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Misticismo: Contribuições das Ciências Humanas

Do ponto de vista teológico, Thimothy George (1993) observa que uma das vias para o conhecimento de Deus é a teologia mística. Ela está situada ao lado da teologia natural, que concebe a ação de Deus na criação e usa a razão para entendimento do mundo humano, e da teologia dogmática, que estuda a revelação de Deus nas Escrituras, no credo e na tradição da Igreja. A teologia mística pretende estudar os processos de ligação do homem com Deus através de experiência de contato direto. Este ramo de estudos contempla o deslumbrar para além de si mesmo, incluindo fenômenos como êxtase, arrebatamento e intuição. Foram identificadas duas tradições místicas na Idade Média, entre outras. A primeira tradição é o misticismo voluntarista, que faz conformidade dentre a vontade do homem e a vontade de

Deus, com os estágios de purgação, iluminação e contemplação. A segunda é o misticismo ontológico, tendo como ponto de partida o distanciamento entre Deus e o homem. A aproximação se dá na proposição de que no fundo da alma humana existe uma centelha divina conduzindo a união ou à absorção. Expoente dessa vertente é Mestre Eckhart (1260?-1328), que aponta uma via de desprendimento de si mesmo e de outros seres, que poderia conduzir ao nascimento do Filho Eterno dentro da alma. Esta idéia chocou-se com os interesses da Igreja, que via nesse relacionamento direto do homem com a divindade uma ameaça à necessidade de sua função, bem como uma oposição à formulação do nascimento humano de Jesus. Mesmo sendo condenadas pelas autoridades eclesiásticas, as propostas de Eckhart foram traduzidas para uma linguagem popular por seus discípulos Johanenes Tauler e Henrich Suso (1300-1365). A piedade marcante de suas proposições foi radicalmente seguida por fiéis na Idade Média e influenciaram, entre outros movimentos, a Reforma.

A experiência religiosa é um ponto central para a Psicologia da Religião, sendo integrantes de sua composição, o conhecimento e o afeto. Na afirmação de Geraldo de Paiva (1998), as categorias de numinoso, infinito, divino, mistério, tremendo e fascinante, alcançam o campo científico, especialmente voltado à vivência da pessoa religiosa. O objeto religioso passa a ser um dado a partir da adesão religiosa individual, social e/ou institucional. O vocábulo “experiência” denota sempre apreensão imediata de seu objeto, nada dizendo da modalidade dessa apreensão. Para Friedrich Schleiermacher (2000), trata-se da apreensão do Infinito, para William James (1995) do Divino, para Rudolf Otto (1985) do Sagrado. Schleiermacher (2000) afirma que todos conhecem através da própria consciência três direções distintas dos sentidos: uma em direção ao interior, isso é ao próprio eu; outra em direção ao indeterminado da visão do mundo; uma terceira que oscila e une ambas, que só repousa a aceitação incondicional dessa união mais intima em direção ao perfeito de si. Em seus escritos, se encontra assim:

Esse reconhecimento do estranhamento e a destruição do próprio que se impõe por onde for ao homem sensato essa exigência simultânea de amor e desprezo em direção a todo o finito e limitado estranhamento e a exigência simultânea de amor e desprezo em direção a todo finito e limitado, não é possível sem um obscuro pressentimento do Universo. (Schleiermacher, 2000, p. 95)

Existem dificuldades de circunscrever a experiência religiosa mística, nas multiplicidades de formas e sentidos que lhe são atribuídos na história dos povos e das

religiões. Raph Hood (1997) construiu uma escala para investigar características da experiência mística, porém seu uso, fidedignidade e abrangência, estão limitados pelos fatores acima descritos.Para o eminente psicólogo Willian James (1995), a experiência mística é a fonte de referência para as demais experiências religiosas, uma vez que se constitui como o modelo original de vivência da qual derivam. As características que distinguem a experiência mística são: passividade, inefabilidade, qualidade noética e transciência. Esses elementos conjuntamente indicam um estado de consciência especial. James observa que para os místicos a experiência é uma autoridade praticamente inquestionável, tendo em vista que se trata de uma dimensão da subjetividade, constituída pela característica da imediaticidade da percepção. Nesse sentido o estado de fé e o estado místico são praticamente intercambiáveis. Uma das funções mais relevantes dos estados místicos é sua capacidade de oferecer um novo significado a eventos comuns do cotidiano, das relações sociais ou da subjetividade, possibilitando que novas formas de expressão seja criadas e que se alterem afetividade aspectos sócio-culturais de um dado contexto. Sobre esse aspecto, escreveu James (1995 p. 266):

É preciso que sempre permaneça em aberto a questão de saber se os estados místicos não podem ser pontos de vista superiores, janelas através das quais a mente olha para um mundo mais extenso e abrangente. A diferença das vistas percebidas das várias janelas místicas não nos impede de acalentar essa suposição O mundo mais amplo, nesse caso provaria que tem uma constituição mista como a deste mundo mais nada Teria as suas religiões celestiais e infernais, seus momentos de tentação e salvação, suas experiências válidas e infernais, seus momentos de tentação e salvação, suas experiências válidas e forjadas, precisamente como as tem o nosso mundo. Mas seria um mundo mais vasto do mesmo jeito. Teríamos de usar as suas experiências escolhendo, subordinando e substituindo, exatamente como costumamos fazer nesse mundo naturalístico comum, estaríamos sujeitos ao erro como estamos agora; entretanto a inclusão desse mundo mais amplo de significados e o trato sério com ele, apesar de toda a perplexidade, podem ser estádios indispensáveis do nosso enfoque da plenitude fina da verdade. (James, 1995, p.266).

A esta altura pode-se enfrentar a pergunta: de que maneira as Ciências Sociais tomam o misticismo como objeto de estudo? A explicação sociológica para o misticismo baseia-se assim na idéia de que a experiência mística não é um estado emocional individual apenas, mas sim o acordo ou o produto dessas tendências com as forças sociais de um dado contexto. A objetividade das representações sociais fornece a matéria prima para a construção dos estados místicos subjetivos. É na tradição histórica, no campo dos valores simbólicos e morais que os sentimentos surgem e se manifestam. Cada indivíduo enquanto elemento de um grupo social tem que se haver com a tensão que emana dessas duas forças, cabendo-lhe encontrar

modalidades de relação com as tradições e fazer delas a fonte de transcendência para um novo eu. A originalidade do místico se compõe na forma como cria e tematiza essa tensão: parte é individual, parte são os dogmas, as crenças, os gestos, a linguagem que o permeia enquanto membro de um grupo religioso ou ao menos social.

Max Weber pode ser considerado um dos sociólogos que se interessou pelos fenômenos místicos, haja vista que por ocasião de seus tipos ideais, encontra-se a oposição entre magia e religião. Magia e religião se identificam enquanto conjunto de práticas e ações que se constroem em torno do extraordinário, ou seja, do carisma. Para ele, o carisma se identifica com o que se pode chamar de mana, prenda, maga, dom. A característica principal é ser extraordinário, podendo ser atribuído aos indivíduos, objetos e em certos momentos a toda coletividade. Um exemplo desse tipo seriam as orgias, o que Durkheim chamaria de efervescência religiosa. Os tipos ideais para Weber são “construções heurísticas que não podem ser comparados a fenômenos empíricos, mas a recursos metodológicos de valor instrumental”, afirma Cecília Mariz (2003 p. 78). A coerência que se encontra nos tipos ideais não é possível de ser observada na realidade. Assim podem ser considerados os três tipos de ação social denominados por Weber de tradicional, carismática, que correspondem respectivamente aos profissionais mago, sacerdote e profeta. Em sua obra Economia e

Sociedade, Weber (2000) afirma que o profeta tem seu poder sustentado pela tradição,

enquanto o mago tem seu poder conferido pela instituição, dogmas, doutrinas, teologias racionais e finalmente o profeta por suas características extraordinárias, ou seja, seu carisma pessoal. Já para realizar certos tipos de análises sociológicas, Weber opõe o mago ao sacerdote nos seguintes aspectos: o mago tem qualidades (mana) que o fazem capaz do “obrigar” o sobrenatural a realizar seu pedido, enquanto o sacerdote teria uma postura mais submissa em relação à divindade, fazendo orações, súplicas pedidos ou rituais reconhecidos pela instituição a qual pertence para tentar alcançar seu objetivo junto a divindade. O mago tem uma postura de autonomia em relação à organização institucional, e quando falha em seus pedidos pode perder o poder que o grupo lhe outorga, enquanto o poder do sacerdote emana diretamente na confiança que o fiel depositaria na instituição, tendo um contato menos personalizado com a divindade, pois fala em nome de uma crença ou dogma institucionalizado.

Tanto a magia quanto a religião para Weber (2000) seriam racionais, mas obedeceriam a lógicas diferentes. Enquanto religião pode tender para a sistematização da experiência

religiosa, criando dogmas e doutrinas para a relação indivíduo-divindade, a magia utilizaria um raciocínio prático e imediatista. Ainda pensando em certa variação da tipologia weberiana, Mariz (2003) assinala que o racionalismo do ocidente não pode ser entendido através da oposição simples entre magia e religião, sem se considerar a ação do profeta emissário que seria um especialista do carisma, que tem o poder de efetuar rupturas fundamentais no sistema religioso, podendo ocupar o papel do revolucionário. Nesse sentido são identificáveis dois tipos de profetas: o emissário e o exemplar. Observa Mariz (2003) que via de regra os profetas emissários pregam religião de salvação, em oposição à religião ritualística e práticas mágicas: em nome da ética, fazem uma substituição da lógica da magia para princípios fraternais e universalistas. Nesse sentido representaria uma postura mais moralista, favorável a institucionalização da religião, sendo seu tipo o do “carisma racionalizante”. Em contraste com esse tipo, a magia seria uma prática sustentada por regras particularista, enfatizando a relação puro/impuro e os tabus. Os profetas emissários no oriente tem por objetivo a transformação da religião e da vida, propondo para essa finalidade leis e práticas religiosas que eram cobradas de todos os fiéis. Já os profetas exemplares defendem uma religião de salvação de tipo contemplativo. O primeiro conduziria a ascese, enquanto o segundo a mística.

Max Weber (1982) conceituou o fenômeno do misticismo em contraponto ao ascetismo, a partir da visão de condutas sociais em polaridades opostas: onde o místico busca minimizar sua ação no mundo, indo ao encontro com o sagrado, o asceta prova-se através de sua ação no mundo. No misticismo, o fiel tem uma visão de si como receptáculo do divino, enquanto na religião de ascese, ele buscaria controlar seus impulsos e comportamentos para controlar o mundo, o que é interpretado como uma vontade divina. Como Weber tece seu pensamento no modelo de tipos puros, convém atentar para a idéia de que na realidade das relações sociais, torna-se necessário buscar aproximações e não o comportamento em si mesmo. Diante dessas formulações weberianas, Mariz (2003, p. 83) assinala que:

Uma diferença marcante é que a religiosidade mística tende para uma imanência e despersonalização do divino. Além disso, se constituem em experiência apenas para iniciados, os virtuoses religiosos, como o seria também uma ascese fora do mundo. Por isso a mística e ascese fora do mundo não afetam a conduta da maioria de fiéis no cotidiano. Em contraste, a religião ascética dentro do mundo exige uma transformação de todos os fiéis e de cada um como um todo. A racionalidade do ocidente se construiu sobre uma idéia de ascese no mundo e personalização do divino, que para Weber já estariam presentes no judaísmo e cristianismo primitivo. (Mariz, 2003, p. 83).

Alexandre Cardoso (1998) mostra a importância do conceito de misticismo subjacente aos tipos ideais em Weber, tendo em vista que esse autor permite uma confrontação empírica com vários tipos de conduta, que muitas vezes podem ultrapassar o realizado pelos estudos de Weber. De acordo com Cardoso (1998, p.4), o indivíduo que tem uma conduta mística, considerada em todas as suas variações, criaria rotas de fuga do mundo, que, consideradas na sua relação com a modernidade, nada mais são em suas formas geradas no contexto da própria modernização. Em oposição à sociologia de Durkheim, Cardoso evita o termo sagrado, “pelo estatuto de realidade suprema que ela costuma assumir nessas tradições”, referindo-se também a posição de Mircea Eliade. O termo extramundo é preferencialmente utilizado por Cardoso (1998) para designar o território invocado pelo místico, em uma atitude de passividade: deuses, espíritos, oráculos, forças telúricas, o milênio, a magia, seres extras e infraterrestres, energias sutis que se comunicam. Vistas como rotas de fuga pelos fiéis, as religiões tradicionais fariam uso da mística, muito mais do que da ascética, como estratégia de crescimento. O misticismo pode ser definido como a orientação do indivíduo ou de grupos sociais “para as realidades que se abrem para além dos limites definidos pelas relações e percepções ordinárias e que são referências recorrentes, mais ou menos intensas, para a orientação de quaisquer indivíduos que passam por situações consideradas por eles próprias como limites” (Cardoso, 1998, p.9).

Aproximando-se das idéias do sociólogo Pierre Bourdieu, Cardoso (1998) afirma que se podem reconhecer os agentes sociais e porta vozes especializados em religião, chamados de “mistificadores”, em relação com os “mistificados”. O discurso mistificador é aquele que consegue provar ao mistificado que sua experiência limite pode ter um significado e que ele é o agente capaz de realizar essa tarefa. Assim, cria-se um contrato, no qual especialistas religiosos sejam eles indivíduos ou instituições tradicionais, operam o campo simbólico, com os elementos significativos da cultura religiosa, oferecendo uma organização aos estados limítrofes experimentados pelos mistificados. O mistificador isenta-se de toda responsabilidade por sua condição de sujeito, colocando-se na posição de quem apenas representa as forças simbólicas do extramundo. O tipo extremo desse teatro social seria o aprendiz de mistificador, como agente da razão, que coloca ordem no caos, vivido como situação desaranjadora, ou limite pelo mistificado.

Aqui se estabelece um jogo de poder, em que as imposições feitas pelo mistificador lhe garantem um lugar neutro, ocupado tão somente pelo extramundo. Ao se colocar o protestantismo como uma das religiões que comporta a presença do misticismo, pode-se perguntar se não é a própria idéia de racionalidade que é mistificada, uma vez que é posta como a modalidade por excelência de organizar a sociedade, tendo em sua forma ética, o pilar dessa possibilidade. Ou ainda se os agentes mediadores da relação fiel-divindade não imantam seu discurso, com a idéia de que uma vez que sejam naturalmente fundamentados na razão, como as representações do próprio sagrado em pequenas porções de interpretações que não estariam sujeitas a quaisquer tipos de questionamentos. Deste modo o mistificador cumpriria o que Cardoso (1998) chama de dupla negação, a saber, do mundo e do extramundo, uma vez que sua atitude se mostra desassombrada e manipulativa frente ao campo “do além” dos limites com o qual opera.

A procura por orientações teóricas e conceituais que permitam clarificar o

fenômeno do misticismo a partir da ótica das Ciências Sociais encontra as idéias de Roger Bastide (1959), que tem papel de destaque e relevância, dado sua literatura sobre o assunto, já bastante conhecida. Além disso, Bastide realizou estudos na sociedade brasileira, o que abriu um horizonte aos pesquisadores que se situam nesse universo. Bastide (1971) realiza uma leitura que advém do contato constante com o campo, orientando como fazê-lo de modo profundo, claro e fundamentado, o que serve de guia aos cientistas, em suas

diferentes tarefas metodológicas e teóricas. Ainda torna-se relevante considerar que, como toda experiência religiosa, o misticismo se insere em uma esfera de poder, na qual o indivíduo pode expressar modos de alienação frente ao seu grupo, bem como modos de protesto contra uma ordem social e religiosa vigente, ou ainda intencionar a preservação de certos valores e elementos enraizados na cultura.

De acordo com Bastide (1971), mesmo que o indivíduo esteja sujeito a influências da tradição religiosa, guarda em seu interior algum elemento original que pode ser expresso em

sua experiência religiosa. Essa singularidade por assim dizer vista em seu meio social, interage com circunstâncias históricas, estruturas da sociedade, alterações econômicas e morfológicas, dando origem a um misticismo em sua especificidade. Bastide (1959) afirma que a religião nasce do misticismo, e que quase todas as Igrejas o concretizam. No entanto, se o misticismo expressa o sagrado e o separa do profano, tende a ser canalizado, regularizado e controlado, para finalidades de cada instituição, que, pela sua própria natureza, não pode ceder tanto espaço para o espontâneo e o criativo que surge em cada grupo humano ou em cada elemento de sua comunidade. Essa separação, no entanto, não significa seu desaparecimento, mas sim que permanece como elemento oculto e presente na intersubjetividade das relações sociais no seio da comunidade, ou ainda no interior do fiel, resistindo a domesticação e constituindo o “sagrado selvagem”.

Nesse sentido, é possível afirmar que o misticismo está tanto no nascedouro e base de qualquer religião, como também no topo, até porque uma de suas finalidades é conduzir o homem a uma vida de santidade. Essas idéias de Bastide estão de acordo com as de Rudolf Otto conforme observado por Bruno Birck (1993) quando afirma que o conhecimento do religioso pode advir tanto pela via racional, que conduz a essência e existência de Deus, como pela via extra-racional. Logo, o elemento intelectual de certo modo é anulado do ponto de vista de ambos os autores.

Cabe lembrar que o sentimento tem uma relevância especial na percepção do objeto para Otto (1992), uma vez que elimina as mediações, permitindo que se chegue a um contato imediato com o sagrado. Ressalta Otto que a visada afetiva é que permite penetrar o mistério, inacessível à razão, distinguindo dois estados: um de temor intenso (tremendum), que à medida que enfraquece cede lugar ao estado de fascínio, e arrebatamento (fascinans), que se expressa na embriaguez ou no desmaio, chamado de sentimento criatural. O temor intenso é a percepção inicial da dimensão do sagrado, quando o fascínio denota a consciência da pequenez e a prostração advinda desse contato com o numinoso em sua plenitude. Clarificando a emoção que ocorre no contato com o numinoso, Otto (1992, p.21-23) afirma que pode espalhar-se na alma como uma onda apaziguadora, seguido de quietude e profundo recolhimento. Seus efeitos podem prolongar-se durante muito tempo, ou desaparecer quando a alma se coloca novamente em seu espaço profano. Ressalta manifestações como choques e convulsões, enebriamento, estranhas excitações e êxtase. Contempla o aparecimento de

formas selvagens, demoníacas. Em graus inferiores, surge como manifestações bárbaras, brutais, desdobrando-se em processos de refinamento, purificação e sublimação. Silêncio e interdição de movimento são sinais da alma diante do mistério que está acima das criaturas. Nesse estado, seus efeitos acessórios são a fé na salvação, confiança e amor.

Observa também Otto (1992, p. 30-33) que há pontos em comum entre as idéias de Mestre Eckhart e Gerhard Tersteegem que apontam, nas tendências místicas, para características como o juízo de que o ser humano não possui uma realidade plena e completa, essencial, reduzindo-se às vezes ao puro nada quando contrastados com o sagrado. A individualidade torna-se assim uma ilusão diante do objeto transcendente, fazendo com que a pessoa tome consciência de que nesse tipo de experiência seu eu é aniquilado. Tem-se contato com a glória, o desvelamento, a luminosidade e o esplendor. Toda a piedade e obediência avaliadas segundo esse ponto de vista mostram sua origem divina. O numinoso comporta ainda traços energéticos, podendo ser identificado simbolicamente, como vida, paixão, movimento, vontade, atividade, excitação e impulso. Esse elemento anti-racionalista é identificado por Otto (1992, p.34) em Lutero, contra Erasmo. “A Omnipotentia Dei é à força de Deus que não conhece obstáculo, nem repouso, que age e subjuga, do Deus vivo”. Ressalta ainda que, no misticismo, é a mesma energia que se mostra enquanto voluntarista. É um movimento impetuoso, experimentado com sensações de devoração e queimação, fazendo com que seja difícil tolerar a aproximação com o sagrado, que se mostra esmagador e absoluto em seu poder. Ser devorado pelo fogo é uma expressão representativa dessa