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Diabo Satã Lúcifer

No documento Vésper (páginas 67-72)

Considerar as aproximações entre o gênio e a tradição místico-religiosa que engendrou a figura complexa do Adversário é algo importante, sobretudo devido ao fato de que o mito do grande oponente do Deus judaico-cristão – sobretudo cristão, na relidade – não possui uma continuidade histórica unívoca. Embora seja uma idéia bastante difundida atualmente vale lembrar que a religião dos hebreus, na base mítica do judaísmo tardio e do cristianismo, não apresentava, a partir de seus textos sagrados, a figura do Diabo tal como o conhecemos hoje. Na verdade, uma série de elementos reconhecidos pelo cristianismo como pertencentes à esfera do Diabo não o eram a princípio. A serpente do Éden, o Satã do livro de Jó, a Estrela da Manhã do livro de Isaías, assim como a figura do Dragão de antigos mitos de confronto entre Caos e Ordem ou deuses ctônios de povos inimigos, nada era a princípio parte de um mito complexo e tardio (mas de evidente força).

Se recuarmos para os princípios de YHWH como Deus de seu povo eleito, teremos uma divindade que agrega em si tanto o Bem quanto o Mal. Movimento interessante de construção do divino como sujeito, YHWH, a princípio, seria uma entre tantas divindades presentes em um universo politeísta, talvez até mesmo um deus guerreiro menor que, em determinado momento, passou a fazer do universo mítico egípcio. Ao passar a fazer parte da religião de um povo como Deus principal, caminha gradativamente para a centralização do poder que, a princípio, coloca-o como o mais poderoso dos deuses (aqui, sua natureza de deus guerreiro é particularmente útil). Isso não nos impede a percepção plural da divindade, seja pela apropriação, por parte da escritura, da forma plural elohim como um dos nomes de YHWH, seja pela manutenção, agônica, como seria de se esperar, de outras divindades vizinhas. Ainda não poderíamos falar em “demônios” nesse contexto, mas mitos sombrios do deserto aproximam-se bastante disso em termos de negatividade. Daí a espantosa passagem em “Levítico”, 16, 8-10, a respeito do dia da expiação:

Lançará a sorte sobre […] dois bodes, atribuindo uma sorte a YHWH e outra a Azazel. Aarão oferecerá o bode sobre o qual caiu a sorte ‘De IHWH’ e fará com ele um sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte ‘De Azazel’, será colocado vivo diante de IHWH, para se fazer com ele o rito de expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 183)

Mesmo que pensemos Azazel segundo a interpretação relativamente tardia de um demônio do deserto tanto hebreu quanto cananeu, o procedimento sacrificial mostra o quanto ainda tínhamos fronteiras nebulosas no caminho para o monoteísmo posterior. Asmodeu, Lilith, Baal, em suma, manifestações às vezes sombrias do divino que posteriormente passariam a fazer parte de um panteão diabólico, disputam espaço textual com YHWH e apontam para uma necessidade de existência de antagonistas. Afinal, a passagem para uma visão realmente monoteísta que tornará YHWH onipotente, lança um importante problema teológico que pode ser considerado sob a ótica literária do gênio agônico e demoníaco: se Deus é onipotente, como considerá-lo infinitamente bom e ao mesmo tempo admitir a existência do Mal? O oxímoro teologal é de natureza cristã, obviamente, feito a partir da visão de um deus que é pleno amor caritativo. No universo hebraico, sobretudo o anterior ao exílio babilônico, a questão se resolvia de modo simples e brutal.

Partindo do célebre versículo de Isaías, 45, 7 (“Eu formo a luz e crio as trevas,/ asseguro o bem-estar e crio a desgraça:/ sim eu, YHWH, faço tudo isso” [BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 1325]), Jeffrey Burton Russel, autor de cinco célebres livros dedicados ao Diabo (The Devil, Satan, Lucifer, Mephistopheles e The Prince of Darkness), no primeiro deles, que trata das percepções do mal da Antigüidade ao cristianismo primitivo, resolve o imbróglio sobre a existência do Mal em um universo regido por um deus onipotente da seguinte maneira: “Na religião hebraica anterior ao exílio, Iavé fez tudo o que havia no céu e na terra, tanto de bem como de mal. O Diabo não existe” (RUSSELL, 1991, p. 173). Mas na literatura posterior ao exílio, influências variadas fizeram-se sentir, sobretudo o dualismo zoroastriano que, contrapondo a Ahura Mazda a figura do grande antagonista Ahriman, ofereceu um dos principais modelos para o confronto fundamental entre Deus e o Diabo. Tendo boa parte do Antigo Testamento sido escrita por volta do século VI a. C., ainda que não seja traduzida em termos de nossa visão atual do

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Diabo, essa influência permeou a literatura bíblica de então e permitiu que se estabelecesse bases para o futuro Satanás.

Com relação à serpente do paraíso, cuja matriz negativa remonta, em termos literários, aos primeiros séculos do segundo milênio a. C., com a Epopéia de Gilgamesh, e outros deuses-demônios animalizados como Leviatã ou Behemot, temos ainda a memória das origens belicosas de YHWH. No lendário Livro das batalhas de YHWH, segundo as menções que se salvaram, teríamos justamente um confronto entre o futuro todo-poderoso hebreu e a grande serpente aquática, símbolo do caos e do feminino. Ecoam ainda, aqui, elementos de influência que se sedimentaram após o exílio, como o mito babilônico de Marduk vencedor da Tiamat, dentre outros. Todavia, a multiplicidade mítica não contribuiu para a criação de um mito malévolo unificado, e seria necessário a revisão cristã do Antigo Testamento para propor versículos sintetizadores como em “Apocalipse”, 12, 9, a respeito da batalha celeste que determinou a queda do Diabo: “Foi expulso o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo ou Satanás” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 2154). Ao juntar esses epítetos para o Adversário, o “Apocalipse” unifica a serpente edênica, a bestialogia dos demônios-deuses estrangeiros, e o Satã do “Livro de Jó”, mediados pelo grego diabolos, o agente desagregador. Por sinal, a figura de Satã no Antigo Testamento deve ser discutida.

Satã, na literatura pré-cristã da Bíblia, seria o termo para designar um obstáculo a ser ultrapassado, derivando daí a idéia de “Adversário”. Apresentado junto ao artigo, Satã surge tanto em “Jó” quanto em “Zacarias” (3, 1-2), mas será algo próximo de um nome próprio apenas no “Primeiro Livro das Crônicas”, 21, 1: “[O] Satã levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 574). Além do caráter pouco personalizado de Satã no Antigo Testamento, é importante destacar que o personagem do “Livro de Jó” é apenas mais um bene ha-elohim, um dos “filhos do Senhor” que ecoam o princípio politeísta anterior, e, fiel à etimologia de Satan em hebraico (“opor”, “acusar”), atua sobretudo como uma espécie de promotor público da corte celestial. Assim, aproxima-se de um aspecto do próprio YHWH, como se fosse um mal’ak

YHWH, que, mais que um emissário ou mensageiro de Deus, é mesmo um aspecto

da presença divina. Isso nos traz instigantes reflexões sobre a construção da identidade tanto de YHWH quanto de Satã, e, se lembrarmos que a ocorrência mais personalizada de Satã em “Crônicas” espelha o “Segundo Livro de Samuel”, 24, 1

(“A ira de YHWH se acendeu contra Israel e incitou Davi contra eles: “Vai”, disse ele, “e faze o recenseamento de Israel e de Judá” [BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 466]), chegamos a um ponto perturbador no qual figura de Satã como sujeito funda- se na identificação com aspectos negativos do ethos divino. Essa alteridade semelhante demais para ser confortável, interfere nas opções de escritura. Elaine Pagels, em clássico estudo intitulado As origens de Satanás, aponta com argúcia que a utilização negativa de Satã a partir do Novo Testamento (que sob a forma em grego aproxima-se de nosso “Satanás”) estava ligada à representação de adversários judeus do cristianismo nascente. Assim, Satã passa a representar mais que o Adversário, passa a ser o “inimigo íntimo”, o Outro que também é Eu. Isso terá influências na vasta tipologia de máscaras do demoníaco após o estabelecimento do Diabo na Idade Média, como no caso do judeu como sinônimo de satânico, ou como bem aponta Pagels: “à medida que o movimento cristão se tornava cada vez mais gentio no século II e daí em diante, a identificação de Satanás sobretudo com os inimigos judeus de Jesus, mantida na tradição cristã ao longo dos séculos, alimentaria o fogo do anti-semitismo” (PAGELS, 1996, p. 59).

Seria válido ainda um breve comentário a respeito de uma das máscaras do Diabo que não encontram justificativa bíblica direta. Trata-se da visão de Satã antes da queda como Lúcifer, primeiro e mais belo entre os anjos. Essa visão de grandiosidade (ainda que perdida) do Diabo teve de esperar para ser consolidada, sobretudo porque, no início do cristianismo, o antagonista de Deus teve pouco destaque efetivo. Em seu livro Uma história do diabo, no qual analisa o tema do século XII ao XX, Robert Muchembled aponta para essa situação: “O diabo mostrou- se discreto durante o primeiro milênio cristão” (MUCHEMBLED, 2001, p. 19). Isso sobretudo no espaço da Arte, pois conforme continua Muchembled: “Teólogos e moralistas interessavam-se por ele, sem dúvida, mas a arte quase não lhe dava espaço, o que era um indício, entre outros, de ausência de uma grande obsessão demoníaca no centro mesmo da sociedade” (MUCHEMBLED, 2001, p. 19). Assim, o mito do maior entre os caídos – expressão na qual se destaca “o maior” – deveria ainda ser trabalhado para dar origem a Lúcifer.

Na Bíblia, o Diabo nunca é apresentado como Lúcifer. As menções à estrela matutina são antes referências ao Cordeiro triunfante, como em “Apocalipse” 2, 26- 28 (“Ao vencedor, ao que observar a minha conduta até o fim,/ conceder-lhe-ei autoridade sobre as nações;/ com cetro de ferro as apascentará,/ como se quebram

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os vasos de argila – / conforme também eu recebi de meu Pai. Dar-lhe-ei ainda a Estrela da Manhã” [BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 2145]). Mas a tradução da Vulgata para um famoso trecho de “Isaías” (14,12), transformou o epíteto do rei da Babilônia, Helel ben-shahar (“Estrela d’Alva, filha da Aurora”), cuja queda estava sendo profetizada, em “Lúcifer”, de modo que os comentadores puderam estabelecer um paralelo entre a Estrela da Manhã e um elemento disfórico. Assim, a queda do rei babilônico assumiu ares de queda fundamental após a terrível batalha no Céu. Para que isso pudesse renovar definitivamente o mito diabólico foi fundamental o sucesso do Adversário com o passar da Idade Média. Se de início sua atuação fora dos círculos eminentemente religiosos tinha sido discreta, a passagem do milênio e a aproximação do Renascimento foram vantajosos para o Diabo. Comentando esse período, afirma Muchembled:

O Ocidente dos quatro últimos séculos da Idade Média é, antes de tudo, cristão, o que dá à religião lugar primordial na explicação [do Mal]. No entanto, a esfera religiosa não está circunscrita a si mesma. Ela coincide com os fenômenos políticos, sociais, intelectuais e culturais confirmando- os. O aumento do poder de Lúcifer não é conseqüência unicamente de mutações religiosas. Ele traduz um movimento de conjunto da civilização ocidental, uma germinação de poderosos símbolos constitutivos de uma identidade coletiva nova. (MUCHEMBLED, 2001, p. 32)

Desta maneira, o aprimoramento da identidade do Diabo acompanha uma mudança na própria identidade social, colocando o demoníaco, assim como havia ocorrido com o divino, em contato com a esfera política, se não com a ética. Na passagem do século XV para o XVI, o papel de destaque do Diabo durante a Reforma luterana contribuiu para o desenvolvimento do mito, e mesmo o Renascimento artístico contemporâneo da Reforma foi tocado pela invenção mitologizante do Diabo e do Inferno levada a cabo no início do século XIV por Dante e sua Commedia. Abria-se, assim, espaço para revitalização do Diabo como oponente titânico de Deus, papel em que seria tomado como modelo para o gênio romântico. E, literariamente, embora grandes nomes o tivessem assimilado de uma forma ou de outra, o Diabo teve de esperar o século XVII e o advento de John Milton para atingir sua apoteose no Paradise Lost. Satã, com muito da glória do Lúcifer de

antes da queda, muda seu estatuto ao passar do âmbito teológico para o artístico, ou, como destaca Luther Link em O Diabo, a máscara sem rosto:

Embora nas obras dos teólogos ele possa ser o oponente de Deus, o Diabo assemelha-se a um inseto impotente, salvo quando é investido do poder que Milton lhe confere para abalar o trono de Deus ou da cólera que o poeta saxão lhe empresta para rebelar-se contra a injustiça divina. (LINK, 1998, p. 202)

Citando um outro estudioso clássico do tema, Mario Praz, poderíamos ainda acrescentar que:

Avec Milton, le Malin prend définitivement un aspect de beauté déchue, de splendeur voilée de tristesse et de mort; il est “majestueux dans sa chute”. L’Adversaire devient étrangement beau, non pas à la manière des magiciennes sœurs d’Alcine et de Lamia, dont l’apparence charmante est une œuvre de sorcellerie, une vaine illusion qui tombe en cendres comme les fruits de Sodome. La beauté maudite est un attribut permanent de Satan ; le tonnerre et la puanteur de l’Etna, vestiges de la sombre figure du démon médiéval, ont disparu. (PRAZ, 1998, p. 73)

Estava preparado o palco para o ato transubjetivo que faria do gênio um demônio. Por sinal, intencionalmente, a máscara do Diabo como demônio foi deixada de lado até esse momento. Isso se deu devido ao fato de justamente a idéia de demônio ser a responsável pela íntima relação lingüística entre o Diabo e o gênio. Vejamos, então, o daímon.

No documento Vésper (páginas 67-72)