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Um dos principais desafios dessa pesquisa foi de fato o acesso às instituições. A demanda de tempo entre o recorte e a permissão de acesso foi maior que o esperado. Cada instituição requeria um modelo de carta 38 e uma abordagem diferente. A princípio

foram feitas visitas esporádicas de natureza exploratória no campo e era a primeira vez que eu visitava os museus com um propósito claro de pesquisa. Meu olhar era mais voltado aos detalhes, às conversas que ouvia ao telefone ou outros indicativos que poderiam me sugerir pistas de por onde começar 39. Muitas vezes eu ouvi algumas discussões de natureza familiar ou vigilantes resolvendo problemas de ordem prática da vida como contas pessoais a pagar, sendo que ao perceber que as conversas eram

38 Modelo de carta enviado ao MAM SP e ao MAC USP em anexo.

39 O debate metodológico, simultâneo ao campo, me parecia em muitos aspectos pouco ligado àquela realidade que eu pretendia investigar. O próprio problema da pesquisa não apontava referências imediatas, seja no debate nacional ou internacional. A sensação de não saber exatamente por onde começar me levou a estabelecer contato com outros professores tanto das Ciências Sociais quanto de outras áreas no Brasil e no exterior. Nenhum deles, seja o Prof.º Jorge Coli da História da Arte da Unicamp que trabalhou com a série Obra Revelada ou mesmo a Prof.ª Vera Zolberg da The New School for Social Research de Nova Iorque, que trabalhou a questão do acesso ao museu tinham referências sobre trabalhos próximos ao meu tema. Em que se assemelha à proposta, e não ao ambiente, tive contato com uma pesquisa do Prof.º Michel Agier, que atualmente está no Centre d’Études Africaines (CEAf) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) que nas décadas de 70 e 80, estudou a trajetória de vida e a mobilidade social no Estado da Bahia, no Brasil. Embora não tenha conseguido contato com o pesquisador, a referência: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo; AGIER, Michel; CASTRO, Nadya Araujo. Imagens e identidades do trabalho. 1995 foi um interessante ponto de partida, sobretudo para problematizar o questionário e o guia das entrevistas (que segue anexo). Por fim, as questões colocadas pelo Prof.º Howard Becker, do Departamento de Sociologia da Northwestern University, em Illinois, EUA, ao tomar contato com minha pesquisa, foi metodologicamente fundamental para esses primeiros passos no museu, no sentido de que me encorajou a criar estratégias próprias de aproximação junto ao museu e aos meus interlocutores.

35 pessoais, por uma questão ética, eu me afastava para evitar ouvir a conversa alheia sem autorização, embora elas pudessem trazer caminhos para abordar os agentes que me interessavam dentro dos museus. Algumas vezes transcrevi em meu caderno de campo 40

constatações e ideias no sentido de trabalhar a abordagem. O receio era sempre de saber por onde começar, de que modo criar alguma cumplicidade com meus interlocutores, tendo em vista não apenas minimizar respostas prontas, como também no sentido de ter instrumental para apreender certas minúcias que poderiam ser ricas para a pesquisa.

Uma estratégia foi pedir aos vigilantes informações sobre lugares para almoçar nas imediações do Parque do Ibirapuera e almoçar algumas vezes nesses lugares. Foi nessa experiência do almoço, que uma dificuldade se interpôs à minha pesquisa e que a princípio me pareceu maior que aquela de conseguir as autorizações para a entrevista. Era uma questão ligada à posição de classe. Filho de uma classe média urbana paulistana, eu criei, a partir de uma posição de dentro da universidade, uma fantasia populista de identificação imediata com as classes populares. O campo, no entanto, foi preciso em delinear objetivamente as posições de classe, cuja interferência mostrou ser um dado extremamente relevante. Um choque inicial foi ligado ao um prato comum na culinária popular chamado Virado à Paulista. Um dos meus interlocutores, certa vez, sugeriu esse prato de almoço e eu não fazia ideia do que se tratava. Minha ignorância acabou por reforçar a distância social entre nós e que antes me parecia ingenuamente tão pequena. Almoçando algumas vezes no restaurante indicado por um dos vigilantes terceirizados do MAC USP, percebi que ele era frequentado por vigilantes, motoristas e até caminhoneiros naquela região. O tal prato, parte da minha ignorância, não só era bastante comum, mas também fazia parte de um cardápio fixo regrado pelos dias da semana: segunda-feira era o Virado à Paulista, prato que consiste em uma mistura de arroz com feijão tropeiro, couve, bananas da terra fritas e bisteca de porco, terças-feiras era Picadinho, quartas-feiras Feijoada, quintas-feiras Macarrão com Frango e finalmente sextas-feiras Filé de Peixe frito 41. Fato é que essa distância simbólica e de classe muito

40 Muitas notas não constam no trabalho, pois meu caderno de campo foi roubado junto com uma bolsa em um assalto, embora eventualmente eu recorra a uma ou outra nota posterior a esse evento.

41 A composição dos pratos, sendo o feijão e o arroz como base, são compostos por cortes de carne gordurosos e frituras, o que o discurso médico convencionou e descartar do chamado estilo de vida saudável, tão difundido pela publicidade que alimenta a busca incessante pelos corpos perfeitos e que funciona tão bem como marcador de posição social, sobretudo das classes dominantes, as que se impõem a “autocensura” no consumo alimentar (Cf. PULICI, Carolina. Migração de classe e vergonha cultural. Trajetórias ascendentes entre a crítica e o reconhecimento das hierarquias simbólicas. 2013, p. 21) é a oposição em relação às classes populares, pois, como observa Bourdieu, quanto mais decresce a hierarquia

36 dificultou a aproximação com meus interlocutores, e embora ela fosse um dado, precisei utilizar alguns artifícios na tentativa de quebrar certo respeito e distanciamento colocados nas interações 42.

Um material bastante rico para a pesquisa seria confrontar elementos de uma observação participante, colhidos em falas e posições tomadas espontaneamente, com entrevistas formais, no entanto esse material não pôde ser produzido, pois a exploração inicial do campo mostrou que os vigilantes, sobretudo os terceirizados, têm muito receio em falar ou expressar opiniões quando questionados, mesmo que seja uma opinião sobre alguma obra, aliás, ao tentar abordar vigilantes no MAM SP ou no MAC USP, muitas perguntas eram devolvidas com questionamentos, queriam saber o porquê da minha dúvida, de onde eu era e o que pretendia. Quando eu falava que era uma pesquisa de mestrado, eles se calavam e diziam que qualquer informação só poderia ser dada mediante a aprovação formal da “chefia” 43.

Retomando as questões burocráticas, as autorizações que tanto precisava se perdiam muitas vezes dentro da própria instituição, e saliento que não era fácil justificar um problema de pesquisa que me impunha uma entrada literalmente pela porta dos fundos das instituições, pois me interessavam os bastidores do museu e certos grupos de trabalhadores ali presentes. Isso implicava para quem nunca trabalhou em museus, como no meu caso, a criação de certas estratégias etnográficas que permitissem além do meu acesso pela porta de trás – que não permite contato com o público –, como também lidar com tensões específicas que iam se revelando por meio do trabalho de campo e às quais o pesquisador está, via de regra, imerso.

social, inversamente, se aumenta o consumo de alimentos gordurosos, associadas ao gosto “popular”. (cf. BOURDIEU, Pierre. op. cit. 2012, pp. 97-98.)

42 Agradeço aqui minha amiga Katucha Bento, antropóloga e doutoranda da Universidade de Leeds, Inglaterra, que quando esteve no Brasil, se dispôs a visitar o campo comigo e me deu importantes sugestões para facilitar essa interação.

43 No Brasil, foi mais fácil entrevistar a própria chefia, que o pessoal das empresas terceirizadas. Interessante notar que – e isso seria um dado interessante a ser investigado – em caráter também exploratório e comparativo, tentei realizar o mesmo tipo de interação em dois diferentes museus de arte moderna na cidade de Paris, o Centre Georges Pompidou, bastante turístico, localizado em frente à famosa Praça Igor Stravinsky, e o Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, gratuito para visita do seu próprio acervo, próximo ao Palais Tokyo, na Avenue du Président Wilson. Em ambos, os funcionários da vigilância, tanto temporários (estudantes de graduação, imigrantes e pessoas com o Baccalauréat completo – equivalente ao Ensino Médio) quanto os de uma guarda especializada contratada diretamente pelo serviço público (Funcionários de carreira contratados pela Mairie) – (entrevistas realizadas em fevereiro de 2014) – me forneceram opiniões e informações sem o menor problema. Dos quatro entrevistados, todos falaram, inclusive, sobre seus artistas prediletos, o processo de contratação pelo museu e me deixaram gravar sem autorização prévia da instituição.

37 Meu contato inicial com o MAM SP e o MAC USP foi na tentativa de acompanhar a montagem ou a desmontagem das exposições, de modo que fosse possível observar a dinâmica do campo e localizar a posição dos agentes que me interessavam dentro de uma dada hierarquia profissional. No que respeita à objetivação etnográfica essas visitas aos bastidores foram fundamentais para que eu pudesse me familiarizar com um museu diferente daquele que eu estava acostumado na posição de público visitante, além de ter, obviamente, o contexto que daria base às falas dos interlocutores 44.

Beneficiaram-se muito desse contato, a formulação e sobretudo a direção que dei às entrevistas a partir dessa experiência prévia do campo, o que Sardan (2008) coloca em termos de uma “impregnação” que possibilite ao pesquisador formular estratégias de entrevista e interação 45. A impregnação do campo, que deve ser sistemática e exaustiva, encontrou também seus entraves na agenda dos museus. As montagens e desmontagens são em geral três ou quatro ao longo do ano e conseguir visitá-las é um processo que no meu caso foi de insistência, troca de e-mails, telefones e envio de documentos praticamente sem fim. A bem dizer, a impressão que eu tinha era que os próprios museus não sabiam como dar sequência ao meu pedido, isto é, para onde deveria ser encaminhado o pedido de um estranho, que se apresentava como mestrando em Ciências Sociais e que não queria falar sobre o tema da exposição e sim sobre o processo do fazer da exposição. Tal dificuldade foi em partes e gradativamente suplantada quanto maior a minha impregnação do campo, quando eu me dei conta de que as hierarquias são tão bem delimitadas que era muito mais eficaz direcionar meu pedido direto aos setores responsáveis das áreas que me interessavam, que imediatamente à direção do museu, como eu havia desde o início e sem obter respostas.

Depois de quase dois meses reenviando e-mails e cartas assinadas pela minha orientadora, obtive a licença para acompanhar a montagem de uma exposição no MAC USP. Aquela visita, ou melhor, aquele meu primeiro contato com o campo deu a dimensão do estranhamento que meu pedido e insistência certamente teriam causado à então curadoria da instituição 46. Posso descrever aquilo com a imagem de um canteiro

44 A objetivação etnográfica implica não apenas estar próximo ao informante, mas basear suas falas a partir do conhecimento prático e teórico sobre as condições sociais de existência que as produzem. Cf. Nesse sentido, WACQUANT, Loïc. Op.cit., 2006 .

45 SARDAN, Jean-Pierre Olivier de. La rigueur du qualitatif: les contraentes empiriques de l’interprétation sócio-anthropologique. 2008. p. 53.

38 de obras: poeira, telas no chão, furadeiras, parafusos, escadas, enfim, não era certamente o ambiente que costuma interessar no âmbito das pesquisas ou mesmo do público em geral.

2.1 O MAC USP Pela porta dos fundos: onde “tudo é menos