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A História do Sexo e do Direito no Brasil

2.2. A História do Sexo e sua interação como Direito

2.2.7. A História do Sexo e do Direito no Brasil

O Brasil foi descoberto em 1500, tendo sido colonizado pelos portugueses, que trouxeram para a colônia seu sistema legal, de forma que desde o início da colonização o Brasil adotou os padrões de moralidade sexual previstos no Paradigma Judaico-Cristão, inicialmente por meio das Ordenações Manuelinas (1521-1602) e, posteriormente, pelas

Ordenações Filipinas (1603-1824). Assim, eram previstas, dentre inúmeras outras disposições, a proibição do casamento com infiéis,443 do incesto,444 e do adultério.445

Em verdade, a imposição da ideologia católica (por meio do ordenamento jurídico), como forma de expandir a fé e o Império, não se restringia apenas às questões de ordem sexual, permeando toda a vida dos indivíduos, que, por exemplo, estavam expressamente proibidos de benzer cães ou gatos sem a autorização do rei ou dos prelados.446

Entretanto, as condições da vida na colônia, por evidente, não refletiam aquelas existentes na Europa, mormente vez que aqui se verificou, desde muito cedo, a interação sexual de brancos, índios e negros, cada um com uma bagagem cultural própria, o que tornou a sexualidade do povo brasileiro bastante singular, em especial no tocante à proliferação da miscigenação, como bem explica RUBIN: “o sexo livre dos índios e a serventia das negras misturados ao desejo de povoar dos portugueses moldaram a sexualidade nacional e estão na raiz da nossa miscigenação”.447

Em verdade, como logo ficou claro que era impossível aplicação dos estritos códigos morais à vida na colônia, o que foi resolvido pelo já popular costume de “dar um jeitinho”, o qual se refletiu nas mais diversas circunstâncias da vida erótica brasileira.448

443“Qualquer Christão, que tiver ajuntamento carnal com uma Moura, ou com qualquer outra Infel, ou Christã

com Mouro, ou Judeu, ou com qualquer outro Infiel, morra por isso e esta mesma pena haverá o Infiel.” (Ordenações Filipinas, Livro V, Título XIV).

444

“Qualquer homem que dormir com sua filha, ou qualquer outra descendente, ou sua mãe ou qualquer outra ascendente, sejam queimados, e ella também, ambos feitos per fogo em pó” (Ordenações Filipinas, Livro V, Título XVII).

445

“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero, salvo se o marido for peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa de maior qualidade (...)” (Ordenações Filipinas, Livro V, Título XXXVIII). É interessante notar que se o marido traído fosse um homem do povo e, o adúltero, um desembargador, ou pessoa de maior “qualidade”, não poderia ele matá-lo, numa espécie de regime jurídico especial para os adultérios cometidos por “autoridades”. Às vezes, temos a impressão que o país ainda não mudou tanto assim...

446

“Defendemos, que pessoa alguma não benza cães, ou bichos, nem outras alimárias, nem use disso, sem primeiro haver nossa auctoridade, ou dos Prelados, para o poder fazer. E o que o contrário fizer, seja publicamente açoutado, se for peão e pague mil réis para quem o accusar (...)” (Ordenações Filipinas, Livro V, Título IV).

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RUBIN, Débora. A origem da vida sexual dos brasileiros. Revista ISTOÉ, Edição 2.125 (30.10.2010). Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/91900. Acesso em 20.10.2011.

448

Mas quais seriam as condições existentes neste novo território e que tanto influenciaram a sexualidade do nosso povo?

A enorme distância entre a colônia e a metrópole tornava o controle estatal da sexualidade inviável, o que era exacerbado pela ausência de uma sociedade estruturada, que pudesse agir como “freio” ao livre exercício dos instintos sexuais. Sem habitações adequadas e vivendo em grupos, o sexo na colônia era quase “público” e a falta de privacidade uma constante. Ademais, a relativa ausência de mulheres numa sociedade composta predominantemente por aventureiros, mercadores e criminosos degredados (inclusive por crimes sexuais),449 facilitava a existência de relações instáveis e precárias. Os casamentos eram raros (já que não poderia haver casamento entre brancos e índias ou negras) havendo uma pluralidade de uniões de fato (inclusive, não era raro que até membros da Igreja vivessem amancebados).

A sexualidade sem culpa dos nativos, desprovidos de conceitos negativos no tocante ao corpo e à vida sexual e, logo depois, a forçada submissão das negras, deram azo ao exercício de uma sexualidade livre e muitas vezes baseada na força.

Diante dessas especificidades, mesmo a Santa Inquisição, que visitou o Brasil (iniciando pela Bahia, em 1591), ainda que se deparando com um cenário de promiscuidade, lascívia e depravação “(...) foi obrigada a se abrandar em solo brasileiro. A amplidão territorial da colônia e a instabilidade social constantemente ameaçada por perigos naturais diminuíam a pressão social e impunham um ambiente de maior tolerância.450

449

Assim, os primeiros colonizadores portugueses atirados na América eram, geralmente, assassinos, ladrões, judeus foragidos e gente considerada devassa e desviante, por cometer libertinagem, sodomia, bestialidade, proxenetismo e “molíci” – termo que se referia tanto aos “tocamentos” lascivos quanto à polução fora do “vaso natural” feminino, utilizando ou não as mãos”. Como resultado, o Brasil tornou-se compulsoriamente um foco de liberalidade e promiscuidade no Reino, atraindo aventureiros e traficantes interessados tanto na riqueza fácil quanto nas índias nuas e outras delícias tropicais” (Cf. TREVISAN, João Silvério, op. cit., p. 112).

450

Tal estado de coisas viria a ter por emblema a célebre frase de Caspar Barlaeus,

ultra aequinotialem non peccavi (“não existe pecado abaixo do equador”), celebrada em

música, verso e prosa.451

Esse quadro curioso e singular, de uma moralidade institucionalizada extremamente repressiva, sobreposta a uma realidade social bastante libertina, ajudou a formatar a moral sexual vigente até hoje no Brasil na qual, como magistralmente definiu RUBIN, culpa cristã e prazer se esbarram o tempo todo.452

Esta duplicidade moral, por sua vez, sempre foi especialmente aplicada aos homens, que dentro de uma sociedade fundamentalmente machista, continuavam livremente a praticar o sexo com escravas e prostitutas, mesmo em tempos posteriores, quando o casamento passou a ser mais comum na colônia, situação esta que ainda continua pervasiva em nossa cultura.

Vez que o Brasil é um país inserido dentro da tradição do direito europeu continental, seguindo o exemplo instituído pelo Código de Napoleão, já em 1830, no Código Criminal do Império, desaparece o crime de sodomia, estabelecendo-se a idéia de que os atos sexuais consentidos entre maiores não devem ser objeto de criminalização desnecessária por parte do Estado, num claro exemplo de secularização da legislação penal.453

Durante o século XIX, após a independéncia, a fé católica foi adotada como religião oficial do Império. Com efeito, a Constituição de 1824 determinava expressamente em seu artigo 5º que “A Religião Cathólica Apostólica Romana continuará a ser a constituição do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas (...).”

451

Embora não estivesse se referindo especificamente às questões sexuais (mas sim aos abusos cometidos pelos holandeses na tentativa de colonização do nordeste brasilerio), tal frase, tem sido, desde então, constantemente utilizada para descrever a suposta ausência de moralidade sexual do povo brasileiro.

452

RUBIN, Débora. A origem da vida sexual dos brasileiros. Revista Istoé, Edição 2.125 (30.10.2010). Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/91900. Acesso em 20.10.2011.

453

Paradoxalmente, com o natural desenvolvimento da sociedade brasileira e o fortalecimento das instituições, a moralidade católica, em especial nas questões sexuais, começou a se impor com mais vigor durante o século XIX. O Brasil, que evidentemente não estava alheio ao que acontecia no mundo, foi palco, nessa época, de uma influente onda higienista, por meio da qual a classe médica constantemente referia-se ao sexo (não sem razão) como responsável por várias doenças, passando a ser ele, além de pecaminoso, a ser considerado sujo e infecto.

A separação entre o Estado e a Igreja no Brasil só acontece com proclamação da República. No entanto, a legislação brasileira guardou em seu âmago uma série de dispositivos que refletiam a moralidade sexual do Paradigma-Judaico Cristão, dos quais ainda hoje não nos livramos totalmente.

A Igreja Católica, ainda tremendamente influente, por exemplo, opôs-se ao casamento civil, por ocasião da constituição republicana, assim como o fez com relação ao divórcio, na década de 1970 (e contra o casamento homoafetivo, nesta década).

Mas a pressão da Igreja Católica, por evidente, nunca foi suficiente para que os brasileiros, enquanto coletividade, deixassem de adotar uma abordagem extremamente “relativista” (na ausência de termo melhor), no tocante as regras legais e morais atinentes à sexualidade.

Tudo denota que tais normas nunca foram levadas terrivelmente a sério pela maior parte de nosso povo que, de forma irreverente, continua, como sempre, a transformar em sucessos, tanto músicas religiosas, como a “dança do créu”, sem qualquer pejo de parecer incoerente.

Um incidente engraçado, que ilustra bem a permissibilidade e as inconsistências da moralidade sexual brasileira ocorreu no ano 2000, no Rio de Janeiro (cidade que poderia se supor, pelo episódio, prima pelo recato extremado e não tem nenhuma tarefa mais importante para sua polícia), quando a 7a Companhia Independente da Polícia Militar levou uma moça,

que fazia topless na praia, para a delegacia. Em resposta, o governo baiano, aproveitando-se da oportunidade de impulsionar o turismo, mandou publicar, nos principais jornais do país, um anúncio onde aparecia uma índia seminua, com o dizer: "Topless na Bahia: pode desde 1500".454

Mas a prova mais inequívoca de nossa dubiedade moral continua a ser o Carnaval, durante o qual, na descrição de TREVISAN, “é tal a ruptura com a sensatez, (...) que até a polícia brasileira, normalmente muito violenta, age com precaução, temerosa de revanches ou explosões em cadeia. No Carnaval, os instintos não pedem licença para passar, dança-se, canta-se, trepa-se, briga-se, rouba-se e se mata num único movimento tornado voragem, de modo que Freud talvez pudesse acrescentar dados preciosos à sua inacabada “metapsicologia” se tivesse conhecido o Carnaval Brasileiro”.455

Mas nos permitimos divergir da conclusão. Com certeza, o Carnaval brasileiro, nem Freud explica...

454

PROPATO, Váléria. O verão do topless. Revista ISTOÉ, Edição 1.582 (25.01.2000). Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/31996_O+VERAO+DO+TOPLESS+. Acesso em 20.10.2011.

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III

DIREITOS SEXUAIS: TEORIAS,

CONFLITOS E SOLUÇÕES

Nuestras discordias tienen su origen en las dos más copiosas fuentes de calamidad pública: la ignorancia y la debilidad.

Símon Bolívar

E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.

Friedrich Nietzsche