos fundamentos e funções que lhe são atribuídos pela Constituição Federal. Enquanto isso não é feito, enxergamos a existência de um dever do sucedido/testador, no sentido de buscar beneficiar o mais adequadamente possível essas pessoas pela via testamentária.

Ocorre que devemos reconhecer também a possibilidade de o falecido não cumprir com os referidos deveres, ou seja, não remediar os graves defeitos da sucessão ab intestato por via da sucessão testamentária. Como discutiremos na seção 4.3, a própria lei dificulta excessivamente tanto a feitura quanto o registro e o cumprimento do testamento; por essas e outras razões, na seção 5.6 demonstraremos que a sucessão testamentária é remédio insuficiente para compensar o mau trabalho legislativo em matéria de sucessão intestada. Também precisamos refletir até que ponto