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CAPÍTULO 2 – A grande estratégia dos EUA e a China: entre a contenção e o

2.2 Transformações na grande estratégia estadunidense

O imperialismo das portas abertas dos EUA foi levado a um novo patamar, conforme apontam Van Apeldoorn e De Graaff (2016, p. 42), com o presidente Woodrow Wilson e o seu chamado para transformar o mundo em um lugar próspero para a democracia, inaugurando uma nova doutrina de política externa, que ficaria conhecida como liberal internacionalista. Tal perspectiva fundamentou grande parte da visão de política externa dos

47 Roosevelt publicou um artigo intitulado The Awakening of China, poucos meses antes de deixar a presidência

dos EUA, exaltando os esforços de modernização chineses e o quão importante era para os norte-americanos estarem conscientes desse processo que se iniciava (COHEN, 2010, p. 67).

EUA, principalmente a partir de 1917, quando o presidente Wilson declarou que os EUA entrariam na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

A administração de Woodrow Wilson privilegiou a agenda global dos EUA, em relação aos assuntos domésticos, indicando que a grande estratégia dos EUA, nesse período, foi ganhando novos contornos. E é importante ressaltar como os princípios da nova doutrina liberal internacionalista carregavam os valores liberais americanos e a ideia de excepcionalismo da nação: “não à toa, o presidente chegou a incentivar a criação de uma ordem internacional baseada na democracia, na segurança coletiva e na autodeterminação dos povos – princípios domésticos tradicionalmente defendidos pela sociedade Americana” (MAGNOTTA, 2013, p. 28).

Após um período de intensa discussão interna, acerca dos rumos da política externa estadunidense, o Senado norte-americano, então com maioria republicana, resolveu não assinar o Tratado de Versalhes e não ratificar o tratado constitutivo da Liga das Nações – frutos do pós-Primeira Guerra Mundial. Isso poderia indicar que havia figuras isolacionistas no Congresso, bem como uma tendência de resistência ao comprometimento estadunidense a uma rede de segurança coletiva – o que indicava a fragilidade sob a qual o sistema ainda repousava, apesar dos esforços de Wilson, para criar uma ordem internacional liberal (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, p. 43).

É importante destacar, porém, que o terceiro ponto dos chamados 14 pontos de Wilson48 elencava a manutenção da política de portas abertas, na busca pela diminuição das barreiras econômicas – tanto quanto fosse possível – e por condições igualitárias para o comércio internacional. Nesse sentido, é importante ressaltar que a grande estratégia dos EUA sofreu alterações cruciais com o presidente Wilson e seu “idealismo wilsoniano”, em um período que criou as bases para a internacionalização da política de portas abertas.

O sentimento isolacionista cresceu, na década de 1930, mas não afetou os rumos da grande estratégia estadunidense. A recuperação econômica e financeira dos EUA, após a crise de 1929, era, mais do que nunca, urgente. O investimento do Estado, com o chamado New Deal de Franklin Roosevelt, que iniciou sua presidência em 1933, buscava recuperar as indústrias e o sistema capitalista americano, como um todo; mas tal política foi

48 “Durante as negociações em Versalhes, os “14 pontos de Wilson”, que tinham como objetivo uma paz sem

vencedores na Europa, não faziam referência à punição dos alemães. Nas palavras de Willis (1982), Woodrow Wilson preferiu “subordinar a preocupação com relação aos crimes de guerra aos objetivos de uma paz negociada” e, posteriormente ao “estabelecimento de instituições internacionais fortes” (Willis, 1982, p. 39)”. (MAIA, 2012, pp. 26-27).

crescentemente internacionalizada, com a recuperação econômica, reafirmando a faceta do expansionismo econômico estadunidense.

Os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em 1941 e foram um importante ator na derrota da Alemanha e do Japão. Ainda em 1943, Roosevelt já mostrava preocupação com o mundo que emergiria, com o fim da guerra. O presidente, então, encontrou-se com líderes como o primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, e Chiang Kai- shek, líder do Partido Nacionalista chinês, no Cairo, a capital do Egito. Roosevelt estava determinado a tratar a China como um dos “quatro policiais”49 do sistema internacional, incluindo os próprios EUA, o Reino Unido e a URSS50.

Tal encontro foi essencial para o planejamento estratégico que os EUA já faziam para o período posterior à guerra, quando exerceriam toda sua influência militar e econômica para moldar, enfim, a Ásia com as tendências expansionistas japonesas contidas, de acordo com os seus interesses e, definitivamente, não de acordo com os interesses ingleses (LAFEBER, 1994, pp. 424-425). Nesse sentido, a vitória conquistada pelos EUA e pelos Aliados contra as potências do Eixo fez com que os EUA emergissem como o principal poder na arena internacional e passassem a articular sua visão da política portas abertas, em um nível verdadeiramente global, tornando-a, definitivamente, a base da grande estratégia que orienta a política dos EUA desde então (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, p. 47). Nota-se a continuidade da grande estratégia estadunidense, mas com uma importante atualização.

A organização do sistema internacional do pós-guerra, assim, foi um momento em que a diplomacia norte-americana empenhou-se, ao máximo, para garantir que seus interesses políticos e econômicos fossem cristalizados em organizações e em regimes internacionais, com destaque para a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a tripla institucionalização de Bretton Woods, com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT)51.

49 Os “quatro policiais” (Four Policemen) são uma ideia de Franklin Roosevelt, presidente dos EUA.

Desapontado com o fracasso da Liga das Nações, Roosevelt aventava um cenário em que certas nações ocupariam uma posição privilegiada na manutenção da paz internacional e elas seriam os EUA, o Reino Unido, a URSS e a China – países que, até a conclusão da Segunda Guerra, eram aliados. Essa ideia foi, posteriormente, personificada no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a inclusão da França (OFFICE OF THE HISTORIAN, 2018 e).

50 Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, também esteve presente neste encontro. LaFeber

(1994, p. 424) aponta que ele protestou contra a visão de Roosevelt da China como uma das “quatro policiais”, pois considerava os chineses – e Chiang Kai-shek, em especial – como corruptos, fracos e atrativos para os norte-americanos porque estes queriam substituir a influência inglesa na China e na Ásia após a guerra.

51 Essa tripla institucionalização, mesmo com o GATT não sendo uma organização internacional estrito senso,

A ONU foi criada contando com uma Assembleia Geral (AGNU), que reuniria todos seus Estados membros, e um Conselho de Segurança (CSNU), composto por cinco membros permanentes (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China) e mais dez membros não permanentes, que seriam eleitos pela AGNU para cargos rotativos de dois anos. Tal organização e, mais especificamente o CSNU, foram criados com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais (RINALDI, 2015, p. 216). Nesse mesmo sentido, também é importante ressaltar a criação da OTAN, no final da década de 1940, como uma aliança militar entre os EUA e a Europa ocidental, de forma a protegê-la contra a ameaça da URSS.

Além da construção de uma rede de segurança coletiva, alguns dos objetivos da nova ordem eram a reconstrução dos países afetados pela guerra, a estabilidade do sistema monetário e financeiro internacional e a garantia de livres mercados consumidores para os produtos norte-americanos. Era imperativo, portanto, que Henry Truman, que ficou na presidência de 1945 a 1953, continuasse a liderar os esforços de Roosevelt nessa trajetória.

Em relação à reconstrução dos países afetados pela guerra, o Departamento de Estado dos EUA criou o Plano Marshall, um dos principais instrumentos de assistência que estimulou a restauração e a estabilidade política e econômica, promovendo a reindustrialização dos Estados europeus e garantindo que os EUA teriam para onde escoar grande parte da sua produção, nos anos seguintes, chegando ao montante de 13 bilhões de dólares em 1951 (THE MARSHALL FOUNDATION, 2017).

Em relação aos outros objetivos dos EUA, o Departamento do Tesouro ocupou papel de destaque nas negociações dos acordos de Bretton Woods, principalmente por meio da figura do Secretário Adjunto Harry Dexter White, que garantiu que as instituições internacionais fossem criadas de forma a atender aos interesses e objetivos estadunidenses, com destaque para o regime monetário internacional calcado no ouro como âncora, com o preço do dólar fixado em relação ao ouro.

Uma organização que tratasse principalmente da liberalização comercial internacional também era almejada pelos EUA, com o diretor de política comercial do Departamento de Estado, Clair Wilcox, atuando na carta constitutiva da Organização Internacional do Comércio (OIC). Esse tratado, porém, não foi ratificado pelo Congresso norte-americano após diversas tentativas, com uma parcela de congressistas interessada na manutenção de políticas tarifárias. E, assim, somente o capítulo 4 da carta foi adotado por 23 países, incluindo os

assegurou um grande poder de condução e de tomada de decisão, de forma permanente, nas mãos dos EUA. A título de exemplo da assimetria de poder instaurada, é possível citar o fato de os EUA representarem 86,5% dos recursos do BM, em 1950, dentro do sistema de cotas instaurado na organização” (RINALDI, 2015, p. 214).

EUA, em 1948, no que ficou conhecido como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, instituição sui generis responsável pela criação e supervisão do regime multilateral de comércio, com base nos princípios da nação mais favorecida, não discriminação e reciprocidade nas relações comerciais.

Estava formada a estrutura que os EUA liderariam nas décadas seguintes, fosse em questões financeiras internacionais, com o FMI, ou em questões comerciais, com o GATT. Era um sistema multilateral, mas criado, sob vários aspectos, a partir de uma ótica unilateral e centrada nos interesses – materiais ou intelectuais – dos EUA (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, p. 47).

O período de profunda crise parecia ter passado. Mas a divergência entre os EUA e a URSS, que havia sido aliada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, ganhava proeminentes contornos: os EUA buscavam a construção de uma ordem internacional liberal, mas a influência soviética sobre outros Estados crescia, o que indicava o interesse soviético de disputar áreas de interesse com os EUA. Assim, “a estratégia do governo americano para a URSS foi lançada em discurso feito pelo presidente ao Congresso, em 12 de março de 1947. Poucos meses depois, em julho de 1947, a Doutrina Truman ficaria conhecida como Doutrina da Contenção” (MAGNOTTA, 2013, p. 83).

Os EUA passaram a atuar visando à contenção (containment) da URSS e principalmente do comunismo, buscando manter a preponderância do modelo capitalista em um novo contexto, que era o da Guerra Fria, também entendida como uma conjuntura crítica que afetou a grande estratégia estadunidense. Os EUA não deixaram para trás seu papel de liderança na nova ordem internacional e de consolidação da política de portas abertas em um nível verdadeiramente global; mas isso foi perseguido em um contexto de disputa com a URSS, em que a contenção foi um dos grandes objetivos elencados pelas mais diversas administrações vindouras.

O NSC-68, documento-chave dessa política elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional e apresentado ao presidente Truman em 1950, afirmava justamente que “(...) a contenção e uma política mais liberal internacionalista para ‘criar uma comunidade internacional mais próspera’ eram duas ‘políticas subsidiárias’ da mesma grande estratégia (...)52” (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, p. 47), segundo a qual os EUA buscavam

52 Do original: “The key policy document, NSC-68, was rather explicit about the fact that in its view containment

and a more liberal internationalist policy to “develop a healthy international community” were two “subsidiary polices” of the same grand strategy “designed to foster a world environment in which the American system can survive and flourish” (Department of State, 1950)” (VAN APELDOORN; DE GRAAFF, 2016, p. 47).

garantir a ordem do sistema internacional, de acordo com seus interesses – o que era ameaçado pela URSS e pelo risco de expansão do comunismo.

E, naquele mesmo contexto, os riscos de o comunismo ganhar o Estado chinês eram cada vez mais maiores, levando em consideração a disputa pelo poder que ocorria há anos na guerra civil chinesa, travada entre o KMT, liderado por Chiang Kai-shek, e o Partido Comunista Chinês (PCCh), liderado por Mao Zedong. O presidente Truman acreditava que Kai-shek se manteria no poder, mas o sucesso da empreitada de Mao já podia ser observado principalmente a partir de 1947. Por fim, Kai-shek foi derrotado e, enfim, o PCCh chegou ao poder e fundou a República Popular da China (RPC), em 1949, com o comunismo como modelo de organização socioeconômica e com o objetivo de terminar, definitivamente, com o histórico de dominação estrangeira do país.

Assim, o próximo tópico busca discutir, mais especificamente, a política de contenção, que marca a grande estratégia dos EUA, durante a Guerra Fria e, principalmente, a política de contenção da RPC.