• Nenhum resultado encontrado

Wesley e a Convivência com o Espírito Santo

A relação entre fé e razão, tem em seu bojo a relação que o Protestantismo tenta estabelecer com o mundo no qual se insere o homem. De um certo modo, pode-se pensar que as missões foram vistas dentro dessa óptica, ao menos pelos que nelas tomaram parte, o que não nega outros elementos relacionados ao desenvolvimento das forças históricas e produtivas da época. Um exemplo dessas idéias se destaca no sermão de John Wesley, de 1774 em Oxford. Para esse reformador, o Cristianismo pode ser visto a partir de três princípios: 1)como inerente ao ser humano enquanto cristão; 2) como meio de propagação da mensagem cristã de um ser humano para outro; 3) para transformar o mundo. Na concepção de Wesley, Deus é o desejo dos olhos dos Cristãos e a alegria de seu coração, o que os conduziria a amar

os outros como manifestação de que eram amantes de Deus. A visão de mundo de Wesley, sua forma de explicar os acontecimentos do cotidiano, geralmente eram permeadas pela presença do sagrado que se apresentava assim em estreita relação com o homem. A esse respeito, registrou Wesley em seu diário de 12/3/1743:

Completei a segunda série de visitações, em que indaguei particularmente acerca de duas cousas: 1) a causa daqueles que, quase cada noite durante a semana, gritaram durante a pregação. 2) o número daqueles que se separaram de nós, e o motivo e a ocasião disso. Quanto à primeira, achei: 1) que todos (creio sem exceção) eram pessoas de saúde perfeita, e não tinham sido sujeitas a ataques de espécie alguma, até que foram assim afetados. 2) que isso lhes sobreveio num instante, sem aviso prévio, enquanto escutavam a palavra de Deus, ou pensavam no que tinham ouvido. 3) que, naquele instante, caíram perderam as forças, e se viam atacados de dores fortes. Isto eles explicaram de diversas maneiras. Alguns disseram: “Sentimos como se estivéssemos transpassados por espadas”; Outros: Pensávamos que grande peso repousava sobre os comprimindo-nos no chão. Outros ainda afirmavam: “Que era como se o coração, o peito interior, e todo o corpo, estivessem sendo despedaçados”. Esses sintomas não os posso atribuir a causa natural senão ao Espírito de Deus. Não duvido que era Satanás que os rasgava quando eles iam a Cristo; daí os gritos pelos quais pudesse desacreditar a obra de Deus, e espantar o povo para que ao escutasse aquela palavra que lhe podia salvar a alma. (Wesley, 1965, p.40).

Esse registro das idéias de Wesley descritas acima, provenientes de seu diário pessoal, indica que seguia uma via distinta dos que preferencialmente se atinham ao método analítico e racional, como forma de saber e fazer progredir o homem. Conseqüentemente, a imaginação e o sentimento, podem ser vias privilegiadas para o conhecimento de Deus. A proposta de uma vida interior intensa, da oração, da meditação dos textos sagrados e da conformidade de atitudes do ser humano com as indicações do Evangelho se delineia como meio adequado para encontrar as verdades cristãs. Em 1728, Wesley, participou da fundação de um grupo de estudo religioso, ao lado de seu irmão Charles e de seu amigo George Whitefield, chamado de

Holy Club. Situado em Oxford, Inglaterra, esse grupo, visava potenciar as obras religiosas da

Igreja, e difundir o comportamento religioso no centro da universidade, dando ênfase ao método atividade acadêmica e devoção, o que lhe valeu o nome de Methodista Influenciado pela doutrina luterana da salvação pela fé e pela espiritualidade moraviana a proposta weslyana manteve um certo distanciamento das congregações oficiais da Igreja da Inglaterra, orientando sua ação para o povo mesmo. Anos antes Wesley convivera com os irmãos morávios, tecendo críticas às práticas religiosas da igreja, a qual ele classificava como fria e impiedosa para com as populações menos abastadas. Criou Wesley uma teologia eclética, voltada para essa população, a qual dirige suas pregações, práticas e ações religiosas, em uma postura itinerante, percorrendo grandes distancias no território inglês. Socorrer os pobres engajar-se em lutas pelos menos favorecidos eram provas da presença e das operações de Deus na alma do crente. Wesley exortava a criação de sociedades e grupos de ajuda aos

menos favorecidos como os doentes, viúvas, analfabetos, pobres, que incluía empréstimos, construção de escolas, campanhas, e imprensa que se organizava também para essa finalidade. Sobre as atividades de Wesley voltadas às populações economicamente menos abastadas, vejam-se abaixo os registros de seu diário de (5/3/1784) e (10/3/1765) respectivamente:

Voltei a Kingswood, e indaguei a respeito da administração da escola. Descobri que algumas regras não estão sendo observadas, particularmente aquela acerca do levantar cedo de manhã. Certamente Satanás tem ódio a esta escola! Quanta preocupação esta escola me tem dado por estes trinta anos! Faço plano, mas quem é que vai executá-los! Eu não sei; o Senhor me ajudará! (Wesley, 1965, p. 66).

Levantamos uma coleta em nossa congregação em prol dos tecelões que estavam sem emprego. A coleta importou em quarenta libras. Na reunião da nossa Sociedade, á noite, levantou-se outra coleta que importou em catorze libras, e forma aplicadas para socorrer os necessitados da nossa Sociedade. (Wesley, 1965, p. 108).

Wesley orientava as sociedades metodistas que iam se constituindo para o modelo de comunidades moravianas, com pequenos subgrupos que confiavam sua vida entre si, estudavam e se repreendiam quanto ao seu comportamento. O mesmo grupo lhe provia a sobrevivência e se auto gestava, tendo autonomia na decisão de assuntos que eram concernentes ao grupo, realizando trocas de serviços necessários ao cotidiano.Surgiram muitos grupos metodistas em Londres, Bristol, e várias cidades. As pregações de Wesley ocorrem em um tempo de muita precariedade econômica e social. Vale lembrar que o século XVIII foi marcado por muitas transformações na Inglaterra, que inaugurou a era industrial com os processos de migração da população do campo para as cidades, o que inicialmente representava uma grande massa de homens sem perspectiva de trabalho. Lelièvre (1988) afirma que nessa época, as classes populares inglesas eram ignorantes, desorganizadas e suscetíveis à violência e agressão. Os bares e tabernas estavam lotados, sendo o consumo de trezentos mil litros por ano. As ruas de Londres eram povoadas de pessoas que as utilizavam como dormitório, necessidades de “higiene”, ficando inertes. De cada seis casas dessa cidade, uma era taberna. Mesmo que o Parlamento inglês proibisse a venda de bebida, a clandestinidade garantia o consumo. A diversão eram os jogos, prostituição e a superstição ao lado da criminalidade freqüente. Aqui novamente o diário de Wesley nos ajuda a compreender suas experiências, conforme ele registrou (11/04/1751):

O barbeiro que me barbeava disse: Senhor, eu louvo a Deus por sua causa. Quando o senhor estava em Boston, a última vez, eu era o ébrio mais notável da cidade; fui ouvi-lo pregar, fiquei perto da janela e Deus me feriu no coração. Então orei pedindo poder sobre o meu vício de beber, e Deus me deu mais do que pedira, tirou-me o desejo de beber; contudo, eu me sentia pior sempre pior, até que no dia 5 de Abril, p.p. não me agüentava mais. Sabia que cairia no inferno naquele instante, se Deus ao me

socorresse. Mas Ele me apareceu, e me fez saber que me amava. Então senti a doce paz. No entanto não podia eu dizer que tinha fé; mas ontem fez um ano que Deus me deu fé, e seu amor me têm transbordado o coração até agora. (Wesley, 1965, p. 88).

A preocupação de Wesley com a criminalidade talvez tenha razões de ordem biográfica, pois aos seis anos de idade, quase perdera sua vida em um incêndio em sua residência, ateado por delinqüentes. O fogo se alastrou pela casa da paróquia onde a família morava. A família conseguiu sair do local em chamas, mas o mesmo não se deu com Wesley que ficou preso, até que um homem conseguiu salvá-lo. Esse episódio teve suas influências sendo citado no diário pessoal com a expressão “arrancado das chamas”. Esse evento foi interpretado por Wesley como manifestação do sagrado em sua vida, a quem daí por diante deveria consagrar sua existência. Ora Wesley foi o 12º filho de 18 irmãos do reverendo Samuel Wesley, pároco em Epwort e de Twice Susanna Wesley. Nesse meio religioso, era comum ouvir frases como a do piedoso bispo de Lighton, “A Igreja já não é senão um esqueleto sem alma”, conforme observa Lelièvre (1988 p.26). A data de início de sua pregação religiosa é 1738 em Oxford, na qual afirma que a fé que salva não é só racional e, sobretudo uma atitude do coração. Wesley atribuía a sua modalidade de pregar fora dos templos e de modo espontâneo, como fatores que atraíam as pessoas e as atingiam no coração, de acordo com o que escreveu em seu diário datado de 18/06/ 1765:

À tarde cheguei a Cork (Irlanda); às sete horas fiquei admirado com o aumento da nossa congregação. Muitas vezes fiquei triste por causa de tão pequena congregação neste local; e não se podia esperar outra cousa, enquanto ficarmos, engaiolados na casa; mas agora soou a voz de rebate e o povo vem de todos o lado. Assim fica demonstrado que as pregações ao ar livre são os meios mais eficientes para desfazer o reino de Satanás. (Wesley, 1965, p. 30).

A modalidade espontânea das práticas religiosas, em contraste com as mais formais que ocorriam no interior do movimento Protestante, parece ter sido um ponto comum entre Zinzendorf e Wesley. No ano de 1738 deu-se à visita de Wesley a Herrnhut, a primeira comunidade que se pode dizer metodista-moraviana-anglicana. O relacionamento estreito entre o conde e metodista durou até 1742, quando os metodistas se separaram por pontos doutrinais e certas incompatibilidades entre eles. Após essa separação, Wesley seguiu pela Inglaterra, acentuando a perfeição da vida cristã, a evangelização popular, o poder da graça, o sacerdócio universal. Enfatizou o sentimento pessoal, incentivando os leigos a predicar e a realizar os sacramentos, o que pode ser observado de acordo com registro em seu diário de 01/06/1740:

Expliquei: resta um repouso para o povo de Deus de manhã em Kingswood-School, e à tarde em Rose-Green, a mais seis ou sete mil pessoas. Depois exortei a nossa Sociedade a orar sem cessar, para que não desanimasse nas suas mentes, ainda eu a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os admiradores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestiais. (Wesley, 1965, p.64).

Os leigos que se dedicavam ao modelo religioso de Wesley eram vistos como agentes comunitários, capaz de estimular a fé e de certo modo representantes das idéias divinas (especialmente atribuídas ao espírito divino) no mundo, assim como ele. O rápido crescimento do movimento metodista, possivelmente tenha sido um dos fatores que tornou os leigos responsáveis por anunciarem o evangelho e se responsabilizarem pelos trabalhos sociais, embora essa não fosse a intenção de Wesley, que visava à união canônica de seus pregadores à Igreja e fossem por ela ordenados. Nesse cenário, porém, a fé era vista como um elemento místico, que em muitos momentos aliviava os sofrimentos e as “crises religiosas”, e aflições que Wesley atravessava, o que foi escrito em seu diário de 05/01/1745:

Muitas vezes tinha admirado de mim mesmo (e muitas vezes dito a outros), que dez mil cuidados de diversas espécies sobre a minha mente não pesavam mais que dez mil cabelos na minha cabeça. Talvez eu tivesse atribuído isto a minha própria força; e ode ser que no domingo, dia 13 minha força foi retirada e senti o que era ser atribulado acerca de muita cousa; uma cousa ou outra me oprimia continuamente, tais cousas se me apegaram no espírito mais, até que eu não podia agüentá-las mais, tinha de fugir para poupar minha vida, e isto já e já (...) Na hora em que entrei em casa em Bristol, minha alma foi aliviada do seu fardo, um peso insuportável que me afligiria a mente por alguns dias. (Wesley, 1965, p. 56).

Enquanto a fé pode ser vista dentro de um sistema de pensamento que percorre as experiências subjetivas e íntimas, sendo um elemento místico de encontro com o sagrado que opera mudanças na percepção e na concepção de mundo, as manifestações do Espírito, ao ver de Wesley parecem mais relacionadas ao misticismo coletivo, compartilhado pelos fiéis em ocasiões como as festas e pregações, conforme registrado em seu diário datado de 18/02/1750 e 19/07/1961, respectivamente:

(...) Hoje, também, onde nós nos reunimos, Deus manifestou seu poder; mas particularmente em nossa festa de Amor. A simplicidade com que muitos falaram, declarando a maneira como Deus lhes tinha falado, inflamou o coração de outros; e a chama se espalhou mais e mais, e, tendo ficado quase uma hora mais do que o costume estávamos constrangidos por ter de separar-nos. (Wesley, 1965, p. 104).

(...) Apressei-me para voltar com o fim de assistir à Festa de Amor em Bristol. Foi a primeira que se realizou ali. Muitos ficaram surpreendidos quando lhes falei que o desígnio da Festa de Amor e é a convocação familiar, em que todas as pessoas homem ou mulher, tem liberdade de falar alguma cousa que seja pura a glória de Deus. Então, diversos falaram e não em vão, a chama passou de alma para alma; especialmente enquanto uma declarou com toda a simplicidade a maneira como Deus, durante a pregação

àquela manhã tinha libertado completamente sua alma. (A pregação fora sobre as palavras: quero, sê limpo) Mais dois falaram no mesmo teor, e ainda mais dois, que tinham alcançado a paz, falaram. Então louvamos a Deus, agradecidos pela suas obras maravilhosas. (Wesley, 1965, p. 104).

A relevância que Wesley atribuía a emoção religiosa especialmente nas pregações que visavam à conversão parece relacionar-se a sua compreensão de que havia uma espécie de anomia, enquanto processo de desordem social, na realidade que se inseriam os indivíduos aos quais se dirigia. Mendonça aponta que é importante atentar para a idéia Psicanalítica, de que a cultura é o resultado do abandono voluntário, mas sacrificial do princípio do prazer para o princípio da realidade, conforme descrito por Sigmund Freud em O mal

estar da Civilização (1974). A conversão pode significar uma necessidade de reorganização do mundo social,

concomitantemente ao mundo psicológico, implicando um conjunto de emoções. Nesse sentido, significando misticamente, morte, regeneração e ressurreição, isto é, um “novo homem”. Mesmo que a mudança social, não possa ocorrer com a rapidez e as características necessárias para o fiel, os elementos imaginários e emocionais vividos no tempo presente, abrem um horizonte de perspectivas, que alimenta a esperança. A memória do estado anterior à conversão, que pode incluir a sensação de “estar perdido” diante de uma ordem social marcada pela precariedade e ameaçadora à sobrevivência, altera-se pela identificação com um novo grupo e seus valores, promovendo a sensação de “estar salvo”. De acordo com Mendonça (1998, p.86), a fenomenologia da conversão resume-se assim “pecado (morte-social); conversão (ressurreição para a vida social) e regeneração (vida social nova)”.

Na perspectiva de Wesley, a conversão é o início do processo de santificação do fiel nas esferas do mundo exterior e interior. A caminhada do ser humano rumo à santificação é comparada a uma peregrinação, dirigida por um guia que é o Espírito Santo, que proporciona crescimento na graça. Conforme observou Reily (1992) na concepção metodista, o Espírito faz morada no coração e no cotidiano humano, removendo as culpas, criando disposições de luta social e religiosa, tendo como exemplo a imagem de Cristo. O processo de santificação na visão do pai do metodismo tem, portanto duas facetas: a vida interior do fiel e a vida exterior. A primeira é mais voltada à devoção e a segunda especialmente para as relações sociais, implicando a participação do fiel na comunidade, praticando atos de solidariedade (koinonia). Reily (1992) ainda pontua, que a biografia de Wesley, assim como suas orientações aos fiéis estão marcadas pela piedade espiritual e práticas religiosas comunitárias, que dão ênfase à “valorização social da religião”. Pode-se compreender a extensão do significado que Wesley dava a transformação das pessoas e da sociedade, no seu testamento, no qual ordena que seu corpo fosse sepultado atrás da Capela de City Road, carregado pelos seus colaboradores mais pobres, e não pelos mais conhecidos e destacados. Portanto, o misticismo para Wesley, quer se considere a relação fiel-espírito, ou fiel- comunidade-santificação, é uma faceta constitutiva de sua forma de ser protestante.