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A política de contenção da República Popular da China (1949-1971)

CAPÍTULO 2 – A grande estratégia dos EUA e a China: entre a contenção e o

2.3 A política de contenção da República Popular da China (1949-1971)

Ainda em 1949, Truman publicou o China White Paper, explicando a política dos EUA para a China, a partir do princípio de que somente as forças chinesas poderiam determinar o resultado da guerra civil do país, mas isso não impediu críticas para sua administração, acusada de ter “perdido” a China para o comunismo, após o fim do conflito e a ascensão do PCCh (OFFICE OF THE HISTORIAN, 2018 c).

Começava-se a discutir a necessidade de reconhecimento do novo governo chinês, possibilidade aventada por Dean Acheson, Secretário de Estado, e outras vozes no Departamento de Estado. Entretanto, o presidente Truman temia que qualquer acomodação com Pequim não fosse apoiada pela população, visto que a fundação da República Popular da China já era encarada, sob a perspectiva estadunidense, como um elemento de enfraquecimento de sua administração. Assim, o presidente mostrou-se resoluto quanto à não realização de um acordo com os comunistas53, iniciando uma tradição de não reconhecimento da RPC, que seria perpetuada pelos governos posteriores (RYAN, 2018, p. 61).

Chiang Kai-shek e os demais membros do Partido Nacionalista refugiaram-se em Taiwan, conhecida também como ilha de Formosa. Em junho de 1950, no contexto da Guerra

53 “Truman quashed any move towards recognition, chiding Acheson: We can’t make a deal with the Commies”

da Coreia54, Truman afirmou que os EUA se oporiam a qualquer tentativa de ocupação de Taiwan pela China continental. A Doutrina Truman se estendia para a Ásia, quando a Sétima Frota da marinha dos EUA (estabelecida em 1943 e destinada a garantir a segurança e os interesses dos EUA na região) foi redirecionada para contrabalancear a força de Mao Zedong e para conter as ameaças a Taiwan, um apoio que se estendeu por décadas, no seio da política de contenção da China continental.

Assim, pode-se compreender que tanto o início da Guerra Fria quanto o momento de conclusão da guerra civil chinesa foram conjunturas críticas para a política externa dos EUA, que fortaleceu sua política de contenção do comunismo e, portanto, da URSS e da China. Em tal contexto, a RPC aproximou-se da URSS, com o Tratado Sino-Soviético de Amizade, Aliança e Mútua Assistência, de 14 de fevereiro de 1950, o que preocupou os dirigentes estadunidenses, frente à dinâmica do sistema internacional com a política de blocos, com o bloco capitalista, liderado pelos EUA, e com o bloco comunista, liderado pela URSS.

Uma China independente e forte era crucial para os interesses políticos e econômicos dos EUA na Ásia, desde as Notas da Política das Portas Abertas. Logo, uma China enfraquecida e dominada por potências estrangeiras, como ocorreu ao longo das décadas de 1920 e 1930, não atenderia aos interesses estadunidenses a longo prazo. Mas uma China comunista era ainda menos interessante.

A política de isolamento da China foi expressa em 1951, quando os EUA utilizaram o veto para barrar a entrada da China continental na ONU e continuaram a reconhecer Taiwan enquanto a China na organização. Além disso, os EUA firmaram um acordo de defesa mútua com a ilha de Formosa através do Taiwan Straits Resolution, aprovado pelo Congresso, em janeiro de 1955, com consideração de apenas cinco dias, após o pedido de Einsenhower, agora presidente, para usar as forças dos EUA na área, de acordo com sua discrição (LAFEBER, 1994, p. 553). Desde então, os EUA assumiram a responsabilidade pela defesa da ilha, em caso de ataques, especialmente da China continental.

Os pactos regionais de segurança que incluíam os EUA e buscavam conter a influência do comunismo, principalmente no sudeste asiático, também merecem destaque dentro da estratégia estadunidense, com o ANZUS (composto pelas iniciais, em inglês, da

54 A Coreia do Sul, protegida pelos EUA, declarou sua independência da Coreia do Norte, protegida pela URSS,

em 1945, com o Paralelo 38 separando seus territórios. Entretanto, em 25 de julho de 1950, o equilíbrio de forças foi alterado com a invasão da Coreia do Sul por forças da Coreia do Norte. Iniciava-se, assim, um conflito armado na península coreana, conflito que contou com a presença de forças dos EUA, da China e da URSS no contexto de disputa da Guerra Fria. Após um longo processo de negociações, um armistício foi assinado, em 27 de julho de 1953, entre a Coreia do Sul, capitalista, e a Coreia do Norte, sob a esfera de influência comunista (SPENCE, 1990, pp. 526-529).

Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos) de 1951 e a SEATO (da sigla do original em inglês), organização criada em 1954, pelo Tratado de Defesa Coletiva do Sudeste Asiático e composta por Austrália, Estados Unidos, Filipinas, França, Inglaterra, Paquistão, Nova Zelândia e Tailândia. Tal organização tornou-se militarmente irrelevante com o tempo, mas foi extensamente utilizada pelos EUA, para justificar seu comprometimento unilateral com o Vietnã, sob a roupagem do pacto de segurança coletiva (LAFEBER, 1994, pp. 551-552).

A tensão entre os EUA e a China, especificamente, cresceu no final da década de 1950, mas Leite (2005, p. 54) afirma que alguns burocratas dos EUA buscavam alterar o curso da política dos EUA, para tal país, no início da década de 1960, com discussão da possibilidade de redução do embargo comercial e de venda de grãos. A reação dos nacionalistas refugiados em Taiwan não poderia ter sido pior, mesmo com uma China que enfrentava graves problemas domésticos, como a grande fome que marcou o período do Grande Salto Adiante55. A conjuntura na Ásia também mostrava a instabilidade do período: mesmo com mais de 1 bilhão de dólares em assistência dos EUA para o combate ao comunismo, entre 1955 e 1961, Laos, Camboja e Indochina lutavam pela independência e poderiam entrar no bloco comunista (LAFEBER, 1994, p. 590).

Nesse cenário, a política de contenção da China continuou a ser praticada e mostrou- se, para grande parte dos dirigentes dos EUA, ainda mais necessária diante do teste de bomba atômica pela China, em 1964, embora o distanciamento entre a China e a URSS já fosse notado pelos EUA. Mas indícios de que mudanças eram conjecturadas cresciam: em 1966, o Comitê de Relações Exteriores do Senado realizou audiências, debatendo a necessidade de uma nova política para a China, e figuras como Nelson Rockefeller advogavam por maior contato e comunicação com a China continental e pela suspensão do embargo comercial (MANN, 2000, p. 18).

Assim, em 1968, quando a política externa da China ganha traços mais definidos e uma atuação mais flexível nas relações exteriores é decidida pelo PCCh, os EUA, que vinham recebendo críticas à política de contenção, especialmente no contexto da Guerra do Vietnã, estavam prontos para reavaliar a estratégia que vinha sendo empregada, desde o início da Guerra Fria (LEITE, 2005, p. 54). Nesse sentido, o rompimento entre a China e a URSS, em

55 O Grande Salto Adiante foi o Segundo Plano Quinquenal (1958-1962) elaborado pela China com os objetivos

de: “a) continuar a construção industrial com foco na indústria pesada, impulsionar a reconstrução técnica e estabelecer uma base sólida para a industrialização socialista da China; b) continuar a transformação socialista, consolidar e ampliar as ações de propriedade coletiva e propriedade do povo; c) com a construção de base e transformação socialista já estabelecida, impulsionar ainda mais a indústria, agricultura, artesanato, transporte e comércio; d) cultivar talentos, fortalecer a pesquisa e desenvolvimento, para atender às necessidades de desenvolvimento econômico e cultural socialista científico; e) desenvolvimento industrial e agrícola de base, para reforçar a defesa nacional e melhorar as condições de vida e consciência cultural” (ZAGO, 2017, p. 89).

1969, na chamada cisão sino-soviética, foi essencial para que Mao Zedong se decidisse pela reaproximação dos EUA56, momento em que a perspectiva do engajamento da China na ordem internacional passa a ganhar mais força no debate sobre a China nos EUA (SHAMBAUGH, 1996, p. 182).

Nesse período, a política de contenção enfrentava uma profunda crise, conforme posto por Brands (2014, p. 59, tradução nossa):

“a Guerra do Vietnã havia exposto os limites do poderio americano e a profundidade de suas divisões internas, enquanto o sistema internacional como um todo se afastava da atmosfera do pós-guerra da hegemonia estadunidense. A simples perpetuação de ortodoxias herdadas não era mais uma opção; Washington realmente precisaria de políticas inovadoras, se fosse preservar a estabilidade global, em uma era de relativo declínio nacional57”.

A derrota estadunidense na Guerra do Vietnã, que durou vinte anos, foi um momento importante para que os EUA começassem a rearticular a sua grande estratégia, em um contexto maior de détente ou de relaxamento da Guerra Fria. Nesse sentido, o distanciamento entre a China e a URSS mostrou-se como uma janela de oportunidade imperdível para os EUA, que passaram a buscar a conciliação estratégica com a China para afastá-la ainda mais da esfera de influência soviética e, claro, não é possível esquecer o potencial do mercado consumidor chinês, que havia sido perdido com a contenção da China, mas cuja retomada pairava nos objetivos de longo prazo estadunidenses.

Assim, a aproximação entre os dois países se tornou uma prioridade política para os EUA, com foco no trabalho do Congresso e de setores das administrações Kennedy e Johnson, que passam a articular novas orientações para lidar com a China. Essas novas orientações foram cristalizadas na estratégia dos EUA para a região da Ásia-Pacífico de julho de 1969, a doutrina Guam, que pautou o compromisso norte-americano de manutenção das alianças asiáticas, mas também de diminuição da intervenção militar dos EUA, demonstrando a necessidade de redução dos compromissos dos EUA na região e de divisão das responsabilidades (LEITE, 2005, pp. 56-57), mas isso sempre dentro dos padrões da ordem global estadunidense.

E é nesse panorama que a administração de Richard Nixon buscou reverter a estratégia

56 Conforme aponta Leite (2005, p. 54), a Revolução Cultural iniciada em 1966 desencadeou uma profunda

transformação nos quadros do Partido Comunista Chinês e uma linha de ação externa mais coerente foi buscada. A oposição interna à política de normalização das relações com os EUA foi vencida por uma linha mais pragmática, buscando uma atuação mais flexível nas relações exteriores e abandonando a retórica revolucionária.

57 Do original: “Containment was in crisis in the late 1960s. The Vietnam War had exposed the limits of

America’s power and the depth of its internal divisions, while the international system as a whole was shifting away from the postwar atmosphere of U.S. hegemony. Simply plodding along with inherited orthodoxies was no longer an option; Washington would need truly innovative policies if it were to preserve global stability in an era of relative national decline” (BRANDS, 2014, p. 59).

de contenção da China, priorizando a abertura estadunidense para aquele Estado. O presidente dos EUA acreditava que o comunismo perdia a batalha ideológica ao redor do mundo e que um novo equilíbrio de forças era necessário. Na verdade, conforme posto por LaFeber (1994, p. 637), Nixon e seu Conselheiro de Segurança Nacional Henry Kissinger temiam muito mais a desordem do sistema internacional do que o comunismo. E ambos acreditavam que, após décadas de dificuldades econômicas e diplomáticas, a China, enfim, poderia ser integrada, após as mudanças empreendidas pelo PCCh. Mais do que isso: era imperativo que a China, uma potência nuclear, fosse definitivamente tratada de forma apropriada no tabuleiro geoestratégico (LEITE, 2005, p. 59). Iniciava-se, assim, uma nova era para tais países.