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A arte, como o produto mais valioso de transação dentro de um mercado de bens simbólicos, funcionando como um campo relativamente autônomo constituído desde o século XIX na Europa, não passa ao largo das disputas do sistema monetário 69. Os

museus de arte, justamente por serem, tal como as galerias, instituições legitimadoras da arte e dos artistas, constituem o ponto nodal onde se articulam o campo de produção simbólica e os interesses monetários. O empréstimo de uma obra ao museu, vinda de um colecionador privado, pode, na medida em que faz circular esse produto, valorizá-lo dentro do mercado simbólico. Quando uma exposição chega a um museu, isso implica além da valorização do artista em relação ao público, também a consagração do artista no panteão de seus pares, legitimando-o no circuito comercial de consumo dessa produção a qual ele, o artista, financia ao mesmo tempo em que é financiado.

Assim que Bourdieu analisa o campo de produção simbólica tanto sincronicamente do ponto de vista das disputas que envolvem o universo da produção e circulação dos produtos artísticos, quanto diacronicamente através das categorias de recepção dessas obras pelas disposições exteriorizadas pelo gosto. De modo mais simples, conformação do campo somente é possível pelo interesse econômico que se traduz em capital simbólico, reconhecido e legitimado socialmente, de modo que as disputas no campo são fundamentalmente por legitimação, como no caso das disputas travadas diretamente entre os artistas. Na contramão, a própria tentativa de criticar a ortodoxia estética na arte de vanguarda, acaba sendo engolfada pelas disputas do campo e instauram, como resultado mais bem acabado, outro tipo de ortodoxia estética.70

Consagrar é um trabalho que envolve uma equipe especializada de profissionais dentro do campo de produção simbólica em posições de competição pelo poder de legitimar. São as posições altamente especializadas e por isso, hierarquizadas, que

69 Como revela Raymonde Moulin acerca das disputas pela hierarquia de valores estéticos – e consequentemente monetários – através do inextricável elo entre o campo econômico e o campo da arte, cf. MOULIN, Raymonde. O mercado da arte. Mundialização e suas tecnologias. 2007.p. 17.

70 Nesse sentido, Bourdieu cita o exemplo do artista italiano Piero Manzoni e do valor das latas que compõem a obra “Merda de artista” com fezes do próprio Manzoni, BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. 2006, p. 30. Aliás, recentemente, a obra do mesmo artista foi leiloada em Londres no ano de 2007 pela galeria Sotheby’s por mais de um milhão de libras. Cf. Sotheby's bate recorde e consegue US$ 328 mi com artistas vivos. Folha de S. Paulo. Disponível em:

58 conferem a relativa autonomia do campo. Nas pesquisas de Bourdieu encontramos as posições fundamentais dos agentes responsáveis pela produção, reprodução e circulação dos bens simbólicos; São os críticos de arte, que por meio das contradições levam o artista a explicitar suas propostas no campo objetivamente fechado da produção erudita em relação às demandas do público, os jornalistas, que vão traduzir a proposta do artista junto ao grande público e tomando por vezes o lugar do próprio artista no que diz respeito à sistematização do significado da obra – e o artista propriamente dito – agente dominante, cuja posição se determina por sua posição relativa em relação aos outros produtores 71.

Ainda nas primeiras etnografias, o campo revelou como são acirradas essas disputas dentro das instituições, seja no MAM SP ou no MAC USP, a exemplo do que foi o diálogo inicial com as restauradoras, em que cada uma me revelou exatamente os limites específicos circunscritos àquela técnica precisa e especializada, quer dizer, respeitavam estritamente os limites de uma determinada área de atuação dentro do museu. O mesmo se repetia com as diferentes áreas em que cada profissional chamava o outro profissional de outra área para começar a explicar a respectiva função. Os limites de atuação de cada um estavam muito bem definidos e funcionavam em cadeia. Era uma imagem que remetia perfeitamente às cadeias de cooperação descritas por Howard Becker (2010), não em termos coletivistas, mas funcionais da divisão do trabalho que é realizado em conjunto e por pessoas com interesses muito diferentes em relação aos do artista e que executam tarefas variadas 72. Assim, por exemplo, tão logo a imprensa

chegou, o curador atendeu prontamente o jornalista de um grande veículo de comunicação, andando pelo espaço e explicando a proposta da exposição, o que, aliás, causou inquietação à equipe de produção e de montagem, que precisavam dele para continuar posicionando as obras.

A ida ao campo mostrou como factualmente o jogo de legitimação está totalmente centrado na posição que ocupa cada agente e de forma alguma há espaço para a quebra das hierarquias, porque cada um sabia exatamente até onde poderia ir, havia, inclusive, comentários paralelos da equipe de montagem, que às vezes reclamavam entre si de alguma determinação ou orientação dada e que pudesse fugir à função especifica para qual eram contratados. Por exemplo, quando alguém da equipe de produção pediu

71 Cf. nesse sentido: BOURDIEU, Pierre. Op. cit., 2011. esp. O mercado de bens simbólicos, pp. 99-181.

59 para fixar mapas do projeto de exposição na parede para orientar as atividades, eu pude ouvir um comentário paralelo: “- Ah! Que conversinha, colar papel na parede não é nosso trabalho!”. E, de fato não o executaram.

Na mesma perspectiva, a pesquisa de campo confirmou a literatura sociológica, de modo que durante minha pesquisa, não observei ninguém da equipe de transporte ou mesmo de montagem sugerir algo ao curador. Por outro lado, alguém da equipe de produção, que é a equipe que trabalha mais próxima ao curador, chegou a sugerir a posição de uma tela e tal sugestão foi aceita. Esse limite hierárquico determinado pelas especializações é bem menos fluido quando se tratam das posições dos agentes que, embora sejam necessários à montagem, não estão diretamente ligados ao curador e não constituem uma mão de obra especializada. A própria produtora do MAC USP que me atendeu se sentiu bem confortável quando me descreveu a função dos “fixadores”, como foram denominados, naquela hierarquia 73, e que foi bem diferente quando se tratou da equipe de conservação e restauro, trabalhadoras especializadas 74, porque para explicar o papel daquele setor, a produtora chamou uma representante da própria equipe, além de insistir mais de uma vez para que eu solicitasse uma entrevista com elas mais tarde.

3.2 A distância social reproduzida pelas posições