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O MAM SP pela porta do s fundos: conhecer alguém “de dentro” muda tudo

52 Na verdade, o que consegui obter foi o organograma do museu junto à administração do MAC-USP, citando que se tratava de uma indicação da própria produtora que me atendeu. O fluxograma não foi permitido. Também não consegui organizar uma agende entrevistas no modo como proposto. Eu só consegui entrevistas mais tarde, encaminhando o pedido diretamente ao setor administrativo.

41 Meu acesso ao MAM SP foi facilitado pela coincidência de haver um colega de orientação no programa de mestrado que revelou ser ex-funcionário daquela instituição, e que ao tomar contato com meu projeto se dispôs a gentilmente mediar minha relação com o MAM SP. Essa intermediação mudou tudo, porque embora o processo de contato tenha sido parecido com o MAC USP com relação às cartas e aos trâmites para obter autorização, no caso do MAM SP foi muito mais acelerado e a recepção que tive foi mais informal, o que facilitou minha volta ao campo em dias alternados.

Tão logo o MAM SP aceitou minha presença na montagem de uma grande exposição, pude iniciar o trabalho com um acesso quase livre na portaria, bastava dizer que eu participava da exposição, como me fora recomendado pela equipe de produção e colocar um bottom de visitante na roupa.

Meu primeiro contato foi com um funcionário da equipe de produção. Eu me identificava como um mestrando e declarava que gostaria de entender melhor o processo

de montagem de uma exposição e tudo o mais que pudessem me mostrar 53. No espaço

onde seria inaugurada a exposição, se encontravam, além do produtor, duas funcionárias da área de Conservação e Restauro – que eram contratadas como prestadoras de serviço – e dois funcionários da transportadora contratada 54, que é especializada no transporte

de obras de arte. O produtor me explicou que elas estavam “higienizando” as obras para a exposição, porque elas haviam chegado bastante empoeiradas e que era muito trabalho, que elas haviam chegado de muitos colecionadores particulares e que até o final da semana chegaria mais e esse processo era chamado “coleta”. Ao me apresentar primeiro à equipe de restauro, novamente composta por mulheres, uma das restauradoras começou a conversar espontaneamente comigo, ao mesmo tempo em que trabalhava no processo chamado higienização, que consiste em limpar, por assim dizer, as obras. Segundo ela, o trabalho daquela equipe era fundamental em qualquer exposição 55. Afirmou ainda que ela já trabalhava fazia 15 anos na área e que no percurso já havia se graduado em química para entender melhor sobre materiais e reagentes químicos. Perguntou se eu era

53 Aos poucos percebi que essa posição de “aluno” era mesmo a mais confortável e a que renderia melhores dados, porque o aluno é sempre quem está aberto para aprender. Ser aluno me garantia alguma mobilidade naquele ambiente altamente hierarquizado.

54 A empresa mais nova no mercado e que eu visitaria tempos mais tarde.

42 graduando ou era aluno de especialização, quando respondi que fazia mestrado senti que ali estava posta e declarada toda a violência simbólica 56.

Pensar o termo mestrado no contexto dos meus interlocutores, que são os vigilantes e transportadores de obras de arte, dá um tom de especialização que é oposta à não especialização daqueles funcionários, ou, a bem dizer, uma espécie “especialização” que muitas vezes é medida pelo tempo de experiência, como será discutido mais adiante

57.

Evidente que esse não era o caso da restauradora e de nenhum profissional de Museologia, mas dizer que faz alguma especialização, dentro de um ambiente altamente especializado, coloca o interlocutor em uma posição duplamente dominante em relação a alguns profissionais, pois não é somente a posição do pesquisador, mas também a do especialista que está em questão. Declarar-se estudante não ocultava essa dominação, mas mestrando, a depender do agente e de alguns ressentimentos, poderia ampliar a violência.

A restauradora então completou dizendo que queria muito fazer mestrado, e que isso era “fundamental” na “nossa área”, mas que seu filho era pequeno. O tempo todo ela reafirmava suas especializações e citava fartamente as “instituições importantes” pelas quais já havia passado – frisava muito a FAAP 58 – além de ter sido aluna de um

“importantíssimo restaurador argentino”, por mim desconhecido, chamado Domingo

56 Ora, como coloca Bourdieu, se a construção do mundo social se faz tanto pelas verdades objetivas (dada pelas estruturas) quanto subjetivas (do ponto de vista dos agentes que incorporam e reproduzem certas estruturas), logo a presença do pesquisador no campo pressupõe interação e romantizar essa presença como se tudo fosse simplesmente uma questão de apreender um novo mundo, isso seria ignorar a assimetria posta entre aquele que ocupa a posição de pesquisador (dominante) e outro (dominado). Se o pesquisador é quem coloca as regras do jogo, ocultar essa relação significa contribuir com o processo de dominação. Cf. BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 1997, pp.694-695.

57 A pesquisadora italiana, Cecilia Braschi, autora da pesquisa sobre o artista plástico suíço Alberto Giacometti, que trabalhou em 2012 na exposição de Alberto Giacometti na Pinacoteca de São Paulo, me concedeu uma entrevista informal em Paris, onde comentou sobre sua experiência com as equipes de transporte no Brasil. Afirmou que a equipe possuía na ocasião, o que havia de melhor em termos de logística na área, e que de fato a falta de especialização com o transporte foi em muitos momentos um problema. A pesquisadora fez um paralelo com a realidade inglesa, e declarou que todos os transportadores, em uma determinada exposição que trabalhou naquele país, eram altamente especializados, mesmo o motorista do caminhão, possui sólidos conhecimentos em história da arte. Da parte dos meus interlocutores, o tempo de experiência na área é contado como especialização. A ideia de que a prática é o elemento formador. No mesmo sentido, os vigilantes, que também não passam por nenhuma formação específica para área de museu, adotam o tempo de experiência prática como valorização profissional. A equipe de imprensa do MAC USP havia declarado em 2012, que a instituição desenhava um curso específico para formação de vigilantes na área. O curso, entretanto, ainda não está disponível.

58 Fundação Armando Álvares Penteado, instituição universitária e cultural de São Paulo fundada em 1947 no bairro de Higienópolis, congrega o Museu de Arte Brasileira (MAB) e o Teatro da FAAP.

43 Tellechea 59. Quando ela citou esse nome, a outra restauradora, que até então havia se

mantido à parte na conversa exclamou: “Que saudade do Tellechea!”. Eu afirmei meu desconhecimento sobre quem se tratava, perguntei como era a grafia do nome. A restauradora conversava muito comigo enquanto trabalhava, explicava que os próprios colecionadores não tinham a menor noção do que era restauro 60.

O produtor que havia me atendido no começo precisou se ausentar e a restauradora aproveitou o ensejo da quebra em nossa conversa para me colocar uma pergunta fundamental, de qual instituição eu vinha, se era do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quando eu disse que eu não fazia museologia – que é uma área dominante entre os especialistas em restauração, que podem vir de outras áreas e fazer um curso técnico em restauro –, minha interlocutora assumiu outra postura. Ela não me perguntou qual minha formação, ela retomou sua posição de especialista em uma área que não era a minha e disse: “agora eu entendo porque você está aqui; Tudo lhe parece bem complexo e de fato é”. Ela passou a me explicar mais detalhadamente o processo de higienizar as obras e protegê-las do pó com uma minúcia que sou incapaz de descrever. Era como se ela tivesse a partir dali assumido a missão de me ajudar a compreender a complexidade toda da área de restauro e conservação.

O produtor acabava de voltar e me atualizava sobre os detalhes técnicos da exposição. Ele me explicou que o fundamental em uma exposição é a organização 61,

mas que aquela exposição em especial havia dado muito trabalho e que as coisas estavam “bem corridas” em função dos prazos. Explicou que a função da produção é viabilizar a exposição conforme o desejo do curador, no caso de um artista já falecido, como era o caso daquela exposição, e que cabia à equipe de produção fazer a coleta, tratar com os colecionadores e trabalhar direto com a curadoria.

59 Restaurador argentino laureado com diversos prêmios e condecorações na área de restauro. Trabalhou na restauração de patrimônios históricos no Brasil e foi fundador do prêmio Centro de Restauradores da América do Sul. Docente na Universidade de Buenos Aires, Tellechea fundou no Brasil o Instituto Paulista de Restauro. Na década de 80, foi membro do International Council of Museums (ICOM).

60 O tempo todo, a restauradora ressaltava aspectos que valorizassem sua carreia, ainda que não tivesse entrado no mestrado: falou de clientes que queriam colocar uma tela em cima da lareira, e ignorava, apesar das advertências dela, que a tinta derreteria. Falava também do “absurdo” de pessoas que queriam levar a tela “que é uma obra da humanidade” pra recortar de forma a caber no mausoléu da família, e o quanto o Prof.º Tellechea recriminava isso, mas que muitos ateliês por aí cometiam esse “crime”. Falava também sobre a ação do mofo nos objetos e a forma de lidar com esse problema. Ensinou-me como cultivar mofo em uma garrafa de vidro para observar seu enraizamento, explicou que a maior dificuldade do restaurador era como lidar com o mofo, já que uma vez enraizado ele nunca mais sairia daquela superfície. Enfim, era latente a preocupação em demonstrar certos domínios técnicos sobre o assunto, o que parecia denunciar toda contradição entre dominante e dominado naquele contexto.

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