• Nenhum resultado encontrado

70 Segundo Eliade (1992, p. 161: 163) através do segundo nascimento, ou nascimento espiritual, o sacrificante

visa atingir após a morte, o Céu, ou a morada dos deuses. Para tal, o sacrificante deve ser previamente consagrado pelos sacerdotes. Geralmente esse processo ocorre dentro de um sistema simbólico que remete a um regresso uterino, onde a água implicava em purificação e acesso ao novo conhecimento. É neste sentido que Sócrates comparava-se a uma parteira que auxiliava o homem a nascer para uma nova consciência de si, dando origem a um “homem-novo”. Este sistema simbólico esta presente nas práticas místicas do hinduismo, do budismo e na Grécia antiga. Em Buda, há a idéia de que é pela audição da doutrina, que a iniciação se dá, produzindo o conhecimento supremo revelado pelo Dharma.

Torna-se possível tecer considerações de como o misticismo pode ser visto como uma estratégia de protesto social. Essa relação é feita por vários sociólogos71, entre os quais está Lewis (1971, in Terrin, 1998). A hipótese principal é de que essas experiências religiosas são formas de denuncia, ataque e protestos dos indivíduos oprimidos e desiludidos com a vida social e a cultura. Viver transes e êxtases em suas modalidades visíveis ou imaginárias é estar durante certo tempo fora dos controles de padronizações culturais vigentes. É importante esclarecer qual o sentido dado aos termos transe e êxtase72. Embora muitos autores usem esses conceitos de forma equivalente, a fenomenologia através do ponto de vista descritivo estabelece algumas diferenças. O êxtase é uma experiência associada a uma certa meditação, silêncio e ao recolhimento das forças psíquicas e espirituais havendo uma certa exclusão do mundo circundante. Geralmente comporta uma visão de conteúdo religioso73. O transe é um fenômeno onde há movimentos, rumor, presença de outras pessoas, crise de personalidade e estímulos sensoriais tais como drogas, músicas, danças. Há geralmente amnésia e ausência de alucinações. Pode-se pensar que o imaginário presente na construção da experiência mística, mantém seu poder calcado no mistério, que cerca sua compreensão. Assim os sentidos das manifestações místicas não são precisos, não se sabendo se são projeções de mundos desconhecidos, espelhos de realidades nunca vistas, frutos de um dejávu imaginário ou ilusório, ou se são de fato um encontro com o sobrenatural74. Terrin (1998, p.115) considera ainda uma convergência de vários significados.

Configurando novas formas de experiência do sagrado, minorias religiosas marginalizadas criam um refugio, uma fuga da realidade social e cultural. Além disso, beneficiam-se da idéia presente nas diferentes culturas, de que os fracos têm como patrimônio um poder mágico. Atraem novos fieis com maneiras diferenciadas de se relacionar com o sagrado que estão associadas a constituição de outra identidade social e de novas formas de exercício do poder. Os movimentos místicos anteriores a Bunyan, mas acessíveis enquanto informação de usa existência e de seus efeitos, forma descritos de forma ampla por Norman

71 Segundo Terrin (1998, p. 136) pode-se associar as diversas teses sociológicas entre si: as de Bastide (1972,

1979), de Rasmussem (1925) ao estudar o vudu haitiano, as de Metraux (1971) que ao ser ver são teorias filogramiscianas.

72 Sigmund Freud nomeia estes fenômenos de modificações obscuras da vida da alma em seu texto O Mal Estar

da Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

73 De acordo com o antropólogo americano Bourguignon (apud Terrim, 1998, p. 121) pode-se chamar de efeito

trofotrópico a unio mystica de mística cristã e também o produto de oração , o satori do budismo zen, o samadhi dos iogues, o fana que é o aniquilamento em Deus buscado pelos místicos sufistas.

74 Terrin (1998) cita que em 1882 criou-se em Londres a primeira Society of Psychical Reserarch e em 1976 um

comitê americano chamado Comitee for Sicentífic Investigation of Claims of Paranormal que realizam estudos e publicações na área.

Cohn (1980), sendo muito semelhantes aos movimentos moravianos. Ao retratar a condição do camponês da Idade Média, Cohn (1980) aponta que a vida tradicional na terra não havia criado um estado de abundância mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, de modos que a vida nunca deixou de ser uma rude batalha, não obstante o desenvolvimento das técnicas agrícolas. A vida camponesa era modelada e sustentada pelo costume e pela rotina sendo um ponto difícil de ultrapassar. Em todas as aldeias eram escassas as comunicações e uma má colheita significava fome para as massas. Muitos camponeses eram servos, cujo sangue já determinava sua herança. Era uma época em que as únicas garantias efetivas da independência pessoal residiam na posse das terras e na possibilidade de porte de armas, os camponeses encontravam-se em grande desvantagem, pois que só aos nobres é permitida a posse das armas e de quase toda a propriedade da terra das regiões agrícolas, que disputavam com a Igreja. Somente a partir do século XI essa situação, começou a se alterar uma vez que a população pode crescer e o comércio a se desenvolver. Um dos movimentos surgidos no século XV que demonstrou vigor pelas idéias de liberdade extrema e capacidade de sobrevivência diante das perseguições era a chamada heresia do Livre-Espirito. Seus adeptos não eram revolucionários sociais e não encontravam seus seguidores entre os pobres urbanos, Eram sim influenciados pelas idéias gnostica, buscavam a salvação individual, mas mediante um misticismo anárquico, que firmava a liberdade tão fortemente, que impedia qualquer constrangimento ou limitação. Poderiam ser considerados precursores de Nietzsche ou de Bakunin. Assim descreve Norman Cohn (1980 p.125):

Historicamente a heresia do Livre-Espirito pode ser considerada como uma forma aberrante de misticismo que tão vigorosamente floresceu na Cristandade Ocidental a partir do século XI. Tanto o misticismo ortodoxo, como o herético brotaram de uma ânsia imediata de apreensão e comunhão com Deus; ambos realçavam o valor de experiências intuitivas e particularmente as de êxtase. E tanto um como outro foram fortemente estimulados pelas redescoberta da filosofia neoplatônica, na qual foram buscar a maior parte de seu aparato conceptual. Mas por ai param as semelhanças. Os místicos católicos viviam as suas experiências místicas no âmbito de uma tradição sancionada e perpetuada por uma igreja solidamente instituída e quando como muitas vezes acontecia eles criticavam essa igreja, o seu alvo era regenerá-la. Por outro lado, os adeptos do Livre-Espírito eram intensamente subjetivos, não reconhecendo outra autoridade além das suas próprias experiências. Aos seus olhos, a igreja era no melhor dos casos , um obstáculo à salvação e no pior, um inimigo tirânico – seja como for, uma instituição desgastada que desde logo precisa de ser substituída pela sua própria comunidade enquanto veículo para o Espírito santo.

O âmago da heresia do Livre-Espírito residia na atitude do adepto para consigo próprio, faz observar Cohn (1980). Ele acreditava que tinha atingido uma perfeição tão absoluta que era incapaz de pecar. Uma das conseqüências era o repudio das normas morais O

homem perfeito achava que podia fazer tudo, mesmo o que era socialmente proibido. A sensualidade que por muitas vezes emerge dessas vivências não pode ser interpretada como mera experiência de prazer, assumindo, sobretudo um valor simbólico, um signo de emancipação espiritual, o que incide sobre o amor livre.

Deste modo, na medida em que o Protestantismo pode representar no imaginário social, um elemento de represamentos dos anseios sociais torna-se atraente a um público, que se deixa seduzir por novas modalidades de religiosidade propostas, quando comparadas as experimentadas através do catolicismo. Como cada fiel exercita livremente o contato íntimo com a divindade e isto se dá de forma personalizada, interpretando por si mesmo o texto bíblico, o misticismo que assim se produz não deixa de engendrar no mundo social certas transformações. Protestar, fugir ou refugiar-se da realidade em um encontro singular, mediado ou estimulado pelas palavras sagradas ou pela música, é agir no mundo de acordo com um escala de valores que imprime novas formas de poder. Veja-se como foram retratadas por Bunyan os critérios de escolhas de casamentos no primeiro trecho intitulado Experiências

Domésticas (p.69-70) e no segundo trecho Visão da Mulher Proferida por Gaio (p. 112-113)

a definição do papel de mulher e sua condição social, ambos da obra A Peregrina, citados respectivamente:

Trecho 1

Possuía Misericórdia muitos attrativos: era dum rosto formoso e agradavel, e muito trabalhadeira. Quando não tinha nada que fazer para si, occupava-se em fazer meia roupa para os pobres. Gentil, que a via sempre a trabalhar e não sabia o destino que ella dava ao que fazia, enamorou-se della e pediu-a em casamento, dizendo de si para si: aposto que há de ser uma boa dona de casa; vou fazer um bom negocio.

Misericórdia manifestou às senhoras da casa o que se passava, e pediu-lhes informações sobre o seu pretendente, porque sabia que o haviam de conhecer melhor do que ella.

- É um moço aproveitável – disseram, - trabalhador e que faz profissão de religioso, mas tememos que seja estranho ao poder regenerador do Evangelho.

_ Nesse caso, affirmou Misericórdia, acabou-se. Estou no firme propósito de não me casar com marido que possa estorvar-me de seguir no caminho que emprehendi.

Prudência então disse-lhe que ,segundo lhe parecia, não era preciso muito para o despedir : bastava ella continuar como até ali a trabalhar para os pobres, que elle arrefeceria no seu zelo.

E assim foi. Quando novamente a encontrou entre a à sua faina habitual, fazendo roupa para os pobres e ela respondeu (...)

Faço isto, retorquiu ella, para que seja rica em boas obras e para amontoar um thesouro, como um fundamento sólido para o futuro, a fim de alcançar a verdadeira vida. (Capítulo X, p. 69:70)

Agora prosseguiu Gaio, vou fallar a favor da mulher, para a livrar do oprobrio que sobre ella pesa Se é verdade que a morte e a maldição entraram no mundo por meio duma mulher (Gênesis III) , não é menos verdade que por uma mulher entrou

também a vida e a salvação Deus enviou o se Filho, feito de mulher ( Gálatas IV, 4) . Para mostrar o quanto as que vieram depois reprovavam o peccado da nossa mãe commum, é ver como as mulheres do Velho Testamento desejavam ardentemente ser mães de filhos, na esperança de que esta ou aquella fosse a mãe do Salvador do Mundo Quando, por fim, veio o Salvador, foram as mulheres que primeiro se regozijaram nElle, antes mesmo dos anjos ( Lucas II). Não se diz que homem alguma desse a Christo nem sequer um maravedi, porém as mulheres O seguiram e Lhe offertaram dos seus haveres ( Lucas VIII, 2 e 3) Foi uma mulher que lavou os pés de Jesus com as suas lagrimas ( Lucas VII, 37 e 50), e também uma mulher que Lhe ungiu antecipadamente o Seu corpo para ser enterrado ( Lucas, XXVIII, 27) .Foram mulheres que choraram quando o Salvador foi conduzido ao supplicio (Matheus, XXVII, 55,61) e as que O seguiram desde a cruz e se sentaram junto do sepulchro, quando o enterraram (Lucas, XXIV, 22,23).As Primeiras pessoas que estiveram com Elle na manhã da ressurreição foram mulheres (João, XI,2 e XII 3 a 6) e mulheres eram também as pessoas que primeiro levaram aos discípulos as novas de que Christo havia ressuscitado.As mulheres, como vemos, souberam-se honrar e participam conosco da Graça e da Vida.

Assim também todas as doutrinas e ministros devem despertar em ti, nesta vida, mais vivos desejos de participares da grande ceia do Rei no Seu Reino. A pregação da Palavra, os livros espirituaes e outras coisas semelhantes apenas se podem comparar ao pôr da meza se nos lembrarmos do grande banquete que o Senhor nos prepara para quando chegarmos a Sua casa. (Capitulo XV, p. 112: 113)

No segundo trecho, o papel da mulher parece ser resgatado para uma postura de

dignidade, onde é posta com sua imagem de modelo de companheirismo, de fidelidade, de maternidade, de dedicação, bondade, persistência, de testemunha, de quem vive alegria com a divindade, inspirada no modelo da Mãe do Salvador. Resgatar esta posto no sentido de reparação, uma vez que há uma imagem oposta, na qual a mulher se configura como aquela que se alia as forças do maligno, introduzindo a maldição no mundo. A seu cargo estariam as tarefas de gerar e educar75 aqueles que teriam as condições para efetuar a escolha do caminho à Cidade Celestial. Observa-se que durante a viagem as crianças são tentadas e orientadas para que não se desviem do percurso.

75 A educação até o século XV era exercida quase com exclusividade pelos pais. Sobretudo no século XVI, o

colégio modificou e ampliou seu recrutamento. Segundo Ariès (1981) a população dos colégios era composta de uma pequena minoria de clérigos letrados, passando a abrir suas portas para um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também as famílias mais populares. Este projeto de educação ganha fôlego com a idéia Protestante de que o conhecimento era importante, o que herdara da Renascença e mais tarde do Iluminismo. Conhecer permite ler e interpretar a Bíblia por si mesmo. Os protestantes têm um papel fundamental na Educação da América Latina (Gomes, 2000), onde ocorre a construção de escolas e colégios sobre seus auspícios, influenciando desse modo a formação da mentalidade cultural e social e imprimindo formas as experiências religiosas, que se desenham a partir desse modelos, inclusive o misticismo. Rubem Alves (1979) concorda com a idéia de que em certas ramificações do Puritanismo, se realizou a repressão de idéias, comportamentos e atitudes religiosas, de acordo com a moral, que representava interesses da institucionalização da época, relacionados ao binômio Bem/Mal. A permissividade, ou a proibição trazia em si a ambivalência crente/ímpio: pensamento largo/ pensamento estreito; provisório/definitivo.

Um ponto de reflexão sobre os textos citados é sobre o papel da mulher na Idade Média. Havia superioridade numérica das mulheres nas cidades, e o trabalho feminino foi importante para a vida econômica. Na aristocracia o excedente feminino era encontrado nos conventos e nas camadas populares nas atividades de trabalho. A tradição monástica associava a mulher aos pecados e aos vícios. Eram consideradas com poucas qualidades morais e como as que corrompem o que é puro. São pecadoras por natureza, que se alegram com esse estado e sua prática é uma ato pensado e desejado por elas.

Bastide (1990) esclarece que o pecado é um ato de desobediência às ordens da divindade pessoal. Afirma que sob a lei do tabu a intenção não conta. Mas no pecado intervém a vontade humana. Toda a criminalidade, voluntária ou não, provoca automaticamente más influências e, portanto requer punição. Quando a ruptura de contrato é de responsabilidade do pecador, as conseqüências de seus atos podem atingir gerações sucessivas. O autor de

Elementos de Sociologia Religiosa diz que a idéia de sanção opera uma transformação

correlativa à passagem do tabu ao pecado. No caso do pecado, o castigo é mais sintético e pode não vir dependendo da graça recebida da divindade. A sanção oferece um tempo de espera ao castigo que pode ou não ocorrer, funcionando como mediadora e promotora de reflexão, onde a redenção do pecado pode ser realizada.

Quanto a moral, existem vários pontos de vista na sociologia. Como esse tema não é objeto de estudo desse trabalho, por hora torna-se interessante observar que a educação das

crianças contempla um aspecto moral, geralmente a cargo da mulher. A moral sendo vista como um conjunto de regras que regem a cooperação social, tem como ponto de apoio, ou mesmo uma de suas fontes a religião, tendo em vista que visa promover a união dos fiéis em torno da divindade. Há que se pensar que no Protestantismo, como uma denominação que

exercita a liberdade, a moral e a ética desempenharam um papel fundamental, de criação de um padrão de

conduta que fornecesse uma identidade social ao grupo, onde seus membros pudessem ser reconhecidos e

reconhecerem-se uns aos outros, tornando possível a institucionalização da religião. Neste sentido afirma

Bastide (1990) que a religião em si independe da moral, como mostram as religiões primitivas, porém: (...) ela

lhe é útil como técnica de educação da vontade (...) A moral e a religião estão unidas nas grandes religiões

éticas como o budismo e o cristianismo. (Bastide, 1990, p. 57, 58)

No primeiro trecho além dos aspectos acima relacionados, observa-se que a opção de Misericórdia se baseia em critério de que um homem para ser seu parceiro, tem que ser cristão como ela, conjugar dos mesmos ideais

e estar no mesmo caminho. A família ganha importância nas gravuras do século XVI e, sobretudo no XVII,

enquanto lócus privilegiado da vida privada. “Esta farta ilustração da vida privada poderia ser classificada em

dois grupos distintos: o do namoro e da farra à margem da vida social, no mundo suspeito dos mendigos, nas

tabernas, nos bivaques, entre os boêmios e os vagabundos e a outra face: o grupo da vida em família” (Ariès,

1981). Assim as gravuras dos séculos anteriores, nas quais predomina o grupo, as confrarias e as corporações, sedem espaço as imagens da família. As cenas do casal e suas crianças no cotidiano passam a representar as

relações sociais íntimas e sagradas. Elas devem ser resguardadas de todos os perigos e desvios, que possam

representar as tentações do mal. Portanto a escolha de um parceiro, dentro desses costumes passa a ser um ato

criterioso a partir da pertença de seus membros as denominações religiosas protestantes. A migração

relacionada ao Protestantismo traz um horizonte onde a célula familiar é um aparato de defesa, de manutenção

dos valores culturais e religiosos e de propagação do projeto de um novo mundo, permeado de esperança.

A Música também parece fazer parte de um cenário paradisíaco presente na difusão no Protestantismo Histórico, alimentando a literatura da época da reforma e sua crença na instauração do Paraíso Terrestre. Ainda de acordo com Delumeau (2003) a Coleção de Hinos para o povo Metodista, composta por John Wesley (1737) e o Hinário revisto e ampliado pela convenção geral da Igreja Protestante Episcopal Americana, comportam visões do paraíso e descrições dos céus, feitas de modo esteriotipado.76 Composta de lógica e emoção a música apela tanto aos sentidos quanto a inteligência, permitindo a coexistência ou a composição de razão e afeto.