• Nenhum resultado encontrado

A função individual da herança e o equívoco de se entender a herança como um direito exclusivamente individual

3 PROPOSTAS DE RELEITURA CRÍTICA DO DIREITO SUBJETIVO À HERANÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

3.3 FUNÇÃO DA HERANÇA

3.3.1 A função individual da herança e o equívoco de se entender a herança como um direito exclusivamente individual

A herança é um direito subjetivo com claro caráter de proteção aos interesses individuais dos envolvidos no fenômeno hereditário, tanto do sucedido quanto do sucessor.

Em relação aos interesses do sucedido, é claro que existem componentes relacionados à sua autonomia privada (em especial quando elabora testamento) e ao seu direito de propriedade. Sua vontade real orienta a sucessão testamentária, enquanto a busca por sua vontade presumida é um dos fatores que o legislador deve levar em consideração ao estruturar a sucessão ab intestato. Contudo, conforme discutimos nas seções 3.2.1 e 3.2.2, devemos evitar uma postura de colocar esses elementos como fundamentos (e funções) máximos da sucessão hereditária. Em consonância com a metodologia civil-constitucional, devemos funcionalizar essas situações patrimoniais à realização de interesses existenciais do de cujus. Uma das possibilidades que enxergamos nesse sentido é a noção de continuidade que abordamos na seção 3.2.4. Para além disso, por exemplo, vemos interesses existenciais do sucedido serem atendidos com a destinação dos seus bens para a promoção de assistência material àqueles que dele dependiam.

Por outro lado, o sujeito que de forma mais evidente tem seus interesses diretamente tutelados pela sucessão causa mortis é o sucessor. Afinal, trata-se de quem está recolhendo bens a título gratuito. Devemos ter cuidado, entretanto, para não cairmos no equívoco de achar que o recebimento de patrimônio hereditário é um interesse tutelado em si mesmo; estaríamos reincidindo no patrimonialismo oitocentista que é tanto combatido pela metodologia civil-constitucional. Em conformidade com a tábua axiológica da Constituição, o direito à herança é tutelado enquanto instrumento de promoção da personalidade daquele que por ele beneficiado.

De fato, em muitos casos pode existir um forte vínculo entre o fenômeno hereditário e a subsistência digna do herdeiro. A título ilustrativo, Elizabeth Cooper e Kate Bird (2012, p.528) ressaltam que há evidências ligando a pobreza à falta de acesso à herança. Segundo as autoras, a

negativa de direitos sucessórios pode isolar indivíduos e exacerbar sua vulnerabilidade econômica; por exemplo, mulheres tendem a ser mais vulneráveis à pobreza nos países que não reconhecem um direito feminino à herança.

Nesse mesmo sentido, o UN Millennium Project133 (2005, p.66; p.88), sugeriu que assegurar os direitos de propriedade e de herança às mulheres seria um mecanismo de empoderamento feminino tanto econômico quanto social. Do mesmo modo, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a primeira meta é a erradicação da pobreza, em todas as suas formas e em todos os lugares. O item 1.4 dessa meta consiste, entre outras coisas, em assegurar a todos os homens e mulheres, em especial os pobres e vulneráveis, direitos à propriedade e à herança134. Por essas razões, aderimos então ao pensamento de Heloisa Helena Barboza (2008, p.322), segundo quem “a herança tem, desde 1988, função mais relevante: a de contribuir para a proteção da pessoa humana, assegurando-lhe condições dignas de sobrevivência, e permitindo o pleno desenvolvimento de suas potencialidades”. Encontramos assim, com base em seu perfil funcional, um dos possíveis fundamentos para a sucessão causa mortis.

Receber herança se relaciona com a dignidade humana especialmente nos casos em o sujeito teria a sua subsistência comprometida se não fosse beneficiado pelo patrimônio sucessório. Enxergamos essa situação, a título ilustrativo, se, com a morte do dono do imóvel, as pessoas que com ele viviam ficassem desabrigadas. Semelhantemente, se, com o falecimento da pessoa provedora, seus dependentes não tivessem os meios de prover o próprio sustento. Podemos ver essa conexão até mesmo nos casos em que o estilo de vida dos envolvidos sofreria uma dramática e desarrazoada queda por força da morte de quem o bancava.

Quando reconhecemos a conexão entre herança e subsistência digna, compreendemos o porquê de os sistemas jurídicos de modo geral se preocuparem em especial com aqueles que tinham o de cujus como provedor. Encontramos aí um dos fundamentos para as restrições quantitativas à liberdade de testar, tópico que enfrentaremos na seção 4.1.2.1. Dessa forma, é pela proteção a essas

133 O UN Millennium Project é um órgão consultivo independente, ligado ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, que propõe as melhores estratégias para o atingimento das Metas do Milênio da ONU.

134 “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. 1.4. Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, particularmente os pobres e vulneráveis, tenham direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a serviços básicos, propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos naturais, novas tecnologias apropriadas e serviços financeiros, incluindo microfinanças” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015).

pessoas que teriam, por exemplo, sua moradia comprometida ou seu sustento prejudicado que conseguimos justificar, abstratamente, a ideia de sucessão forçada. Também aqui encontramos o fundamento para que um dos critérios norteadores da estruturação da sucessão ab intestato sejam os deveres do falecido para com certas pessoas, tema que aprofundaremos na seção 5.1.

Devemos, porém, evitar a ideia reducionista de que a função primordial da herança é, sempre e necessariamente, a promoção da subsistência do herdeiro. A proteção da pessoa e o desenvolvimento da sua personalidade não se restringem a quem é vulnerável e impossibilitado de trabalhar. Portanto, não vemos como intrinsecamente inadequada a transmissão hereditária em favor de quem não é vulnerável. Por essa razão, admitimos a sucessão causa mortis (tanto legítima quanto testamentária) mesmo nos casos em que o sucessor não apenas é capaz de prover o próprio sustento como efetivamente o faz. Se pessoas aptas ao trabalho são legitimadas pelo ordenamento jurídico para receber doação, por que não poderiam receber transferências causa mortis?

Podemos então também reconhecer como uma das funções da herança a destinação do patrimônio deixado pelo morto para melhorar as condições de vida daqueles com quem ele mantinha vínculos enquanto vivo, independentemente de aptidão dessas pessoas para prover o próprio sustento, dentro dos limites de razoabilidade. Um sujeito plenamente capaz pode ter interesse legítimo em ser beneficiado pela sucessão causa mortis. A título ilustrativo, há desenvolvimento da personalidade do herdeiro se o patrimônio hereditário for destinado ao aperfeiçoamento acadêmico ou profissional. Semelhantemente, se o imóvel deixado pelo de cujus for utilizado como moradia, significando o fim da obrigação de pagar aluguel, há uma clara proteção à pessoa do sucessor. Por outro lado, se o herdeiro decidir ser empreendedor e o acervo recebido for investido no desenvolvimento de atividade empresarial, a princípio há legitimidade à luz do princípio constitucional da livre iniciativa135. Podemos até mesmo aceitar que a herança seja destinada, no todo ou em parte, ao lazer do beneficiado, na medida em que este é considerado um direito social e uma forma de promoção social, devendo inclusive sendo incentivado pelo Poder Público136. Em todos esses exemplos, pessoas capazes têm a oportunidade de melhorar suas

condições de vida utilizando-se de uma transferência patrimonial a título gratuito, sem que isso de qualquer maneira ofenda, a priori, a Constituição Federal.

135 Constituição Federal de 1988, artigo 170. 136 Constituição Federal de 1988, art. 6º e art. 217.

Por outro lado, nos casos de de cujus muito ricos, os valores transmitidos hereditariamente excedem e muito o necessário para uma subsistência digna. Existe, claro, um interesse individual de o herdeiro receber esse enorme patrimônio sucessório, enriquecer e, em algumas hipóteses, até mesmo se retirar do mercado de trabalho para viver uma confortável vida de rentista. O problema é que esse interesse pode ser considerado egoístico e contrário aos demais valores constitucionais. A Constituição realmente tutela o enriquecimento a título gratuito137 e a possível reprodução intergeracional, com isso, do cenário de desigualdades sociais? Consequentemente, será mesmo que a Constituição protege um direito ilimitado à herança, em especial quando os interesses individuais do sucedido se contrapõem a interesses outros também considerados relevantes?

Partindo das perguntas acima, devemos veementemente afastar a concepção de que o direito à herança tem uma função exclusivamente individual. O fenômeno sucessório indiscutivelmente engloba interesses individuais, como vimos, mas a eles não se reduz. Se assim o fosse, a herança seria entendida como um direito absoluto, um espaço de sobrevivência das características marcantes do Direito Civil oitocentista. Podemos até mesmo afirmar que a função individual da sucessão causa mortis não necessariamente corresponde ao seu principal perfil funcional.

É simplesmente equivocado afirmar que a herança é um direito que diz respeito exclusivamente às esferas individuais dos sujeitos nela envolvidos. Essa concepção era negada até mesmo pela doutrina mais tradicional138. Estudando os discursos sobre herança e o desenvolvimento do Direito das Sucessões na França, na Alemanha e nos Estados Unidos, Jens Beckert (2007, p.84-86) notou 4 esferas que dominam os debates sobre o fenômeno sucessório: seus efeitos em relação à família; seus efeitos econômicos; sua relação com os valores sociais; e suas consequências políticas. Para o autor alemão, a interação dessas esferas influencia no desenvolvimento institucional do Direito das Sucessões em cada país. Quanto à relação entre herança e família, Beckert ressalta a solidariedade familiar, a formação da identidade e os conflitos familiares suscitados por disputas sucessórias. Sobre os efeitos econômicos, Beckert menciona tanto a importância da acumulação intergeracional de patrimônio para a formação do capital,

137 Aqui usamos gratuito como oposição a título oneroso, no sentido de que não há trabalho ou investimento do sucessor que justifique o seu enriquecimento via recebimento de herança.

138 Por exemplo, de acordo com Pontes de Miranda (2005, v. I, p.35) “atendem-se os interesses gerais (estabilidade social, da família e outros proventos coletivos) no determinar-se a sucessão legítima (necessária ou não); bem assim, a interesses do falecido, obedecendo-se ao que, por sua vontade, dispõe no testamento”. Semelhantemente, para Carlos Maximilano (1964, p.346), o elemento individual se reflete na liberdade de testar, um “impulso individualista, expansão do egoísmo” que se abranda por força dos interesses familiares e sociais.

notadamente nas sociedades em desenvolvimento, quanto o impacto negativo da concentração de riqueza. A respeito dos valores sociais, Beckert relaciona o confronto entre os valores de igualdade e liberdade, bem como a perpetuação da distribuição da riqueza e os consequentes impactos nas oportunidades individuais. Por fim, sobre a interferência da herança na política, Beckert aborda discussões sobre como a concentração de riqueza pode tornar o poder econômico uma ameaça à democracia pluralista139.

Aderimos aqui ao pensamento de Ricardo Luis Lorenzetti (1998, p.228), para quem “se o Direito Privado apenas se concentra nos interesses individuais das partes, e não tem em vista uma perspectiva pública, pode apresentar sintomas de invalidade para resolver problemas complexos”. Ao mesmo tempo, com Perlingieri (2008, p.680), entendemos que no ordenamento jurídico vigente não existe direito subjetivo que se destine exclusivamente aos interesses individuais do seu titular; “o que há é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si mesma encerra limitações para o titular”. Por essa razão, rejeitamos reduzir a função da herança à tutela dos interesses dos sujeitos diretamente envolvidos no fenômeno hereditário, em especial do sucessor. O direito à herança é funcionalizado também a outros valores, tanto familiares quanto sociais.

Não nos convence o argumento de que historicamente somente se reconhece a natureza individual dos interesses tutelados pela sucessão hereditária. O perfil funcional da herança não é imutável. Na esteira de Pietro Perlingieri (2008, p.141-142), entendemos que os conceitos jurídicos não são estáticos ao longo da história; pelo contrário, eles podem ser adaptados e utilizados para realizar novas funções. Assim, “com o transcorrer das experiências históricas, institutos, conceitos, instrumentos, técnicas jurídicas, embora permaneçam nominalmente idênticos, mudam de função, de forma que, por vezes, acabam por servir a objetivos diametralmente opostos àqueles originais”. Se o passado da transmissão hereditária é marcado por um forte individualismo, nada impede que a sua revitalização à luz da Constituição resulte em seu direcionamento também para a promoção de outros valores. Buscaremos traçar, então, os demais perfis funcionais da herança, para além da perspectiva individual.

139 Focaremos a presente Tese nas questões individuais, econômicas e sociais. O impacto político da herança (assim como o fenômeno dos “herdeiros políticos”) foge aos objetivos propostos na nossa investigação. Entretanto, reconhecemos se tratar de tema relevante, em especial no Brasil, onde é disseminada a existência dos clãs políticos. Chama a nossa atenção, por exemplo, o fato de o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, ter um filho Senador, outro Deputado e, por fim, outro Vereador no Município do Rio de Janeiro. A respeito da criação de dinastias políticas embasadas em fluxos de herança, recomendamos a leitura de Daniel Halliday (2018, p.151).