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Lumières, Lux, Lucifer: Voltaire

No documento Vésper (páginas 193-199)

Articulando as obras de Rabelais, Montaigne e Descartes com as Luzes, temos o áureo período do classicismo francês, no qual habitualmente tendemos a

esperar o império da razão ordenadora e do trabalho diligente em detrimento da inspiração e do gênio. Contudo, o pensamento clássico de modo geral não foi alheio ao tema e às suas possibilidades, tampouco o gênio não foi usado como parâmetro valorativo. A esse respeito é interessante lembrar a menção que René Bray, em seu livro sobre La formation de la doctrine classique en France, faz a respeito do fato de que “le XVIIe siècle a considéré le génie comme la première qualité du poète” (BRAY, 1961, p. 90). Evidentemente, a idéia de “art”, o trabalho metódico, é igualmente considerada (“L’art est en effet le deuxième élément qui forme le poète,

et presque toute l’ère classique est d’accord là-dessus” [BRAY, 1961, p. 90]), mas é

fundamental lembrar que o lado potencialmente obscuro do intelecto humano lançava constantemente suas sombras em um universo francês progressivamente rumo ao esclarecimento programado e programático.

Mesmo se ainda nos detêssemos no século precedente ao das Luzes encontraríamos diversos exemplos capazes de nos mostrar que o principal ponto de discordância para o estabelecimento pleno de uma visão do gênio era ainda terminológico – teríamos de esperar o século XVIII para que o vocábulo “génie” assentasse sua esfera semântica e encontrasse mentes ao mesmo tempo capazes e receptivas às suas possibilidades. Todavia, conforme já vimos, os grandes precursores estabeleceram as bases tanto da noção quanto do conceito de gênio na língua e na literatura francesa, podendo, eles, servirem de parâmetro para uma visão de gênio nacional. Assim, mesmo um epígono de Montaigne como Pascal pode assumir ares de gênio tutelar. Jacques Attali, em um livro chamado Blaise Pascal ou le génie français encontra no autor analisado um modelo perfeitamente acabado de gênio nacional: “Un génie particulièrement français dans toutes ses

dimensions: l’intellectuel, le marginal, le journaliste, le polémiste, le rebelle, l’homme d’action, soucieux d’universel, certes, mais aussi le délateur, l’arrogant, le jaloux, le menteur…” (ATTALI, 2000, p. 13).

É tentador encontrar de modo imediato um gênio abertamente demoníaco já no século XVII, sobretudo se pensarmos em “marginal” ou “rebelle”, por exemplo. Todavia, essa é a visão da tardividade, devidamente demonizada, de seus antecessores nas guerras do Céu. Até então, a demonização do gênio, embora real, ainda se estabelecia por meio de sutilezas e mediações. O século XVIII tratará de levar tal processo adiante, sobretudo por meio de seus mais representativos nomes. Um desses é justamente o de François-Marie Arouet, o polêmico Voltaire. Por sua

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natureza, Voltaire, quase tanto quanto Rousseau, poderia ser pensado a partir de seu agonismo social, artístico e intelectual exacerbado, embora o primeiro não enxergasse – aparentemente – um maligno complô em cada controvérsia, tal como fazia o genebrino. Tal posição já lega a Voltaire um lugar como um dos grandes demônios do pensamento humano, assim como o habitual papel de gênio paradigmático. E, em termos de aproximação dos termos, Voltaire desempenhou com habilidade seu papel, aproveitando a base convenientemente oscilante de Rabelais ao introduzir o vocábulo na língua e derivar da aproximação entre genius e

daimon a junção entre génie e démon:

Le daimon ou démon de Socrate avait tant de réputation, qu’Apulée, l’auteur de l’Âne d’or, qui d’ailleurs était magicien de bonne foi, dit dans son Traité sur ce génie de Socrate, qu’il faut être sans religion pour le nier. Vous voyez qu’Apulée raisonnait précisément comme frère Garasse et frère Berthier. “Tu ne crois pas ce que je crois, tu es donc sans religion”. Et les jansénistes en ont dit autant à frère Berthier, et le reste du monde n’en sait rien. Ces démons, dit le très religieux et très ordurier Apulée, sont des puissances intermédiaires entre l’éther et notre basse région. Ils vivent dans notre atmosphère, ils portent nos prières et nos mérites aux dieux. Ils en rapportent les secours et les bienfaits, comme des interprètes et des ambassadeurs. C’est par leur ministère, comme dit Platon, que s’opèrent les révélations, les présages, les miracles des magiciens. (VOLTAIRE, 2007,

s/p)

Embora com base etimológica tradicional, as sutilezas da tradução fazem com que Voltaire aproxime-se do cerne das relações entre o gênio e o princípio demoníaco em geral. Seja por meio do caráter antagônico na visão exterior da religião dominante do daímon desde o exemplo socrático, seja por seu caráter de mediador entre o humano e o divino, e, principalmente, por ligar-se à natureza profética e miraculosa, o duplo génie/démon de Voltaire lança bases que serão muito bem aproveitadas no futuro. À primeira vista, tal reflexão a partir de uma questão terminológica pode parecer um tanto quanto excessiva, mas era em tal nível que ela ocupava o pensamento de Voltaire, pois, em outra passagem, temos:

Chez les Romains on ne se servait point du mot genius, pour exprimer, comme nous faisons, un rare talent; c’était ingenium. Nous

employons indifféremment le mot génie quand nous parlons du démon qui avait une ville de l’antiquité sous sa garde, ou d’un machiniste, ou d’un musicien.

Ce terme de génie semble devoir désigner, non pas indistinctement les grands talents, mais ceux dans lesquels il entre de l’invention. C’est surtout cette invention qui paraissait un don des dieux, cet ingenium quasi

ingenitum, une espèce d’inspiration divine. Or, un artiste, quelque parfait

qu’il soit dans son genre, s’il n’a point d’invention, s’il n’est point original, n’est point réputé génie; il ne passera pour avoir été inspiré que par les artistes ses prédécesseurs, quand même il les surpasserait. (idem, ibdem)

Perceber de modo inteligente as armadilhas da indistinção da palavra “génie” em língua francesa dá uma real medida das implicações da aproximação dela com “démon”. E isso especificamente na relação agônica com a tradição e com seus predecessores divinos. Daí a necessidade da invenção, da originalidade genial que, plenamente desenvolvida, acaba por fazer do artista posterior membro de um panteão poderoso. Mas, entre os artistas, tal passagem raramente se dá de modo pacífico, sobretudo entre aqueles que mais força possuem, de modo que assumir essa força significa não assentar-se junto aos gigantes do passado mas, antes, deitá-los por terra instaurando uma nova e pessoal dinastia. Ciente disso e da dimensão da sombra de seus precursores, sobretudo de Descartes, o deus ex

machina por trás das Luzes, Voltaire busca minimizar o jogo da influência através de

uma habilidosa argumentação:

Lequel vaut le mieux de posséder sans maître le génie de son art, ou d’atteindre à la perfection en imitant et en surpassant ses maîtres?

Si vous faites cette question aux artistes, ils seront peut-être partagés: si vous la faites au public, il n’hésitera pas. Aimez-vous mieux une belle tapisserie des Gobelins qu’une tapisserie faite en Flandre dans les commencements de l’art? préférez-vous les chefs-d’oeuvre modernes en estampes aux premières gravures en bois? la musique d’aujourd’hui aux premiers airs qui ressemblaient au chant grégorien? l’artillerie d’aujourd’hui au génie qui inventa les premiers canons? tout le monde vous répondra: « Oui. » Tous les acheteurs vous diront: « J’avoue que l’inventeur de la navette avait plus de génie que le manufacturier qui a fait mon drap; mais mon drap vaut mieux que celui de l’inventeur. »

Enfin, chacun avouera, pour peu qu’on ait de conscience, que nous respectons les génies qui ont ébauché les arts, et que les esprits qui les ont

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perfectionnés sont plus à notre usage. (idem, ibdem)

Contra a invenção, o aprimoramento; contra a angústia de ter chegado tarde demais, a visão de ser a presentificação do futuro, o próximo passo na evolução, o homem do amanhã. Uma tentativa de domar o gênio, por natureza indomável. Como subterfúgio, Voltaire se volta para o “esprit”, o poder intelectual que, na língua e no pensamento francês, fundados totemicamente por Descartes a despeito das representações anteriores, permite uma interpretação no sentido de uma razão capaz de dosar, com refinamento e maturidade, o ímpeto do furor genial. Em texto que desenvolve o artigo “Esprit faux” do Dictionnaire philosophique, Voltaire define o “esprit” a partir dos seguintes termos:

Le mot esprit, quand il signifie une qualité de l’âme est un de ces termes vagues auxquels tous ceux qui les prononcent attachent presque toujours des sens différents: il exprime autre chose que jugement, génie, goût, talent, pénétration, étendue, grâce, finesse; et il doit tenir de tous ces mérites: on pourrait le définir, raison ingénieuse.(idem, ibdem)

Essa “raison ingénieuse” é um dos subterfúgios pelos quais Voltaire busca trapacear no jogo literário: o gênio – aqui engenho – passa a ser um dos atributos da razão, perdendo, em teoria, algo de sua força original. Todavia, Voltaire atinge o máximo da eloqüência nesse sentido quando considera o furor genial a partir de sua máscara de “enthousiasme”, ser possuído pelo deus. Sendo cuidadoso para não negar a idéia por completo, ele concede espaço apenas para melhor aprisioná-lo sob o jugo da razão:

La chose la plus rare est de joindre la raison avec l’enthousiasme ; la raison consiste à voir toujours les choses comme elles sont. Celui qui, dans l’ivresse, voit les objets doubles est alors privé de sa raison.

L’enthousiasme est précisément comme le vin ; il peut exciter tant de tumulte dans les vaisseaux sanguins, et de si violentes vibrations dans les nerfs, que la raison en est tout à fait détruite. Il peut ne causer que de légères secousses qui ne fassent que donner au cerveau un peu plus d’activité ; c’est ce qui arrive dans les grands mouvements d’éloquence, et

surtout dans la poésie sublime. L’enthousiasme raisonnable est le partage des grands poètes.

Cet enthousiasme raisonnable est la perfection de leur art ; c’est ce qui fit croire autrefois qu’ils étaient inspirés des dieux, et c’est ce qu’on n’a jamais dit des autres artistes. (VOLTAIRE, 1961, p. 182)

E Voltaire continua. Tomando o exemplo de Safo, ele aproveita o mito criado em torno da poetisa para expor os possíveis malefícios do entusiasmo não controlado: “Sapho exprimait l’enthousiasme de cette passion ; et s’il est vrai qu’elle

lui coûta la vie, c’est que l’enthousiasme chez elle devint démence” (VOLTAIRE,

1961, p. 181). A demência, aqui, permite que se desça um novo degrau qualitativo no poder genial além de qualquer controle, ampliando sua margem disfórica e metamorfoseando a possessão divina na demoníaca, que, aqui, apenas pode ser vista em termos negativos e em tom de galhofa. Na entrada “Démoniaques” de suas Questions sur l’Encyclopédie (onde encontramos as expansões do Dictionnaire aqui citadas), Voltaire afirma:

Les vaporeux, les épileptiques, les femmes travaillées de l’utérus, passèrent toujours pour être les victimes des esprits malins, des démons malfaisants, des vengeances des dieux. Nous avons vu que ce mal s’appelait le mal sacré, et que les prêtres de l’antiquité s’emparèrent partout de ces maladies, attendu que les médecins étaient de grands ignorants. (VOLTAIRE, 2007,

s/p)

Transformando o “furor sagrado” do entusiasmo genial em “mal sacré” dos “démoniaques”, Voltaire visa conter o gênio demoníaco que, sem ser plenamente nomeado, animava seus precursores totêmicos. Contudo, o estilo sobretudo do Voltaire artista ecoava a invenção do ensaio em Montaigne; o diabolismo inesperado da tentativa de desautorizar os gigantes do passado trazia à tona Rabelais e, por fim, com máxima força, o amparo na razão mostra o quanto Descartes estava presente. Sendo os três o arquétipo compósito do gênio francês, inclusive em seu caráter demoníaco, vemos como Voltaire não pôde negar sua influência. Uma pena, pois sua inteligência aguda e sua verve satânica o teriam tornado um perfeito avatar desse mesmo gênio. Todavia, em meio às Luzes, um outro titã teria de ser

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responsável por levar adiante o discurso sobre o gênio: Denis Diderot.

No documento Vésper (páginas 193-199)