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CAPÍTULO 3 – A grande estratégia dos EUA e a competição com a China (2001-2019)

3.3 A grande estratégia sob Obama: o “pivô para a Ásia”

Barack Obama tornou-se o 44o presidente dos EUA e realizou o discurso presidencial inaugural da sua administração, em 20 de janeiro de 2009. Reconhecendo os desafios enfrentados pelo país, principalmente na esteira da crise financeira e econômica, Obama não deixou de reforçar que os fundamentos históricos do país continuavam intactos e que o país estava “(...) pronto para liderar uma vez mais91” (OBAMA, 2009, tradução nossa). A cooperação e o entendimento entre a nações seriam centrais nessa quadra histórica, bem como o respeito aos princípios e à historia estadunidense.

Obama também sinalizou a importância da reversão da situação econômica do país92. Assim, como coloca Martel (2015, p. 325), a primeira prioridade da grande estratégia sob Obama era a reconstrução dos fundamentos domésticos do poder estadunidense. Mas isso precisava ser realizado em um panorama com diversos pontos críticos, com a sobreposição de prioridades, especialmente no que estava relacionado à política externa dos EUA. Nesse sentido, a administração Obama iniciou um processo de revisão da política para o Afeganistão e de retirada escalonada de tropas do Iraque (MARTEL, 2015, p. 326).

É interessante notar que sua equipe contou com um número significativo de pessoas da Brookings Institution, com destaque para Anthony Lake e Susan Rice, sendo esta uma instituição considerada progressista. Nesse sentido, a agenda da equipe de Obama baseou-se

91 Do original: “(...) And so, to all the other peoples and governments who are watching today, from the grandest

capitals to the small village where my father was born, know that America is a friend of each nation, and every man, woman and child who seeks a future of Peace and dignity. And we are ready to lead once more” (OBAMA, 2009).

92 “The state of our economy calls for action, bold and swift, and we will act – not only to create new jobs, but to

no multilateralismo, no combate às ameaças transnacionais, por meio da diplomacia, e no engajamento de regimes hostis, como Coreia do Norte e Irã (MAGNOTTA, 2019, p. 78).

A equipe de Barack Obama, ao avaliar o andamento das políticas das administrações passadas, com destaque para a herança do período Bush, avaliou que a percepção na Ásia, em 2009, era que os EUA haviam se tornado distraídos com os efeitos da guerra do Iraque e com a GWT e que estavam economicamente enfraquecidos (BADER, 2012, p. 2). A ausência de altos representantes estadunidenses, em fóruns regionais nos anos antecessores, e a insistência de debates sobre terrorismo, em fóruns econômicos, eram apontados como evidências da falta de prioridade dos EUA para a região.

A partir desse assessoramento, a administração Obama começou a traçar uma política que buscasse resgatar a presença estadunidense na Ásia em geral. Ainda nos primeiros meses, Obama assinou o Tratado de Amizade e de Cooperação da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), o que revelava seu interesse em garantir boas relações com os países membros e um possível acesso à vindoura Cúpula do Leste Asiático (visto que a entrada na cúpula estava condicionada à assinatura do tratado), bem como uma maior circulação de representantes estadunidenses, nas diversas organizações regionais asiáticas (BADER, 2012, pp. 3-4).

Simultaneamente, a China continuava a apostar em uma retórica diplomática conciliadora, ganhando espaço em organizações multilaterais, com sua ênfase no eixo Sul-Sul e na busca por reformas, e com o aprofundamento de suas relações bilaterais com países como o Brasil e a Rússia (PECEQUILO, 2013, p. 113). Esse movimento foi reconhecido nos documentos oficiais dos EUA, que indicavam os poderes emergentes e o interesse estadunidense em uma China que assumisse um papel responsável de liderança, ao trabalhar em conjunto com os EUA. Mas isso não excluía o monitoramento da modernização militar chinesa, de forma que nenhum aliado ou interesse norte-americano fosse prejudicado por essa expansão.

Bader (2012, p. 2) aponta que o maior desafio geoestratégico em relação à Ásia e à presença estadunidense na região era, sem dúvidas, como lidar com o estonteante crescimento chinês que marcara as últimas décadas. O autor deixa claro que a contenção não era uma opção: a China estava efetivamente integrada à economia global, um movimento apoiado pelos EUA, desde a administração Nixon; e uma política de acomodação face a uma China mais assertiva também não seria prudente, especialmente para os aliados estadunidenses na região. Uma política multifacetada, portanto, era necessária e deveria ser baseada em três pilares: acolhida à emergência chinesa, garantia de uma emergência pacífica e de acordo com

as normas internacionais e, por fim, disposição para moldar a região da Ásia-Pacífico, para garantir que o desenvolvimento chinês fosse pacífico e não disruptivo (BADER, 2012, p. 7).

Conforme posto por Magnotta (2019, pp. 79-80), Hillary Clinton, Secretária de Estado sob Obama, era conhecida por declarações antagônicas, em relação à China. Clinton fora uma das maiores críticas, em relação ao trato dos direitos humanos no país asiático, nos anos 1990, mas se posicionou de forma mais branda, ao assumir o cargo de Secretária de Estado, contornando tal questão, em visita oficial à China. Entretanto, o papel da Secretária teria sido reduzido, nos primeiros meses da administração, quando se tratava da formulação da política dos EUA para a China:

“(...) Clinton teria tido menos influência sobre a estratégia de Obama para a China do que outros conselheiros, principalmente o Vice-secretário de Estado James Steinberg, o Diretor Sênior do Conselho Nacional de Segurança para Assuntos Asiáticos, Jeffrey Bader, e, anos mais tarde, o Assessor de Segurança Nacional Tom Donilon. Os “mais influentes shapers” das relações bilaterais no período, portanto, estavam no segundo escalão do governo” (MAGNOTTA, 2019, p. 80).

James Steinberg, Subsecretário de Estado, tornou-se um nome proeminente nesse período, introduzindo o conceito de strategic reassurance, para caracterizar a relação bilateral. Em discurso proferido em setembro de 2009, Steinberg afirmou que um acordo básico deveria pautar a relação entre os EUA e a China, de forma a saudar a chegada da China, que se desenvolveria e se integraria, no sistema internacional, de forma pacífica. Tal perspectiva ressoava a de Zoellick, em 2005, sobre a China ser uma parte interessada responsável, e demonstra como a política setorial para a China foi se desenvolvendo e ganhando novos contornos nesse período, para enfrentar a nova conjuntura posta.

Obama e Hu Jintao se encontraram pela primeira vez, em abril de 2009, durante a reunião do Grupo dos Vinte (G-20), em Londres, na esteira da crise de 2008. Nesse encontro, os presidentes acertaram um programa de fomento ao crédito e de recuperação econômica que ultrapassou o montante de 1,1 trilhão de dólares (MAGNOTTA, 2019, p. 85).

Vale a pena ressaltar que esse momento é entendido, por diversos analistas, como um ponto de virada nas relações entre EUA e China. Para Hart et al. (2017, p. 46), a interação entre esses dois Estados, no que concernia à governança global nas últimas décadas, consistia basicamente no apoio estadunidense à entrada da China em organizações internacionais; mas, com a crise, a China foi chamada por Hank Paulson, então Secretário do Tesouro dos EUA, para apoiar o G-20, como um grupo de coordenação para a formulação de respostas à crise:

“essa foi a primeira grande iniciativa em governança global na qual as duas nações não tinham somente um assento na mesa, mas também desempenharam um grande

papel na mobilização da comunidade global, em torno de um objetivo comum e em modelar o resultado final93” (HART et al., 2017, p. 46, tradução nossa).

Foi também nesse encontro às margens do G-20 que EUA e China aprofundaram os mecanismos de concertação em alto nível, com o estabelecimento do US-China Strategic and Economic Dialogue (S&ED), anunciado, em 2009, em conjunto com o presidente chinês e em substituição ao SED. Os encontros seriam anuais e permitiram que diversos altos representantes de ambas as nações pudessem discutir temas principalmente securitários e econômicos, expandindo o escopo estabelecido pelo SED, em 2006 (BADER, 2012, p. 22) e indicando o nível de institucionalização das relações sino-americanas, o que reforçava a trajetória histórica da política dos EUA, nesse sentido.

O presidente dos EUA visitou o continente asiático em novembro de 2009, momento em que ganhou destaque sua viagem para a China e os contornos da política dos EUA para tal Estado, em específico. Em visita de quatro dias, o presidente dos EUA encontrou-se com o presidente chinês e ambos expediram um comunicado conjunto que celebrava os quase 30 anos de retomada das relações diplomáticas entre seus países e que expressava os desejos mútuos de avanço na cooperação bilateral (US-CHINA JOINT STATEMENT, 2017). Nessa mesma oportunidade, Obama negou que os EUA buscassem conter tal país ou restringir seu crescimento. Na realidade, pode-se visualizar o comprometimento da equipe de Obama para a escrita do comunicado, sinalizando que os EUA e a China iriam trabalhar juntos, em diversas áreas, nos anos vindouros.

Em meio aos esforços de criação de confiança entre os dois Estados, “(...) as vozes da oposição, nos EUA, que sempre estiveram em disputa, no que diz respeito ao relacionamento sino-americano, uma vez mais passaram a contribuir para o questionamento da postura do governo e tentar “empurrar” para uma conduta mais linha-dura” (MAGNOTTA, 2019, p. 85). O déficit comercial com a China crescia e, nesse contexto, certos segmentos nacionais estadunidenses, com destaque para a agricultura e para a indústria, passaram a vocalizar mais as suas demandas, na busca por proteção de seus segmentos.

É nesse contexto que uma nova estratégia é delineada pela administração Obama, que tentou equacionar as diferentes perspectivas sobre como lidar com a China, ao longo de 2010, com o chamado pivô para a Ásia (pivot to Asia). O pivô é resumido em seis linhas de ação: 1) fortalecimento das alianças de segurança bilaterais; 2) aprofundamento das relações de trabalho com as potências emergentes, incluindo a China; 3) engajamento em instituições

93 Do original: “That was the first major global governance initiative in which both nations not only had a seat

at the table but also played an outsized role in rallying the global community around a common objective and shaping the final outcome” (HART et al., 2017, p. 46).

regionais multilaterais; 4) expansão do comércio e do investimento; 5) ampla presença militar; 6) promoção da democracia e dos direitos humanos (CLINTON, 2011). Foi nesse mesmo período que a equipe de Obama sofreu mudanças significativas: James Steinberg e Jeffrey Bader foram alguns dos nomes que deixaram a administração, enquanto Hillary Clinton passou a assumir maior protagonismo (MAGNOTTA, 2019, p. 85).

Havia um esforço de redirecionamento da grande estratégia estadunidense, pois o terrorismo não era a única ameaça ao Estado:

“nesse sentido, seria improdutivo que seu gerenciamento consumisse todas as forças do país, como ocorrera em W. Bush: era preciso evitar generalizações e promover o engajamento de parceiros regionais, para evitar empreendimentos militares distantes” (PECEQUILO; FORNER, 2017, p. 112).

O pivô seria, assim, a transição geopolítica das estratégias dos EUA pós-11 de setembro para um futuro pacífico (LOFFLMANN, 2016, p. 95). Tal projeto de reestabelecimento dos EUA, na Ásia, tinha como objetivo, para Pecequilo (2013, p. 120), a contenção direta da China em um quadro de tensionamento na região da Ásia-Pacífico, principalmente no MSCh, uma região importante para as rotas comerciais marítimas e que vem sendo objeto de disputas entre Estados do entorno asiático94. Van Apeldoorn e De Graaff (2016, p. 224) afirmam que, no segundo mandato de Obama, ficou ainda mais claro o quanto o pivô para a Ásia antagonizava a China, em uma estratégia que poderia até mesmo ter acentuado o tipo de comportamento que ameaçava os interesses da política de portas abertas, ameaça que os EUA tanto se empenhavam em evitar.

Embora tais interpretações sejam essenciais para a compreensão do pivô, também é importante ressaltar seu aspecto relacional, pois os EUA já possuíam um envolvimento que datava de décadas, e até mesmo séculos, na região (SHAMBAUGH, 2013, p. 11). Além disso, o questionamento do pivô foi costumeiro entre think tanks estadunidenses, na mídia e até mesmo em relatórios feitos pelo Congresso, com questionamento sobre sua efetividade, nos quatro anos posteriores ao seu anúncio (LOFFLMANN, 2016, p. 95).

Ainda no contexto do pivô, os EUA articularam a Parceria Transpacífico (Transpacific Partnership, TPP), buscando reforçar seus laços comerciais na Ásia por meio de um mecanismo multilateral. Tal iniciativa demonstrava o comprometimento com a faceta econômica da histórica política de portas abertas, essencial na grande estratégia estadunidense, em conjunto com maior engajamento em organizações internacionais na Ásia.

94 Em 2010, Hillary Clinton, Secretária de Estado, declarou que a questão relativa ao MSCh era parte do

“interesse nacional” dos EUA, em um panorama de crescente internacionalização do tema, que é visto pela China, como uma questão regional que só vinha recebendo enfoque desnecessário por parte dos EUA (PECEQUILO; FORNER, 2017).

Mais especificamente, a Parceria buscava alavancar as oportunidades para empresas, em uma região dominada pelo poderio econômico da China, a qual não foi incluída nas negociações iniciais do TPP e só poderia juntar-se caso passasse a aderir a princípios que estavam muito distantes de sua prática, em matéria de investimento e comércio (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, pp. 217-218, p. 224).

Afinal, mudanças profundas ocorreram nos anos seguintes. Obama perdeu grande parte do apoio do Congresso, com as eleições de meio de mandato, em 2010, quando o partido Republicano retomou o controle da Câmara (ocupando mais de 63 assentos, a maior vitória desde as eleições de meio de mandato de 1938), ganhou mais espaço no Senado e elegeu 29 dos governadores estaduais95 (CRUZ, 2019, pp. 38-39).

Além do crescente desgaste interno, Obama passou a enfrentar uma série de questões internacionais urgentes, em seu segundo mandato, como a Primavera Árabe e a guerra civil na Síria, o que exigiu esforços da política externa norte-americana para o Oriente Médio, em uma campanha para derrotar o Estado Islâmico. Mas a região da Ásia-Pacífico continuava no centro da agenda, com destaque para questões envolvendo a Rússia e a China na NSS de 2015.

Em relação à Rússia, o documento evidenciava o tensionamento das relações em um momento em que esta exercia maior protagonismo na guerra civil síria, com o presidente Obama sofrendo duras críticas interna e externamente, em relação à (falta de) atuação estadunidense no conflito (PECEQUILO; FORNER, 2017, p. 117). Ao mesmo tempo em que as tensões aumentavam no Oriente Médio, era possível perceber um tensionamento na região da Ásia, principalmente no MSCh, onde a presença militar norte-americana era percebida como essencial, para garantir os interesses dos EUA e de seus aliados, basicamente expressos na liberdade de navegação e de sobrevoo, face a um maior protagonismo chinês (UNITED STATES OF AMERICA, 2015, p. 10).

Mas medidas foram tomadas para que os impasses e as disputas territoriais não escalassem para uma situação de confronto aberto, com Susan Rice, Conselheira de Segurança Nacional, requerendo que oficiais militares estadunidenses diminuíssem a retórica agressiva, em relação à China. A criação de um mecanismo de diálogo conjunto para tratar de questões relativas a crimes cibernéticos é apontada como um sinal de progresso, após

95 Cruz aponta o papel do Tea Party, entendido como um movimento reacionário por grande parte da literatura

especializada: “The Tea Party contributed strongly to that result by endorsing the list of Republican candidacies, but most importantly, by setting the agenda of the electoral debate” (CRUZ, 2019 p. 39).

constantes acusações de apoio chinês às atividades de espionagem e roubo de dados nos EUA. Além disso, o presidente chinês Xi Jinping visitou os EUA, em setembro de 2015 e

“ambos os países confirmaram sua parceria, em questões como Afeganistão, mudança climática e operações de paz da ONU, além do fortalecimento da cooperação em segurança cibernética, concordando em não conduzir ou apoiar roubo de propriedade intelectual por meios cibernéticos96” (LOFFLMANN, 2016, p.

103, tradução nossa).

Tais elementos são importantes para se compreender como a China foi, nesse período, essencial na grande estratégia dos EUA. Obama buscou recuperar a economia americana e reconstruir os fundamentos domésticos do poder estadunidense, em um panorama em que os EUA não diminuíram a sua atuação no sistema internacional. Pelo contrário, a administração Obama é marcada por um evidente esforço de resgate da presença estadunidense na Ásia, de forma geral, mas principalmente como forma de conter a presença chinesa e de assegurar a segurança dos aliados estadunidenses na região.

Nesse sentido, Obama buscou a continuidade da institucionalização da política de engajamento com a China para a contenção desse Estado, com uma política multifacetada, pois estratégias de simples contenção ou engajamento não atenderiam aos interesses estadunidenses. Assim, Obama substituiu o SED, fruto da administração Bush, pelo US-China Strategic and Economic Dialogue, aprofundando as relações bilaterais. Além disso, buscou efetivar o pivô para a Ásia e, principalmente, criou o TPP, que foram iniciativas, no sentido de constrangimento ou enquadramento da China às regras criadas pelos EUA.

O final do mandato de Obama, entretanto, foi marcado por uma profunda discussão acerca dos rumos dos EUA e, especialmente, qual deveria ser a melhor estratégia para lidar com a China, crescentemente vista com suspeitas por pré-candidatos à presidência e por grande parcela da sociedade norte-americana.

Nesse contexto, o presidente norte-americano eleito Donald Trump assumiu a presidência, em janeiro de 2017, com um discurso de preservação da proeminência estadunidense e de implementação de uma política mais dura em relação à China, acusada, entre outros, de manipulação cambial, roubo de propriedade intelectual e comércio desleal com os EUA (NGUYEN, 2017, p. 36).

Desde então, Trump buscou evidenciar que o pivô para a Ásia havia sido uma característica da administração Obama e que sua gestão formularia sua própria agenda. Isso se

96 Do original: “Both countries confirmed their partnership on issues like Afghanistan, climate change, and UN

peacekeeping, and strengthened cooperation on cyber security, agreeing not to conduct or knowingly support cyber-enabled theft of intellectual property” (LOFFLMANN, 2016, p. 103).

concretizou com a retirada unilateral do país da TPP e com o início de uma guerra comercial com a China, cujos contornos ainda precisam ser observados.