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CAPÍTULO 2 – A grande estratégia dos EUA e a China: entre a contenção e o

2.4 As relações contemporâneas entre EUA e China: engajar para conter

2.4.1 Da retomada das relações em Nixon até o fim da Guerra Fria

Richard Nixon e Henry Kissinger foram expoentes em matéria de política externa, ao longo dos anos 1970: ambos acreditavam que deviam ter o controle da formulação da política e que nem o Departamento de Estado e nem o Congresso tinham a imaginação ou a vontade de tomarem as iniciativas de que os EUA precisavam, para moldar um sistema internacional adequado aos interesses do país. Kissinger acreditava que uma grande estratégia ia além do

estabelecimento de prioridades; uma grande estratégia teria que ser hábil, no sentido de moldar eventos e de não ser meramente moldada por eles (BRANDS, 2014, p. 63).

Com isso em mente, tanto Nixon quanto Kissinger centralizaram as orientações de política externa no Executivo, com Kissinger, muitas vezes, conduzindo-a por canais de comunicação não-oficiais (back channel diplomacy) (LAFEBER, 1994, pp. 634-635) – o que revela o peso que alguns atores têm para a formulação de determinadas políticas, em detrimento de outros, e a importância de se ocupar cargos-chave, para a criação de instituições (MAHONEY; THELEN, 2010, p. 8).

Tal trato foi especialmente notável em relação à China, amplamente discutida pelo presidente e por seu Conselheiro de Segurança Nacional. Um canal secreto de comunicação com a China foi estabelecido por meio do presidente do Paquistão, Yahya Khan:

“na visão de Nixon, ele era um intermediário atraente, pois mantinha boas relações com os líderes tanto dos EUA quanto da China, além de ser um meio para evitar o Departamento de Estado dos EUA, o qual, Nixon acreditava, poderia se opor ou tornar pública sua iniciativa58” (OFFICE OF THE HISTORIAN, 2018 d, tradução

nossa).

Foi através desse canal que o governo chinês expressou seu interesse em discussões de alto nível com representantes dos EUA, o que era extremamente interessante para Nixon e Kissinger. Assim, em julho de 1971, Kissinger viajou à China, para acertar a então futura viagem de Nixon, após sinais de incentivo dos quadros dirigentes chineses para maior aproximação entre as nações, o que ficou conhecido como a diplomacia do ping-pong, quando o premier chinês Zhou Enlai convidou a equipe de tênis de mesa dos EUA, que estava em um torneio no Japão, para jogar com a equipe da China, em uma visita ao país – a qual, por sua vez, visitou os EUA posteriormente (LAFEBER, 1994, p. 638).

A visita de Nixon, enfim, ocorreu em fevereiro de 1972, tornando-o o primeiro presidente estadunidense a pisar em solo chinês. Mann (2000, pp. 13-14) afirma que, em seu trajeto, Nixon passou para o papel, de forma simples: i) o que sabia que a China desejava obter com tal encontro: suas credenciais para o mundo, Taiwan, retirar os EUA da Ásia; ii) o que os EUA desejavam: Indochina, conter o expansionismo comunista chinês na Ásia, reduzir as ameaças de confrontação pelo poder chinês no futuro e, enfim, o que ambos queriam: iii) reduzir o perigo de confrontação e de conflito, conter a URSS e uma Ásia mais estável. Com tais esboços em mente, Nixon aterrissou na China.

58 Do original: “In Nixon’s view, Khan was an attractive intermediary since he had good relations with the

leaders of both the United States and the PRC, and he also provided a means to circumvent the U.S. Department of State, which Nixon feared might oppose or publicize his initiative”(OFFICE OF THE HISTORIAN, 2018 d).

O documento resultante das negociações, que duraram quase uma semana, entre Nixon e Zhou Enlai foi o Comunicado de Shangai, de 27 de fevereiro de 1972, que elencava 16 pontos da visão chinesa e estadunidense sobre política internacional e demonstrava o desejo de maior cooperação cultural e econômica, bem como o estreitamento dos laços políticos entre os países59. Tal resultado atendeu, em grande medida, às expectavas de Nixon. Taiwan, um tópico historicamente sensível, continuava a ser reivindicado pelos chineses como parte de seu território, o que os EUA buscaram contornar, ao afirmar, cuidadosamente, que buscariam reduzir suas forças armadas e instalações militares na ilha, embora os laços com Taiwan não tenham sido modificados nos anos posteriores ao comunicado (LAFEBER, 1994, p. 649; LEITE, 2005, p. 62).

Tal encontro também é compreendido como uma mensagem aos soviéticos, mais do que nunca afastados da RPC, e foi também essencial para a condução da relação bilateral com os EUA nos anos vindouros, quando diversas transformações ocorriam para a China: o comércio com os EUA saltou de 5 milhões de dólares, em 1971, para 900 milhões, em 1973; 32 países reconheceram a República Popular da China, entre 1969 e 1972 e, em novembro de 1971, o Estado foi, enfim, admitido na ONU (LAFEBER, 1994, p. 649).

A situação doméstica nos EUA, entretanto, não foi favorável para o andamento das relações. Van Apeldoorn e De Graaff (2016, pp. 50-51) postulam que o objetivo do segundo mandato de Nixon foi impedir a desagregação da hegemonia estadunidense, restaurando a estatura global dos EUA, após a Guerra do Vietnã, com a efetiva incorporação da China ao sistema como elemento essencial na estratégia.

Mas os escândalos de Watergate60 e uma série de acontecimentos em política externa enfraqueceram a autoridade de Nixon – até a sua renúncia em agosto de 1974 –, e dificultaram o processo de normalização das relações, ainda mais em um contexto em que a cúpula do poder na China estava dividida, em relação às opções de estratégias de desenvolvimento a serem seguidas pelo país, anos após o falecimento de Mao Zedong (LEITE, 2005, p. 64).

Desse debate interno, a estratégia resultante foi a de abertura da China ao exterior, empreendida, a partir de 1978, por meio de reformas econômicas e políticas encabeçadas por Deng Xiaoping, em um projeto de desenvolvimento nacional no qual “a China agiria segundo

59 O Comunicado de Shangai pode ser lido na íntegra no Anexo 1 dessa dissertação.

60 O escândalo conhecido como “Watergate” foi marcado pela descoberta de escutas clandestinas na sede do

partido democrata, prédio chamado Watergate. O escândalo envolveu não somente Nixon, mas também o vice- presidente, Spiro Agnew, e outros representantes do partido Republicano. Nixon e Agnew renunciaram em 1974, com Gerald Ford assumindo como presidente e Nelson Rockfeller como vice-presidente.

seu próprio ritmo baseado na determinação de seu interesse nacional, que não poderia ser prescrito por estrangeiros” (KISSINGER, 2011, p. 410).

Deng, que fazia parte do quadro burocrático do governo, ainda na era de Mao, iniciou um projeto de modernização, visto como o caminho a ser trilhado, para que o país conseguisse se inserir no sistema internacional. A abertura econômica da China faz parte desse contexto e demonstra o realinhamento da sua política externa, o que foi essencial para que, durante a administração do presidente estadunidense Jimmy Carter, as relações diplomáticas com os EUA fossem, enfim, retomadas em 1979.

Carter enfrentava uma série de episódios graves, como a segunda crise do petróleo, a invasão do Afeganistão pela URSS e a revolução iraniana, em um contexto que enfraqueceu a confiança dos cidadãos norte-americanos em sua figura e consolidou a influência de seu Conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, nas decisões de política externa. Isso foi particularmente verdadeiro no tocante à China, com Brzezinski e Cyrus Vance, Secretário de Estado, visitando-a em 1978 e trabalhando para anunciar a retomada das relações entre os Estados, o que foi expresso no Comunicado Conjunto sobre o Estabelecimento de Relações Diplomáticas entre os EUA e a China61, de 15 de dezembro de 1978, com a previsão para troca de embaixadas para março de 1979 (LEITE, 2005, p. 65). A aproximação iniciada com Nixon era, agora, cristalizada em um caminho de reconhecimento mútuo. Iniciava-se, assim, uma política de engajamento da China por parte dos EUA, com a consolidação dos mecanismos institucionais que dificultariam a reversão dessa política.

É também interessante notar que as negociações para retomada das relações formais não foram levadas ao Congresso por Carter, mas ambas as casas se posicionaram posteriormente ao anúncio oficial, de forma a explicitar que a retomada das relações com a China continental não afetava a proximidade entre os EUA e Taiwan e nem o fornecimento de armamentos para a ilha (LEITE, 2005, pp. 65-66).

Nesse sentido, é interessante ressaltar a política ambígua dos EUA, ao assumirem compromissos formais com a China e ao manterem seus compromissos históricos com Taiwan, expressos com o Taiwan Relations Act (TRA)62, em abril de 1979, aprovado pelo Congresso – o que indicava a tendência histórica de apoio dessa instância a Taiwan – e assinado pelo presidente Carter. Tal política ambígua revela o peso que tanto a China quanto Taiwan tinham para o Estado americano e para os grupos de interesse domésticos pró-Taiwan,

61 O comunicado conjunto e as declarações que cristalizaram a retomada das relações diplomáticas entre EUA e

China podem ser lidos, respectivamente, nos Anexos 2, 3 e 4 dessa dissertação.

não sendo possível ignorar as demandas destes e nem a realidade da política internacional e a necessidade de se integrar a China efetivamente. É importante pontuar, novamente, que as instituições, portanto, “(...) não são mecanismos de coordenação neutros, mas que, na verdade, refletem e também reproduzem e expandem determinados padrões de distribuição de poder na política63” (THELEN, 1999, p. 394, tradução nossa).

O TRA substituiu o Tratado de Assistência Mútua64, firmado em dezembro de 1954 entre os dois Estados, e garantiu a manutenção de ajuda a Taiwan, em caso de ataques, bem como a continuidade do fluxo de venda de armamentos para a manutenção das defesas taiwanesas, indefinidamente (HAO, 1997, p. 2). Assim, Washington respeitava a política de uma só China (One China policy), em que reconhecia somente o governo de Pequim como o governo legítimo da China, mas também não retirava seu apoio a Taiwan. Além disso, conforme aponta Leite (2005, p. 35), “aos Estados Unidos interessariam impedir a reunificação para conservar um grau de tensão e justificar, por exemplo, a presença militar americana na região”65.

A contenção da URSS era imperativa para a administração Carter, mas também o era a integração da China, que se transformava em uma velocidade impressionante, na comunidade internacional. Entretanto, as mudanças econômicas domésticas da China não foram tão bem vistas pela administração de Ronald Reagan, mais conservadora, que

“(...) considerava que, apesar da boa-vontade da China em colaborar com os Estados Unidos, e das diversas transformações dadas nos últimos anos de que o trabalho conjunto (Reagan evitava usar o termo parceria) entre os dois era bastante promissor, havia diferenças essenciais entre a China e os Estados Unidos que não poderiam ser negligenciadas” (LEITE, 2005, p. 69).

Reagan e sua equipe apontavam que a China não era um Estado democrático e que isso seria um desafio para a manutenção das relações futuras. Nesse contexto, o primeiro mandato da administração Reagan é compreendido como um período de reconhecimento e de acomodação entre EUA e China, que empreendia suas transformações econômicas. Foi, também, em seu primeiro mandato que os EUA se comprometeram, através do Comunicado Conjunto entre a República Popular da China e os Estados Unidos da América, em 17 de agosto de 198266, a não aumentar as vendas de armamento militar para Taiwan: pelo

63 Do original: “The idea is that institutions are not neutral coordinating mechanisms but in fact reflect, and also

reproduce and magnify, particular patterns of power distribution in politics” (THELEN, 1999, p. 394).

64 O Tratado de Assistência Mútua entre EUA e Taiwan pode ser encontrado no Anexo 6 dessa dissertação. 65 Para mais detalhes sobre a aparente ambiguidade presente na normalização das relações entre os EUA e a

China continental, em 1979, e a aprovação do Taiwan Relations Act, em 1979, consultar: HAO, Yufan. Dilemma and Decision: An Organizational Perspective on American China Policy Making. Institute of East Asian Studies, University of California, Berkeley, 1997.

contrário, as vendas diminuiriam, com o passar do tempo – o que não se concretizou nos anos seguintes, com a manutenção do fluxo de vendas de armamento militar em geral e com a venda de caças F-16 para Taiwan em 1992 (BADER, 2012, p. 19).

A década de 1980 e o segundo mandato de Reagan, em específico, viriam a se tornar o período de maior contato entre China e EUA, até então visto (MANN, 2000, p. 134): os dirigentes já haviam se testado mutuamente, sabendo até aonde a outra parte iria, em questões como Taiwan, por exemplo, e, portanto, estavam prontos para aprofundarem os negócios de forma pragmática. A China estava interessada em adquirir tecnologia dos EUA e estes estavam prontos para conquistar o imenso mercado consumidor chinês. Assim, a assinatura de acordos sobre comércio, cooperação nuclear e intercâmbios acadêmicos marca os anos de 1985 a 1989 (LEITE, 2005, p. 77).