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Enfatiza Thompson (1990, p. 358) que "o estudo das formas simbólicas é fundamentalmente e inevitavelmente um problema de compreensão e interpretação." Segue comentando que a herança do positivismo do século XIX é forte na análise das formas simbólicas, tratando-as como "objetos naturais", passíveis de análise formal, estatística e objetiva, e que, embora estas análises sejam apropriadas elas se constituem num "enfoque parcial" ao estudo dos fenômenos sociais e das formas simbólicas. Lembra Thompson que para a tradição da hermenêutica, a constelação de problemas no caso da investigação social é significativamente diferente da investigação nas ciências naturais, pois, cita o autor, "o objeto de nossas investigações é, ele mesmo, um território pré-interpretado".

O termo que parece mais significativo para situar o núcleo da compreensão da hermenêutica é o campo-sujeito como o mundo sócio-histórico, e não o campo- objeto. Isso significa que interpretar uma forma simbólica quer dizer interpretar um objeto que pode ser ele mesmo uma interpretação, por já ter sido interpretado pelos sujeitos que constroem o campo-objeto, do qual a forma simbólica é parte. O que ocorre, então, é uma reinterpretação informada pelas pré-interpretações existentes entre os sujeitos que constroem o mundo sócio-histórico. Assim, a hermenêutica informa que "os sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto são, como os próprios analistas sociais, sujeitos capazes de compreender, de refletir e de agir fundamentados nessa compreensão e reflexão". (THOMPSON, (1990, p. 359)

Ressalta Thompson (1990, p. 360), que outro aspecto importante conservado pela hermenêutica é o reconhecimento de que "os sujeitos que constituem parte do mundo social estão sempre inseridos em tradições históricas" e que, desse modo, uma nova experiência humana é sempre assimilada aos resíduos do que passou, indicando que o que nós atribuímos como novo está relacionado ao que veio antes. Adverte ainda sobre um outro aspecto importante nesta mesma perspectiva: os

resíduos do passado podem servir também para obscurecer ou mascarar o presente. Cita o autor:

É para este aspecto que Marx estava chamando a atenção no livro O

18 de Brumário de Luiz Bonaparte, quando ele observou que em

tempos de rápida mudança social e de conflito os seres humanos se inclinam a 'conjurar os espíritos do passado' a fim de mascarar o presente e assegurar-se de sua continuidade com o passado. Além disso, como já mencionei antes, muitas das tradições com as quais nós estamos familiarizados hoje, são, na verdade, tradições

inventadas de data relativamente recente, mesmo que elas se

tenham estabelecido tão firmemente na imaginação coletiva que pareçam ser mais antigas do que realmente são. Por isso, enquanto a hermenêutica está certa ao enfatizar o fato de que os seres humanos estão sempre inseridos nas tradições históricas, é também importante reconhecer que os resíduos simbólicos que incluem as tradições, podem ter características e usos específicos que mereçam análise posterior. (THOMPSON, 1990, p. 361)

Ricouer (apud THOMPSON, 1990) mostrou que a hermenêutica pode oferecer tanto uma reflexão filosófica sobre o ser como uma reflexão metodológica sobre a natureza, o que passou a ser chamado por outros de "hermenêutica de profundidade", donde "explanação" e "interpretação" podem ser tratadas como momentos complementares dentro de uma teoria compreensiva interpretativa. Thompson desenvolve outro marco referencial metodológico, alegando que Ricouer abstrai muito rapidamente as condições sócio-históricas em que os textos ou as coisas análogas aos textos são produzidos e recebidos, pelo fato de colocar ênfase demasiada no que ele chama de "autonomia semântica do texto".

Thompson inicia a sua construção metodológica de "hermenêutica de profundidade" partindo do pressuposto de que o objeto das investigações é um campo pré- interpretado e que se deve levar em consideração como as formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto. Cita o autor que "a hermenêutica da vida quotidiana é um ponto de partida primordial e inevitável para o enfoque da hermenêutica de profundidade" (THOMPSOM, 1990, p. 363). Menciona o autor um estágio preliminar etnográfico indispensável ao enfoque, que é a elucidação de como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem no decurso da vida quotidiana.

Por meio de entrevistas e observações participantes, pode-se reconstruir como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas nos vários contextos da vida social. Esse é um processo que Thompson denominou de "interpretação da doxa", entendendo-o como interpretação das opiniões, crenças e compreensões que são sustentadas e partilhadas pelas pessoas que constituem o mundo social. Ressalta o autor, entretanto, que a interpretação da doxa é um ponto de partida indispensável da análise, mas que não é tudo, pois outros aspectos das formas simbólicas brotam da constituição do campo-objeto, uma vez que as formas simbólicas são construções significativas que são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e recebem, mas elas são também construções inseridas em condições sociais e históricas específicas.

Com o enfoque na hermenêutica da vida quotidiana, Thompson desenvolve a "hermenêutica de profundidade" como um referencial metodológico que compreende três fases ou procedimentos principais, podendo ser entendidas também como dimensões analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo, denominadas análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/reinterpretação. Outro aspecto de grande significado desse referencial metodológico é o seu emprego para fins de interpretação da ideologia, realçando a maneira como o significado serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. Ressalta o autor que o interesse pelos aspectos ideológicos das formas simbólicas nos dá uma dimensão crítica. "Interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar" (THOMPSON, 1990, p. 379). Ocorre, então, que a ideologia dá uma guinada distinta e crítica às várias fases da "hermenêutica de profundidade".

O quadro a seguir ilustra o referencial metodológico de Thompson, especificando cada uma das referidas fases:

Hermenêutica da Interpretação da

Vida Quotidiana Doxa

Situações espaço-temporais Análise Campos de Interação Sócio-histórica Instituições sociais Estrutura social

Meios técnicos de transmissão

Análise semiótica Referencial Análise de conversação Metodológico da Análise Formal Análise sintática Hermenêutica de ou Discursiva Análise narrativa Profundidade Análise argumentativa

Interpretação / Re-interpretação

FIGURA 2.1 – Formas de investigação hermenêutica Fonte: THOMPSON, 1990, p. 365.

Na primeira fase, descrita como análise sócio-histórica, objetiva-se reconstruir as condições e os contextos sócio-históricos de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, examinar as regras e convenções, as relações sociais, as instituições e a distribuição de poder, sendo que o exame mais adequado dessas condições deve variar de um estudo para outro, dependendo dos objetos e circunstâncias particulares da pesquisa.24 "Quando empregada na interpretação da ideologia, a análise sócio-histórica deve prestar atenção particular às relações de dominação que caracterizam as instituições sociais e o campo de interação". (THOMPSON, 1990, p. 378)

Nesta pesquisa, a primeira fase foi realizada por meio de levantamento de dados e informações que caracterizaram o "lugar da fala" dos gestores e dos usuários da

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Cada item referente às fases que aparecem na figura que demonstra o referencial metodológico de Thompson encontra-se minuciosamente detalhada em sua obra.

assistência social. Os itens que referenciaram a possibilidade de delinear os contextos sócio-históricos das formas simbólicas, das regras, das relações sociais, das instiuições e das distribuições de poder, no caso dos gestores da assistência social, foram: sexo, idade, escolaridade, formação universitária e cargo que ocupa no poder público municipal; no caso dos usuários da assistência social, foram: idade, sexo, tipo de ação da assistência social na qual está vinculado, origem da informação sobre o atendimento da política de assistência social e escolaridade. Não obstante o reconhecimento de que a situação analisada é muito mais complexa do que os itens referenciados podem apresentar, a escolha dos critérios para a coleta dos dados e das informações foi definida mediante a possibilidade da técnica e as circunstâncias objetivas dos processos de coleta.

A segunda fase, denominada formal ou discursiva, tal como na fase anterior pode ser conduzida de várias maneiras de acordo com o tipo da pesquisa. Esse tipo de análise não deve ser removido do conjunto do referencial metodológico da "hermenêutica de profundidade" e nem discutido isoladamente da análise sócio- histórica. Considerando que as formas simbólicas são produtos contextualizados cujo objetivo é dizer alguma coisa sobre algo, ela exige um tipo diferente de análise interessada na organização interna das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e relações. Nessa fase, a preocupação com a ideologia mostra já uma ligação com a fase seguinte, pois, "interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar." (THOMPSON, 1990, p. 379)

A realização da segunda fase da pesquisa se deu pelo que se pode compreender por análise de conteúdo, constituída da pré-análise e da exploração do material. Na pré-análise, foi construído um corpus de análise que permitiu a formulação de hipóteses em relação ao material qualitativo, originando dois subcorpus de análise, de caráter organizativo e quantitativo.

Mais do que um procedimento técnico, a expressão análise de conteúdo, sob a ótica de diferentes autores, é usada para representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa. Embora seja caudatária das metodologias quantitativas,25 realiza-se na interpretação do material de caráter qualitativo. Se, por um lado, reconhece-se a vertente positivista da análise de conteúdo nos adjetivos usados para a sua definição como "descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto nas comunicações" (BERELSON, 1952 apud MINAYO, 2004, p. 200) e na relevância do enfoque quantitativo, por outro lado, quando utilizada no tratamento de material qualitativo, tem destaque a dimensão própria das ciências humanas e sociais de observar e compreender a complexidade dos modos de comunicações dos indivíduos, grupos e sociedades humanas.

A terceira fase, denominada Interpretação/reinterpretação, é facilitada pela segunda fase, mas é distinta dela. Os métodos da análise discursiva são procedidos por meio da análise, dividindo e desconstruindo, desvelando os padrões e os efeitos que constituem e que operam de acordo com sua forma simbólica ou discursiva. Mas a síntese, como construção criativa de possíveis significados, é um complemento necessário à análise formal ou discursiva. Diz Thompson (1990, p. 375): "Por mais rigorosos e sistemáticos que os métodos de análise formal ou discursiva possam ser, eles não podem abolir a necessidade de uma construção criativa do significado, isto é, de uma explicação interpretativa do que está representado ou do que é dito". Conclui o autor que o processo de interpretação é simultaneamente um processo de reinterpretação.

Nesta pesquisa, a terceira fase da hermenêutica de profundidade de Thompson denominada interpretação/reinterpretação, coincidindo com a terceira fase da análise de conteúdo, conhecida como tratamento dos resultados e interpretação, realizou-se por meio da construção de significados para as falas dos usuários e dos

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A expressão "análise de conteúdo" tem raiz histórica nos Estados Unidos, na época da Primeira Guerra Mundial, no campo do jornalismo da Universidade de Colúmbia. Mais tarde, nas comunicações da Segunda Guerra, o seu locus passa a ser os Departamentos de Ciências Políticas das universidades americanas. O marco distintivo dessa época eram as análises estatísticas de valores, fins, normas, objetivos e símbolos. (MINAYO, 2004)

gestores da política de assistência social em relação às percepções sobre a pobreza e sobre a política de assistência social. Nessa fase, o desafio maior consistiu em problematizar, simultaneamente, a compreensão, a interpretação e a reinterpretação das diferentes percepções dos sujeitos da pesquisa.

Para a abordagem da cultura política dos usuários e gestores da política de assistência social com base em suas noções de pobreza e de suas percepções sobre a política de assistência social, o enfoque da "hermenêutica de profundidade" desenvolvido por Thompson fornece um referencial apropriado devido a vários aspectos. Em primeiro lugar, por se tratar de uma análise das formas simbólicas ao abordar os discursos e as práticas políticas. A pretensão de aproximar o conhecimento às perguntas que noções têm da pobreza? e de que modo legitimam a política de assistência social?, destaca um problema de compreensão, interpretação e reinterpretação. Não se pode perder de vista que o objeto da investigação é um território pré-interpretado. Os usuários e gestores são campos- sujeitos-objetos, uma vez que são analistas sociais capazes de compreender, refletir e agir. Desse modo, o trabalho do pesquisador é de natureza interpretativa e reinterpretativa, simultanamente.

Em segundo lugar, é fundamental a consideração de que os usuários e os gestores da política de assistência social são sujeitos que constituem parte do mundo social, portanto inseridos em tradições históricas. O aspecto sócio-histórico é essencial para compreender o que Thompson chama de "resíduos simbólicos" como condicionantes para a interpretação/reinterpretação das tendências de cidadania e de tutela que conformam o perfil da assistência social nos dias atuais. A abordagem da ideologia nessas interpretações acrescenta uma dimensão crítica, considerando as diferentes formas de dominação que podem tanto influenciar a reflexão das pessoas pela referência do passado, com imagens e idéias que escondem as noções de injustiça social, desviando-os da organização coletiva e da mudança social, como podem obscurecer importantes "resíduos simbólicos" e, de modo inverso, remeter a experiências de organização coletiva e de mudança social.

Compreender, por meio dos depoimentos dos usuários e dos gestores da política de assistência social, as diferentes noções de pobreza e os diferentes modos como se legitima a política de assistência social, implica, necessariamente, o esforço de uma análise sócio-histórica no sentido de que o que for interpretado como "novo" na institucionalidade da assistência social só pode ser compreendido na sua relação

com o que já passou. Essa abordagem histórica, crítica,

interpretativa/reinterpretativa deve integrar ao seu núcleo o reconhecimento do "devir" histórico, que é exatamente o elo que mantém a ligação da dialética gramsciana ao seu significado genuinamente hegeliano-marxista.

Outro aspecto que merece destaque sobre a contribuição da "hermenêutica de profundidade" de Thompson para o enfoque metodológico da pesquisa é o reconhecimento de que as práticas interpretativas e reinterpretativas ocorrem na vida cotidiana, no entrecruzamento de inúmeras singularidades condicionantes das diferentes formas de visão e de legitimação do mundo.