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A guisa de suporte teórico: Bloom, Gênio e Demonização

No documento Vésper (páginas 62-67)

Antes de iniciar esta discussão sobre o gênio, é importante esclarecer um aspecto fundamental acerca do embasamento teórico utilizado, ou antes, de sua ausência em moldes tradicionais. Embora este trabalho lance mão de vários trabalhos de filósofos, teóricos, críticos e comentadores em geral, não há um que ocupe uma posição de destaque como se convenciona fazer, por vezes, em trabalhos que propõem, por exemplo, uma leitura derridiana de um romance. Nem mesmo temos a adoção de uma única e específica postura analítica, que poderia embasar, também a título de exemplo, uma análise feminista de uma determinada personagem. A única exceção, neste caso, é a figura do crítico estadunidense Harold Bloom. O pensamento bloomiano servirá, sobretudo, como fonte de inspiração de um modo de encarar o fenômeno literário, ou seja, com paixão e entrega. Além disso, de Bloom, será utilizado um aspecto que, se não tem no crítico e teórico estadunidense seu criador, tem nele um de seus maiores e mais eloqüentes defensores: o agón como elemento fundamental do universo literário.

Tendo isso em vista, este trabalho considera com cuidado as obras de Harold Bloom que versam sobre as relações de influência entre escritores e seus precursores. Para tanto, será levada em consideração especialmente a sua “tetralogia da influência”, representada pelos estudos A angústia da influência, Um mapa da desleitura, Poesia e repressão e Cabala e crítica. Nestas obras, Bloom inclusive propõe um conceito que é particularmente importante para a visão de gênio aqui desenvolvida: junto a outros cinco mecanismos de defesa contra a “angústia da influência” (clinamen, tessera, askesis, kenosis e apophrades), temos o processo que Bloom chama de “demonização”, entendido pelo crítico estadunidense como um

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mecanismo que “procura ampliar a força do precursor e transformá-la numa regra maior do que a do próprio efebo, mas pragmaticamente fará do filho um daímon mais demoníaco ainda e do precursor um homem mais humano” (BLOOM, 1991a, p. 145). Assim, o poeta tardio, ao efetuar uma maior divinização do precursor, pode conseguir alguma prioridade sobre o mesmo, já que é ele, o “efebo”, quem, demoniacamente, realiza a elevação no precursor.

Deste modo, a demonização bloomiana consiste em um “contra-sublime” do poeta tardio que pode atuar de maneira vigorosa frente ao “sublime” do precursor. Essa postura crítica vem ao encontro dos interesses deste trabalho e serve como um importante instrumento para o estudo das relações que grandes autores estabelecem com seus principais precursores. Além disso, por intermédio de Bloom, podemos contemplar a figura demoníaca como um dos principais elementos das relações metaliterárias que podemos encontrar nestes autores.

Todavia, mesmo este conceito de demonização bloomiano não é adotado de modo exato, uma vez que a tentativa de Bloom de estabelecer um funcional “mapa de desleitura” cai, muitas vezes, em um reducionismo que pode ser tudo, menos funcional. A título de ilustração, podemos reproduzir, aqui, o mapa tal qual proposto por Bloom: DIALÉTICA DO REVISIONISMO IMAGENS NO POEMA TROPOS RETÓRICOS DEFESA PSÍQUICA RAZÃO REVISIONÁRIA Limitação Substituição Representação Presença E Ausência Ľ Parte pelo Todo

Ou Todo pela Parte

Ironia Ľ Sinédoque Formação Reativa Ľ Desvio Contra o Eu. Inversão Clinamen Ľ Tessera Limitação Substituição Representação Plenitude E Vazio Ľ Alto E Baixo Metonímia Ľ Hipérbole Litotes Decomposição, Isolamento, Regressão Ľ Repressão Kenosis Ľ Demonização Limitação Substituição Representação Dentro E Fora Ľ Anterior E Posterior Metáfora Ľ Metalepse Sublimação Ľ Introjeção, Projeção Askesis Ľ Apophrades (BLOOM, 1995b, p. 94)

Deste modo, para uma visão demoníaca do gênio, interessaria, em termos de imagens no poema, perspectivas de alto e baixo, utilizando como figuras retóricas a hipérbole e a litotes, e tendo, como método de defesa psíquica, a repressão. Contudo, embora Bloom não proponha a aplicação do mapa de modo unívoco e segmentado, o mero fato de não podermos assimilar, no processo de demonização, a ironia, a metáfora e a metalepse como figuras atuantes, aponta para o caráter questionável da proposta bloomiana.

Além da idéia de demonização, um outro fato poderia colocar Bloom como um suporte teórico a ser utilizado diretamente na presente discussão: o fato de o autor ter escrito, recentemente, um extenso volume intitulado Genius. Aqui, cabe um comentário mais severo sobre a produção de Bloom. Sua obra apresenta ao menos dois momentos distintos. Após um primeiro momento de provocativa análise dos mecanismos da influência literária, período produtivo que nos legou a instigante tetralogia da influência, seguiu-se a contraditória fase de aclamado crítico pop defensor da dita Alta Literatura. Deste segundo momento fazem parte obras questionáveis, capazes de oferecer verdadeiros enlatados de verniz cultural, como O cânone ocidental, Como e porque ler e o citado Genius.

Com a intenção de definir a noção de gênio “more precisely than has yet been

done” (BLOOM, p. 7, 2002), bem como a de defender a noção de gênio, este livro de

Bloom põe a nu, de modo marcante, as deficiências desta última fase de sua produção intelectual. Através de uma insinuante divisão de cem grandes nomes de mentes criativas exemplares ⎯ que, a despeito do subtítulo da tradução brasileira, não seriam necessariamente os melhores ⎯ em dez grupos correspondentes às

Sefirot da tradição cabalística judaica, cada uma dividida, por seu turno, em dois

lustros, Bloom nos oferece um mosaico de autores representativos que impressiona, em um primeiro momento, por seu fôlego de erudição e agudeza analítica. Entretanto, um exame mais minucioso pode nos mostrar uma realidade distinta que se manifesta ao longo das centenas de páginas.

Um ponto importante é a diferença gritante de domínio, por parte de Bloom, das várias literaturas e de seus respectivos autores. É inegável a mestria bloomiana no que se refere à literatura inglesa, o que já lhe valeu a crítica de privilegiar em demasia os autores de expressão anglofônica ⎯ posição esta corroborada em

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Genius através da eleição de uma imensa maioria de autores que publicaram em inglês. Além disso, a excelência de Bloom evidencia-se em especial em dois pontos: o Romantismo (recuperado por Bloom desde seus primeiros trabalhos) e a obra de Shakespeare, tendo esta última motivado o volume de fôlego intitulado Shakespeare: a invenção do humano. Todavia, caso tomemos por base a literatura francesa, por exemplo, verificamos leituras bem menos vigorosas. Na sexta

Sefirah, Tiferet, o segundo lustro nos apresenta cinco nomes desta literatura: Victor

Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Paul Valéry. O que se verifica é um discurso sem a mesma segurança que verificamos em ensaios como aqueles que versam sobre autores da predileção de Bloom, com procedimentos analíticos que, caso não cheguemos ao ponto de considerar tendenciosos, ao menos se adequam muito convenientemente ao arcabouço místico-crítico que o estudioso escolheu para fundamentar seu trabalho, no caso a Cabala, a Gnose e o Hermetismo alexandrino, além, é claro, do velho jogo de influências e defesas que motivaria cada um dos autores em uma intrincada rede. Tal posicionamento nos oferece, para nos determos em um único exemplo, um Rimbaud bastante mistificado em um gnosticismo questionável, além de uma idéia segundo a qual ele, Rimbaud, teria abandonado a Literatura “in considerable

disgust” (BLOOM, 2002, p. 455), idéia hoje amplamente sabida como fruto de um

apaixonado “mito de Rimbaud” . Some-se a isto alguns equívocos com relação à natureza e composição de certos textos, bem como um desconhecimento dos fundamentos da principal forma de expressão empregada por Rimbaud, o poema em prosa, o que leva a mais equívocos com relação ao papel de renovação da dicção poética que o adolescente de Charleville representa.

É importante destacar que o dinamismo fundamental das Sefirot, a partir do qual cada autor estudado poderia também ser encarado sob a luz de outro conceito de emanação divina, esconde não a arbitrariedade das escolhas bloomianas, mas a inadequação potencial da classificação. Tal “relaxamento” no rigor abre espaço para um problema mais grave se levamos em conta a intenção primordial do livro (atingir uma definição de gênio precisa como nenhuma outra): simplificações e imprecisões acabam por impedir a definição do conceito. Como exemplo das simplificações, podemos destacar o próprio termo latino originário da idéia moderna de gênio,

sem muitos critérios, além, é claro, de ignorar a idéia limítrofe ingenium, igualmente importante para o desenvolvimento do conceito.

Tais problemas tornam-se ainda mais impressionantes quando Bloom promete uma definição estritamente pessoal do gênio. Após resvalar por idéias pertinentes, porém óbvias, como capacidade de absorção, autoridade, grandeza, sublime, capacidade criativa, entre outras, Bloom finalmente opta por uma imprecisa “originalidade arrebatadora” que, coadunada ao “Deus interior” emersoniano, desemboca na idéia de “consciência”, que, segundo Bloom, define o gênio. Claro, trata-se de uma maneira de ligar o gênio à Gnose, porém, trata-se também de um modo de ligar o gênio à figura de William Shakespeare que, em uma curiosa fusão com o personagem Hamlet, representa para Bloom o ápice da consciência humana. Semelhante empreitada é pouco animadora por dois motivos: em primeiro lugar, ela serve de justificativa para o dogma anglófilo de Bloom que coloca Shakespeare como divindade secular por meio de um procedimento que, para os leigos a quem este livro na realidade se destina, pode parecer alicerçado em um extremo rigor analítico. Em segundo lugar, a “definição estritamente pessoal” de Bloom mostra-se precariamente original, não só pelo débito com Ralph Waldo Emerson, mas pelo fato de que a identificação do gênio com uma “consciência” capaz de atingir a onisciência divina e assimilar a própria Natureza aponta para uma definição do genial que remonta aos primórdios das reflexões sobre o tema, seja no Sturm und

Drang alemão, com autores como Hamann e o primeiro Goethe, seja no pré-

romantismo inglês, com Edward Young e suas Conjectures on Original Composition.

Em função de tais fatos, Bloom não será utilizado, aqui, de modo sistemático. Contudo, ele estará sempre presente, seja por meio da dicção textual empregada, seja por meio de certos termos, tão caros a ele, como “agón”, “supremacia estética”, “poema e (des)leitura forte”, entre outros vocábulos hiperbólicos. Além é claro, da idéia de “demonização” que, todavia, afastar-se-á consideravelmente da concepção bloomiana, sendo utilizada em sentido lato e em considerada em termos de equivalência com os vocábulos “diabólico”, “satânico”, “luciferino” e outras idéias afins. Porém, para um defensor das desleituras criativas de precursores com os quais não se pode manter jamais uma relação bem resolvida, poderia haver elogio maior?

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