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Meu contado facilitado com a instituição, a maior liberdade em circular pelos espaços e interagir com as pessoas permitiu que agendasse novamente uma visita antes do término da montagem. Diferentemente do MAC USP, quando minha visita foi realizada em um momento final da exposição e os principais agentes já estavam no campo, no MAM SP a exposição estava ainda em início e eu pude conhecer as pessoas aos poucos. Nessa segunda visita, havia uma complexidade que era a do campo em pleno funcionamento: Além dos transportadores, equipe de restauro e produtor, estavam ali o curador, o arquiteto, o design, o jornalista, os montadores e as equipes de manutenção e higienização 62. Ou seja, o campo estava em pleno funcionamento e tudo acontecendo ao

mesmo tempo.

Com minha experiência prévia e com maior liberdade para transitar e interagir, aquela seria a oportunidade de perceber certas minúcias dos conflitos que me permitiram delinear melhor a posição dos agentes e selecionar quais posições seriam fundamentais para a pesquisa. A minha primeira sensação foi de deslocamento, porque na realidade eu estava fora do lugar, ou no lugar imprevisto naquele espaço. Eu não sabia ao certo nem onde ficar. O que eu via era muita gente trabalhando em um ritmo acelerado, várias obras dispostas no chão sobre uma proteção de plástico e as posições hierárquicas, tão visíveis à primeira visita, agora se tornavam mais difusas.63 Por acaso eu vestia uma camisa verde em um tom muito parecido com o uniforme da equipe contratada de uma empresa de montagem de obras de arte, o que me deixou talvez um pouco mais confortável, produto de um imaginário que me fazia pensar que eu não seria reconhecido imediatamente como alguém estranho naquele espaço onde que ninguém sabia ao certo o que eu fazia ali.

Comparado aos transportadores, eu percebi que esses profissionais da equipe de montagem tinham outra relação com as obras. Era uma relação muito mais delicada, eles observavam, comentavam, criticavam. Os comentários eram muito mais elaborados que os do pessoal do transporte. No primeiro dia da minha visita, os funcionários da

62 Que é como se referem às equipes encarregadas da limpeza nos espaços de exposição dentro dos museus.

63 Na primeira visita ao MAM SP tudo era muito nítido. O produtor acompanhava o trabalho das restauradoras, enquanto as restauradoras trabalhavam na higienização das obras e solicitavam à equipe de transporte que deslocassem as peças toda vez que era necessário.

45 transportadora conversavam sobre o quanto deveria valer cada obra, ao passo que os montadores, sobre as mesmas obras, comentavam aspectos muito mais próximos de uma leitura pela arte em si: “Essa é bem interessante! Claro que ele [o artista] trouxe essa ideia do Bronx pro Brasil”; e outro complementou dizendo: “É! Que maneiro sic essa

aqui!”. Em nenhum momento ouvi entre eles conversas que envolviam valores monetários.

Na presença dos montadores, a própria equipe de transportadores de certo modo saia de cena. Muitas vezes o pessoal do transporte estava sentado, enquanto o pessoal da montagem passava e fazia piadas do tipo: “Ah! Eu ainda vou ser do transporte, viu! Que vida boa!”, claro que isso era em tom de ironia 64.

Enquanto estava tentando me situar no espaço, a assistente da curadoria executiva simplesmente me disse: “O seu trabalho é só observar ou você pode ajudar?” Eu fiquei sem entender, mas o que fiz foi providenciar imediatamente um par de luvas emborrachadas para me mostrar disponível, e embora efetivamente não houvesse lugar para mim naquele conjunto de atividades, eu me aproximei da equipe de montagem e me coloquei à disposição para o que fosse preciso. A equipe era composta por quatro profissionais, e um deles se lembrou de mim quando da minha visita ao MAC USP. Ele me questionou se eu era da curadoria e então eu me revelei como um estudante tentando entender como se monta uma exposição. Ele questionou se minha área era museologia e eu afirmei que era sociologia e ao mesmo tempo reafirmei minha disposição para ajudar em algo que fosse possível, quando me pediu ajuda para carregar uma obra, detalhou exatamente qual seria a posição correta de segurar e lá fomos nós. Mas foi só isso, no limite, todos estavam ansiosos com o trabalho atrasado, porque tudo relativo à exposição dependia do curador e o mesmo ainda estava pensando em qual posição ficaria cada obra, de forma que ninguém poderia fazer nada antes da sua chancela.

Dei outra volta pelo local e acompanhei mais de perto o trabalho do curador para entender exatamente a posição dele ali. Constatei, aliás, que tudo de alguma forma se relacionava à presença dele, pois todos os outros profissionais precisavam do seu aval para todas as coisas e porque a exposição é pensada por ele, os conceitos são trabalhados por ele, as posições e lugares das obras são todas arquitetadas por ele. Naquele dia, com o curador presente, ele era a posição dominante na hierarquia porque o artista já havia falecido.

64 Essa relação de oposição aos montadores vai reaparecer nas entrelinhas das entrevistas com os montadores.

46 Não tive a oportunidade de interagir com todos esses profissionais, pude acompanhar mais o curador, os produtores e a equipe de montagem. O curador observava peça por peça, perguntava sobre as condições de conservação e as agrupava, ora de acordo com o conceito e ora de acordo com o material utilizado, nos locais onde deveriam ser expostas. Ele indicava para a equipe de montagem onde deveriam ser posicionadas as obras, em qual parede, para que posteriormente eles a subissem.

Um terceiro funcionário da equipe de montagem, que ainda não havia conversado comigo, de repente me deu a mão e se apresentou. Queria saber se eu era parte da equipe de curadoria. Eu novamente me coloquei na posição do aluno que quer entender o funcionamento das exposições e então ele, como eu esperava, espontaneamente começou a explicar a sua função: disse que os montadores cuidavam da fixação das obras e me explicava com muito detalhe como fixar uma tela na parede usando laser para fazer as medições exatas. Eu perguntei como era o caminho para quem quisesse trabalhar naquela empresa (a ideia era entender qual era o grau de especialização exigido), e ele, naturalmente, passou a valorizar muito sua posição, na medida em que afirmava ser muito difícil, que exigia cursos de história da arte, que era preciso saber usar com precisão algumas ferramentas e que ele, especificamente, estava lá porque ele era da família do dono da empresa 65.

Naquele dia, pude ainda ver o profissional de design pensando em qual parede as informações introdutórias da exposição poderiam estar. Ele inclusive pedia a sugestão do profissional da plotagem, que era o responsável pela execução, o que fixava as letras.

O arquiteto, que era um profissional contratado, também circulava pela montagem, ora ou outra conversando com o curador e acompanhando as atividades de pintura, colagem de papel de parede, iluminação e afins. Vigilantes circulavam ao redor onde a exposição estava sendo montada, espaço que era isolado por faixas de contenção. Ao final da tarde, um dos produtores tentava adiantar os trabalhos com o curador,

65 Mais tarde, na hora do almoço, conversando com os produtores, pude entender exatamente esse regime de contratação. Segundo os produtores, eles, os montadores, não tinham formação em história da arte e sequer era uma exigência. Tratava-se de um grupo composto por profissionais autônomos e de alguma forma relacionados com a arte. Eles prestavam serviço como autônomos para aquela empresa conforme a demanda de trabalho. Isso foi confirmado logo após o almoço, quando ouvi os próprios profissionais da montagem comentarem a respeito de um curso oferecido em determinado ateliê em São Paulo, pelo artista plástico Paulo Pasta, onde os alunos podiam aprender como usar algumas ferramentas de montagem e que esses alunos venciam os orçamentos no museu pelos preços mais baixos, já que utilizam uma mão de obra gratuita que eram os próprios alunos do curso que faziam uma espécie de estágio. Encontrei de fato um folder sobre um ateliê que oferecia cursos de montagem para todos os interessados em participar do mundo da arte de alguma forma, a redação do folder sugeria que se tratava de uma tarefa muito nobre dentro do museu.

47 definindo espaços, porque já passava das 15h00 e quase nada ainda havia sido decidido. Isso criou uma cumplicidade entre ele o pessoal da montagem, que comentava na coxia, por assim dizer: “Tá difícil assim!” – Referiam-se à demora do curador em definir a exposição.