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A Herança Mística dos Primórdios do Protestantismo

O estudo da Reforma aponta a presença da experiência mística, quer se considere um âmbito mais individual ou como fenômeno coletivo. Enquanto processo individual e personalista tem como um dos possíveis significados a afirmação da autonomia e da subjetividade do ser humano, que toma como ponto de partida sua relação direta com o

sagrado, assumindo o poder que antes pertencia exclusivamente à Igreja enquanto instituição possibilitadora da salvação. O domínio religioso sobre a vida humana na Idade média, estendia-se da esfera “pública” ao que a modernidade nomeou posteriormente de “vida privada”, englobando profissão, nascimento, morte, casamento, vida universitária, entre outros aspectos, conforme fez notar Lucien Febvre (1962). Quando os reformadores como Lutero, Calvino, Wesley propõem que o indivíduo se relacione com Deus, sem intermediações, tomando conhecimento da Sagrada Escritura, promovem um novo horizonte de relações sociais diante dos modos-de-ser católicos, abrindo um campo de liberdade e de construção de identidade para o indivíduo, até então desconhecido. A construção de identidades psicológicas e sociais que o pluralismo protestante gesta, abrange também seu interior enquanto movimento, o que implica em que o misticismo possa ser uma das formas de afirmação desse mesmo pluralismo, já que é a radicalização, o testemunho da singularização da relação com o sagrado, se opondo as formas de totalitarismo religioso dependentes da condição institucionalizante da religião. A hipótese de uma mística protestante apoiada na experiência religiosa de união da interioridade do crente com o divino esta de acordo com a posição teórica de Luís Henrique Dreher (2004), que sustenta herança religiosa da Reforma, baseada especialmente o Pietismo do século XVIII em diante. Referindo-se a mística protestante em sua expressão alemã, Dreher distingue entre uma mística de cunho eclesiástico e por outro lado, um misticismo originário das idéias de Paracelso (1493-1541), o protestantismo de Weiguel e Boehme, que se tornaria autônomo na cultura, influenciando autores como Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), Gotthold Ephrain Lessing (1729-1781) e Johann Gottfried Herder (1744-1803), o idealismo e o romantismo. A mística protestante seria originária do pensamento de Lutero, quando desvinculou a tradição mística do papismo, e assumida socialmente por Jacob Spener, conforme assinala Dreher. Já Walter Von Loevenich (1988) em seu estudo da teologia da cruz sustenta que no pensamento de Lutero há um ponto central que é a ética da comunhão. Enfim, esses autores consideram que existe uma herança mística que se prolonga de Lutero aos movimentos religiosos luteranos, incluindo aspectos filosóficos e a idéia de uma experiência mística interior e imediata, que se opõe à prevalência de uma visão meramente letrada de misticismo, conforme afirma Dreher (2004, p. 213). Ao ver desse autor a oposição à mística luterana e sua herança pode se encontrada na teologia liberal baseada nas idéias do filósofo Immanuel Kant e a teologia dialética, em um de seus expoentes: Emil Brunner.

A experiência mística no moldes individualistas é condizente com a modernidade e o advento do individualismo representando a fronteira e a barreira, contra as formas de religião,

que não passem pelo desejo subjetivo, ou seja, a posição que permite ao ser reconhecer-se como singularmente pertencente a uma cultura religiosa, exercendo sua espontaneidade e criatividade diante das mudanças sociais, em possibilidades contestatórias, reivindicatórias, idealizadas e marginais. Essa possibilidade de cultura religiosa, traçada pela Reforma vais se tornar um palco de conflito religioso, especialmente diante da institucionalização fazem uso extremado da razão, padronização, sistematização das relações religiosas. No campo da cultura, nem tanto da letra em si, o misticismo protestante, aponta para o sentido da letra e da imagem não hierarquizada da santificação, mas da imagem da graça que atesta a santificação. Na intimidade da subjetividade nas um campo de experiências místicas que se justapõe as formas sociais de experiências religiosas protestantes. As concepções calvinistas de oração e seu significado parecem condizentes com esse tipo de experiência, na qual o sujeito cria uma linha divisória entre o público e o privado na relação com Deus, parecendo fazer uso da emoção como característica distintiva entre esses dois modelos de ser-religioso.

A mística de Jacob Boehme tem característica mais especulativas quando comparada a de Lutero, a qual de certo modo se opõe, propondo que a natureza é uma fonte de revelação assim como a Bíblia. Boehme formula a concepção de um Deus absconditus, que transpõe a barreira teológica de Lutero da doutrina da graça e da salvação. Assim, escreve Boheme (1998) sobre a natureza e a matéria:

(...) o que quer que seja duro ou pungente, como os ossos, a matéria, as plantas, os metais, o fogo, a terra, as pedras e as coisas semelhantes, é resultado de um movimento análogo ao da força divino quando se depara com a rudeza e a aspereza da Natureza. Pois então ela encerra-se em si mesma e passa a subsistir ali apenas como uma centelha ou como uma nobre jóia. Portanto tais coisas são duras ou ígneas por que tem seu fundo no encerramento divino, que ocorre quando o eterno UM ao introduzir-se continuamente no fundo (grund) da triplicidade para suscitar o movimento das forças torna a se fechar de novo diante do afluxo da vontade da própria da Natureza a fim de poder operar, através da Natureza com a força da unidade. (Boehme, 1998, p. 59).

De outro lado, quando se trata de um misticismo socialmente praticado pelo grupo como, por exemplo, na pregação, devoção, “encantamento do texto bíblico” e padronização de comportamentos religiosos, parece haver a tentativa de construção de uma identidade protestante, que não se deixa ser única, e alimenta-se da oscilação entre indivíduo/coletividade, gerando tensões constantes entre os dois pólos. Emoção/razão; memória/projeto de futuro; erudito/leigo; institucionalização/mutação; singular/coletivo; revelam alguns dos paradoxos, que permitem a compreensão do Protestantismo, uma vez que

se considere, que esse é um movimento em busca de emancipação do sujeito de parte do imaginário medieval e simultaneamente a tentativa de realização do mesmo, enquanto aproximação do mundo sobrenatural de modo direto. Vale lembrar que as missões nascem dessa necessidade de romper um certo campo de relações huma nas, e inaugurar ou abrir novas possibilidades, que o sonho e as visões místicas vão anunciar como real, antes que as relações sociais possam tentar realizá-los. Afirmando que o indivíduo já alcança por si o contato direto com o sagrado na experiência mística, o fiel protestante interroga e questiona o coletivo, sobre suas reais condições de realizá-lo, apontando para abertura da fronteira para o “novo mundo”, inaugurando o projeto de paraíso na “América”, o que vai ser descrito nos próximos capítulos.

O pietismo garantiu a legitimidade e a continuidade da mística em solo protestante afirma Dreher (2004). Do seu ponto de vista essa ação foi graças a Gottfried Arnold, que apontou como heresia a interpretação privilegiada da “igreja visível” ao invés da idéia de “igreja invisível”, existente em Lutero e Calvino. Mesmo que as ortodoxias das igrejas calvinistas e luteranas dessem ênfase à exterioridade, as transformações sócio-culturais, teológicas e lingüísticas da modernidade, criaram as condições de sustentação da experiência mística protestante, com suas variações e significados. A interpretação subjetiva da Bíblia pode na modernidade se justapor a àquelas socialmente formuladas, criando possibilidade de uma mística até então inexistente. Mesmo que teologicamente e ideologicamente se propague que o Protestantismo admitiria no máximo uma visão de união com a divindade post mortem, a Psicologia postula que o indivíduo busca “experiências de fusão” com o outro, além de modalidades de trabalhar simbolicamente com o paradoxo existencial da alteridade/semelhança como será descrito nos próximos capítulos. Outrossim, é que mesmo que essa situação não fosse válida cientificamente, ainda restam ao menos dois argumentos: que o indivíduo desconhece a si mesmo, se vendo na tarefa de gerar sua plausibilidade continuamente (Berger e Luckmann, 1999) diante de circunstâncias sociais mutáveis, não podendo, portanto ser objeto de afirmações finalistas. Da perspectiva desses sociólogos, quando se trata de uma igreja, torna-se mais difícil alcançar o reconhecimento subjetivo de um sentido global “por trás” dos motivos do indivíduo, necessário às integrações sociais, o que constitui um dos elementos a ser enfrentados pelo Protestantismo visando sua sobrevivência social enquanto instituição. Um segundo ponto de vista se baseia na idéia do radicalismo da modernidade, que comporta a idéia de que no intimo do eu, não há teologia que se formule, pois o mistério domina e se ausenta do máximo alcance que o mito gerado pela herança iluminista se propõe a realizar nas investigações científicas. Resta, portanto um

resíduo que resiste ao saber institucionalizado, deixando aos indivíduos a possibilidade de encontrarem significados a suas experiências religiosas, ou criar socialmente os sentidos que lhe permitam enfrentar a insegurança advinda das transformações sociais. Esse resíduo parece ser uma das fontes do conceito de Bastide (1975) de “sagrado selvagem”, tornando-se um depósito simbólico do não reconhecido pelas instituições, mas nem por isso com menor caráter sócio-cultural. A natureza da inovação histórica das comunidades pietistas parece representar uma amostra desses processos.

Prescindindo dos instrumentos institucionalizantes que mantiveram o catolicismo, tais como o apelo às imagens de santos e a hierarquia das autoridades religiosas, o Protestantismo vai ter que lançar mão de recursos para a ocorrência da integração necessária a sua configuração, para além de seus princípios. No Brasil, Etienne Higuet (1984) lembra que cerca de 90% da população se declara pertencente a Igreja Católica, mesmo participando pouco dos rituais oficiais e admitindo idéias e práticas rejeitadas pela autoridade eclesiástica. O catolicismo popular, afirma Higuet (1984, p. 25) caracteriza-se por uma “religiosidade simples e espontânea que se contrapõe a organização e aos aparelhos de poder da religião oficial, dispensado-se os serviços especializados do sacerdote e sistematização dos conteúdos da fé”. Desse modo o devoto cultua seu santo de devoção geralmente com oração, velas, promessas, demonstrando devoção e necessidade de proteção. O catolicismo santorial e devocional é uma forma de expressão religiosa mística. “A espinha dorsal da religiosidade popular é mística, ou seja é a sua espiritualidade. Está presente em todas as expressões do catolicismo e em todos os graus da consciência popular”, afirma Higuet (1984,p. 29). A literatura protestante, por outro lado parece ter sido uma das modalidades de expressão do misticismo protestante, especialmente nas camadas populares, que tendo sido em parte expropriada dos seus espaços simbólicos pela institucionalização da religião, que tem em formas como o êxtase religioso “o mais forte componente de recusa da intermediação do discurso articulado e do esforço de fuga para um outro universo que corresponde a essa negação ou inversão” observa Mendonça (1984, p. 19) A criação da uma literatura, que lança mão da imagem, alegoria e metáfora, comunica-se com o leitor em sua simplicidade, gerando um imaginário que promove mais que a construção de conceitos, a manutenção da esperança, vivida em um teatro do futuro e da fé?

Capítulo 3

Literatura Protestante e Experiência Mística

Explorar trechos das obras de John Bunyan A Peregrina e O Peregrino como pertencentes à literatura caracterizada como protestante, é o objetivo desse capítulo. O estudo de obras literárias descortina um conjunto de articulações e interações entre as forças sociais que as constituem e por elas são constituídas enquanto imaginário, representações, criações e ideais sociais. Em outras palavras a literatura é produto de um tempo social, como todas as obras de arte e ainda pode ser vista como uma forma estratégica de veicular idéia, ideologia e criar utopias. Roger Bastide (1971, p. 75) comenta que o criador de valores nunca trabalha só. A sociedade se faz presentificar nele, moldando em uma dimensão significativa seu produto: fornece a tradição que disciplina sua inspiração, e mais que isso está a seu lado sobre a forma de público. A opção do estudo de obras de arte representativas do Protestantismo, embora não sendo o único recurso para penetrar o universo cultural desse movimento, permite aproximação e ampliação das manifestações místicas presentes em seu interior, auxiliando na compreensão das relações entre as idéias que associam a razão, a ética e os significados afetivos e sociais atribuídos às idéias e práticas religiosas.47 Dentro das indicações acima delineadas, este capítulo pretende explorar amostras de duas obras literárias características do Protestantismo, de modo que as relações entre idéias vigentes e as forças sociais possam se tornar mais evidenciadas, no que são as indagações da pesquisadora.