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A governança democrática na gestão ambiental

No documento Download/Open (páginas 45-47)

Foi traduzido do Acordo de Durban (IUCN, 2003), que expõe sobre governança:

(...) engloba a interação entre as estruturas, os processos, as tradições e os sistemas de conhecimento, que determinam a forma pela qual se exercem o poder, a responsabilidade e as tomadas de decisão, e na qual os cidadãos e outros interessados diretos expressam sua opinião. (IRVING, GIULIANI e LOUREIRO, 2008, p. 16)

E concluiu-se:

Esta leitura deve se fundamentar no reconhecimento da perspectiva social e na construção de pactos capazes de exprimir a dinâmica de interesses coletivos diante do desafio comum de proteção da biodiversidade, a partir de valores materiais e imateriais, resultantes da historia social e dos diferentes significados e cosmologias de interação com a própria natureza. (IRVING, GIULIANI e LOUREIRO, 2008, p. 16)

Essa dinâmica se insere nas interferências de B. Latour na ecologia política, aquela que responde pelos movimentos ambientalistas que iniciaram a trajetória da preocupação com a manutenção dos recursos naturais e aumento da qualidade de vida. Em “Políticas da Natureza”, Latour (2004) apresenta a Ecologia Política como o campo das disputas de poder da sociedade em torno da construção discursiva, da linguagem que determina as normas relacionadas ao uso de recursos, necessariamente passando por conflitos decorrentes de valores culturalmente diferenciados a respeito também da sua conservação. O movimento ecológico, então, foi lançado pela parcela da população que tem acesso a determinados benefícios oferecidos pelo sistema político-econômico, e a oportunidade de contribuir para os processos sociais hegemônicos, fatalmente influenciando a sociedade como um todo. Os grupos marginalizados deste processo, e que habitam territórios também à margem dos assentamentos privilegiados, comumente se localizam nos limites ou dentro de espaços considerados de “preservação”. Desta forma, fica difícil conciliar uma ideologia surgida no seio de grupos sociais privilegiados, mas que afeta a vida de grupos que não tem acesso aos mesmos benefícios e não compartilham dos mesmos valores. Tais grupos, geralmente quando são convocados à participação nos processos de gestão, o são através de representantes, também chamados de “lideranças comunitárias”, que não acessam a linguagem completa utilizada pelas equipes gestoras. “Por isso a participação deixa de ter significado para a população e para o próprio futuro da unidade.” (TAMBELLINI, 2007, baseado em BRITO, 2000, p.35)

O histórico nacional de criação de espaços protegidos sugere a dificuldade em se adotar medidas em prol da gestão participativa e inclusão social. Medeiros (2003) e Medeiros et al.

46 (2004) elucidam esta questão fazendo uma cronologia institucional da conservação da natureza no Brasil, associada a estratégias político-territoriais. A primeira UC decretada no país – o Parque Nacional de Itatiaia, em 1937 – consolidou a influência norte-americana na proteção da biodiversidade brasileira, e a intenção de centralizá-la no Estado. Isto se fortaleceu durante o regime militar, quando as áreas oficialmente demarcadas se tornaram estratégicas para o controle do território nacional.

Muitas das práticas conservacionistas, como a implantação de parques nacionais e reservas naturais são marcadas pelo autoritarismo de muitas das instituições governamentais e de várias organizações não-governamentais conservacionistas nacionais e internacionais. Essas práticas conservacionistas muitas vezes desrespeitam os direitos civis das populações locais, promovendo o seu deslocamento forçado das áreas transformadas em parques e ignorando seu vasto conhecimento e práticas de manejo de florestas, rios, lagos e ambientes costeiros. (DIEGUES, 2000, p.16)

Assim, mesmo após a redemocratização do país e a criação de instrumentos legais favoráveis à gestão efetiva das UCs, como o SNUC (Lei 9985/2000), esta passa por entraves inerentes à cultura institucional conservadora do Estado, herdada de outros tempos. Esta cultura trouxe uma visão bastante dual da relação sociedade-natureza, refletindo-se em fortes manifestações ideológicas dentro do movimento ambientalista, que foi responsável pela definição da maioria das áreas protegidas existentes e acabou se inserindo no contexto do poder público. Dessa forma, a política de áreas protegidas no Brasil pode ser considerada como mais um espaço de exercício do poder de uma elite intelectual urbanizada sobre grupos desprivilegiados, sendo este contraste acentuado quando se fala em populações socialmente fragilizadas, que mais comumente ocupam áreas legalmente não edificáveis e não agricultáveis. Considera-se, aqui, que estas populações foram gradualmente “empurradas” para terrenos de baixo valor, devido à especulação imobiliária e/ou à pressão fundiária, instalando-se em áreas de risco, com ausência de saneamento e de outros direitos civis. Em muitos dos casos, são as áreas destinadas à preservação pela legislação ambiental, e por isso as pessoas ficam vulneráveis à constante ameaça da fiscalização ambiental. Portanto, a política ambiental vem como uma possível defensora da qualidade de vida, mas que na prática, muitas vezes, se torna mais um agravante das desigualdades sociais.

Baseando-se nas leituras de Foucault (1979), este pode ser considerado um dos mecanismos locais de exercício de poder – funcionando como uma nova questão fundiária -, apesar de o pensador considerar a execução de poder um conceito ainda em construção devido à dificuldade em se determinar quem o exerce, em que nível, e até que instância – sabe-se, ao menos, quem não o detém. Para ele, dar abertura ao discurso das classes oprimidas, e divulgá- lo, é uma maneira de fomentar a luta, de revelar o “segredo” de cada situação, que normalmente é relatada apenas por um lado da relação.

A atuação essencialmente fiscalizadora e punitiva dos órgãos ambientais acaba tendo, em muitos casos, um efeito socialmente impactante, que pode conduzir, inclusive, à não mitigação de impactos negativos às APs devido a condições pouco integrativas, agravando ainda mais as dualidades. Assim, as ações de gestão em sua maioria ficam restritas a questões técnicas pressupostas em Planos de Manejo contratados, especialmente naquelas UCs de uso restrito, como Parques e Reservas Biológicas. Isto confere um caráter limitado – mais próximo de “manejo” - ao termo “gestão” que, segundo ALEGRIA (2007), a própria UNESCO (2007) define como um conceito necessariamente associado à transdisciplinaridade e à multiplicidade social. Irving, Giuliani e Loureiro (2008) elucidam a situação dos Parques brasileiros, em que a excessiva restrição ao uso impõe uma condição de isolamento da área da UC, em que seu entorno se torna uma ameaça, sendo, para eles, o modelo mais evidente de separação sociedade-natureza. Sob esse prisma, pode-se dizer que o aparecimento dos

47 Conselhos Gestores, ainda no SNUC, e a exigência mais contundente de se realizar gestão de UCs com inclusão e participação social – retratada no PNAP - sejam parte de uma “contracultura” ao próprio Estado. Este fato, aliado ao histórico fundiário também conservador do Brasil34 e à formação deficiente dos profissionais de meio ambiente, é gerador de complexos conflitos entre gestores e populações afetadas pela implantação de UCs, fazendo com que as iniciativas existentes de gestão participativa sejam ainda frágeis e experimentais (IRVING et al, 2006).Estes autores afirmam, então: “este quadro parece indicar que o processo está ainda em fase inicial, e talvez este seja um momento essencial para se refletir sobre o contexto e os rumos desejados para a gestão de parques nacionais, pensando cenários futuros e construção de novas práticas.” Por enquanto, é dominante a instauração de um “simulacro de democracia” nas propostas reais de zoneamento ambiental (IRVING, GIULIANI e LOUREIRO, 2008)

Aos poucos esta temática se torna proeminente no debate e nas propostas institucionais, percebendo-se o atrelamento das questões sociais às ambientais, e a complexidade desta interação. Em seu artigo intitulado Educação ambiental e gestão participativa na explicitação e resolução de conflitos, Carlos Frederico B. Loureiro aponta sobre as “denominadas populações tradicionais” que residem próximas às áreas das UCs:

Constituem-se, portanto, em grupos sociais que classicamente se apresentam como de interesse para instituições governamentais e não-governamentais envolvidas com a conservação e a gestão ambiental. As postas à margem pelo processo produtivo capitalista em seu movimento de urbanização são objeto de atenção especial dos trabalhos realizados por ONGs de caráter socioambiental, movimentos sociais e poder público (...). (LOUREIRO, 2004, p. 38)

Dessa forma, se vê cada vez mais esta preocupação presente nos discursos apresentados no âmbito das políticas e projetos ambientais.

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