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2.2. A História do Sexo e sua interação como Direito

2.2.1. A Pré-história

2.2.1.2. O Mesolítico

Por volta do vigésimo milênio a.C., tem início o Período Mesolítico, que se caracteriza pela transição entre as sociedades caçadoras-coletoras e as sociedades agrícolas, em que se inicia a progressiva sedentarização dos grupos humanos, com o advento de evoluções graduais na área da agricultura e na domesticação de animais. Entre outras evoluções significativas, os humanos passam a habitar em residências por eles construídas, se aperfeiçoa o domínio do fogo e, provavelmente, surgem as primeiras religiões.

Mas o que teria ocorrido durante este período de transição? Duas imagens contraditórias normalmente surgem quando se pensa na sexualidade dos povos primitivos. A primeira lembra uma realidade próxima à imagem arquéptica dos brutais homens das cavernas, batendo na cabeça das mulheres com um tacape, puxando-as pelos cabelos, antes do sexo forçado. A segunda envolve um povo sem preocupações, com sua sexualidade liberal, antes da existência do peso das regras mais sofisticadas da civilização e da necessidade de manter uma economia mais complexa.

Entretanto, nenhuma das duas parece ter correspondido à realidade.

Embora possamos concluir que a dominação sexual por parte dos homens existisse, como já explicitado, as mulheres ainda eram participantes ativas nas sociedades primitivas, com considerável poder de barganha. É certo que os padrões de sexualidade eram em geral menos restritivos que os que viriam depois, mas claro que existiam regras e limitações, vez que a necessidade do sexo e a busca pelo prazer sempre precisaram de organização para permitir a manutenção da ordem social e a sobrevivência econômica.187 Se considerarmos, contudo, que a natureza humana faz com que fiquemos mais ligados a outros indivíduos quando a vida é incerta e difícil, e mais extrovertidos quando as condições

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melhoram, provavelmente havia nesta época uma tendência pendular, que ia da quase promiscuidade à quase monogamia, conforme as condições se alteravam.188

Contudo, certamente a família pré-histórica se centrava na mulher, vez que a relação materna era a única distintivamente diferente de qualquer outra relação tribal e a única capaz de criar relações de parentesco evidente. Deve-se ter em conta que foi muito tarde, em termos da evolução humana, que o papel do homem na procriação foi descoberto. Em verdade, tal ignorância parecia ser generalizada até cerca de 9.000 a.C.,189 sendo que vários povos, como os aborígenes australianos, por exemplo, continuaram por muito tempo a não associar o sexo à concepção, acreditando, ao contrário, que era o sexo durante a gravidez que permitia o desenvolvimento apropriado da criança.190

Isso comprova que a paternidade, por sua vez, tinha necessariamente dois aspectos, um social e outro biológico, e que o primeiro podia existir sem o conhecimento do segundo vez que, numa sociedade promíscua, a responsabilidade pela prole e pela determinação das relações familiares cabia primordialmente à mulher.191

Desta forma, era natural, tanto para o homem como para a mulher, praticarem o ato sexual sem enxergar nada de especial nele, a não ser a satisfação de seu instinto. Sexo e moralidade vieram a se fundir num estágio muito posterior do desenvolvimento humano.192

Em tais sociedades, a simbologia do pênis era extremamente importante e ligada ao poder e à dominação. Mas as mulheres, igualmente, eram objeto da arte primitiva, como comprovam muitas estatuetas que as representavam (dentre as quais a mais célebre é a Vênus de Willendorf, circa 22.000 a.C.), sempre com seus atributos sexuais exagerados, tais como amplos seios e nádegas salientes. Não há nada que afaste a possibilidade de que elas tenham

188

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 10.

189

Ibid., p. 12.

190

STEARNS, Peter N., op. cit., p. 14.

191

É curioso notar que os aspectos sociais da parentalidade estejam novamente no centro de muitas questões que enfrentamos hoje, como em casos envolvendo a reprodução assistida ou a adoção por casais homoafetivos, literalmente muitos milênios depois.

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sido o protótipo das atuais “Garotas da Playboy”,193

o que denota que a fixação masculina por mulheres nuas é tão antiga como a própria civilização.

Não existia então uma tendência à separação total dos sexos, tal como existente hoje, mas sim de aceitar um pouco do masculino e do feminino em cada indivíduo como sendo um comportamento saudável e normal. Também não existiam limites fixos entre o que hoje nós denominamos características heterossexuais e homossexuais, o que explica a fascinação de algumas daquelas sociedades por pessoas que apresentavam características de ambos os gêneros.194 Algumas sociedades primitivas, inclusive, reconheciam expressamente a existência de três sexos,195 o terceiro sendo o hibrido.196 Da mesma forma, rituais de travestismo eram comuns, como a “Festa do Urso” tradicional na região siberiana, na qual todos, inclusive os sacerdotes, se vestiam com roupas do sexo oposto.197

Foi neste momento histórico, durante os primórdios do desenvolvimento da agricultura, que ocorreram alguns eventos que vieram a cristalizar definitivamente o poder dos homens sobre as mulheres, poder este que ainda no século XXI se reluta tanto em dividir. Com efeito, antes da revolução agrícola do Neolítico, apesar das iniciais tentativas de dominação por parte dos homens, no seio das sociedades caçadoras-coletoras, como forma de garantir o seu acesso sexual às mulheres, elas não pareciam ter ainda uma posição social substancialmente diferente da deles. Entretanto, durante este período relativamente curto da história, tudo mudou. O homem caçador se tornou o homem pastor, e a mulher coletora foi transformada em agricultora. Esta seria uma mudança que traria efeitos quase incalculáveis no futuro das relações entre homens e mulheres, de forma que,198 quando a humanidade emergiu

193

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 25.

194

STEARNS, Peter N., op. cit., p. 13.

195

Nesse sentido, eles eram mais evoluído ou ao menos realistas do que nós, já que, apesar da inegável comprovação científica de pessoas com ambigüidades sexuais físicas e psíquicas, grande parte de nossa sociedade, de forma totalmente ilógica e despropositada, ainda teima em não aceitar esta realidade, sequer existindo um nicho classificatório para tais pessoas. Novamente, muitos milênios após o mesmo já ter existido e ter sido considerado algo comum.

196

POSNER, Richard A., op. cit., p. 26.

197

STEARNS, Peter N., op. cit., p. 12.

198

à luz da história registrada, alguns poucos milênios depois, já não havia mais qualquer dúvida de quem era o senhor absoluto.199

Algumas teorias procuram explicar tal fato ao sustentar que, durante a revolução neolítica, em grande parte por uma série de coincidências (dentre as quais a divisão do trabalho existente entre homens e mulheres), a mente masculina estava dirigida para a trilha do avanço tecnológico e a descoberta, enquanto a da mulher permanecia mais ligada às realidades imediatas, o que inadvertidamente encorajou uma divergência intelectual entre ambos,200 especialmente porque muitas das invenções que emergiram entre o início da revolução neolítica e o inicio da história registrada foram, sem dúvida, de origem masculina. Foi o homem, pacificamente pastoreando seus rebanhos, que teve mais oportunidade para dedicar-se ao pensamento construtivo, formular novas idéias, produzir novos materiais e, enfim, desenvolver a civilização que ele passou a controlar.201

Tal assertiva, bastante lógica, certamente contribui para explicar o surgimento, neste período, da diferenciação do status entre os homens e as mulheres. No entanto, ela não exclui outra, de muito mais simples compreensão e que, per se, é suficiente para comprovar os motivos pelos quais o poder dos homens sobre as mulheres se consolidou e aprofundou exponencialmente.

Não é fácil aceitar a idéia de que o homo sapiens sapiens, até o inicio da revolução neolítica, não estava ciente dos fatos da vida. As mulheres ficavam grávidas (assim como as fêmeas dos animais), e não havia uma razão particular para querer entender porque isso ocorria, já que fazia parte da natureza e da ordem natural das coisas. Com efeito, o papel do homem na procriação, embora hoje nos pareça óbvio, não poderia ser facilmente deduzido pelo padrão da vida diária que levava a humanidade no Paleolítico.202

199

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 01.

200 Ibid., p. 33. 201 Ibid., p. 31. 202 Ibid., p. 37.

Contudo, a mulher diferia das fêmeas dos animais em um aspecto importante, ao qual já nos referimos, e que provavelmente foi a causa do pontapé inicial nas especulações humanas sobre o ciclo reprodutivo: a mulher menstruava. E foi nesta época, talvez diante das condições de vida sedentária, que permitiam uma melhor observação dos outros indivíduos ou mesmo mais tempo para refletir sobre alguns aspectos básicos da vida, que alguém se perguntou por que isso acontecia.

Tal pergunta, aparentemente singela, marcou para sempre a divergência final e irrevogável entre os homens e os demais animais, pois a humanidade começou, a partir de então, a formular idéias sobre a associação entre vida, morte, carne, sangue e espírito.203

A partir do momento que se descobriu a ligação entre a relação sexual e procriação (provavelmente facilitada pela observação da reprodução nos animais domesticados), pela primeira vez na história era possível para um homem olhar para uma criança e dizer “meu filho(a)” (e racionalizar sobre a necessidade de chamar uma mulher de minha esposa).

Em decorrência, quaisquer que tenham sido os costumes sexuais existentes antes disso (monogamia, poliginia, poliandria) depois dessa descoberta, a liberdade sexual da mulher passou a ser seriamente restringida, por um motivo claro: um homem poderia ter um harém, caso ele quisesse, e pudesse defendê-lo, mas o conceito de “meu filho(a)” necessitava obrigatoriamente que a mulher fosse monogâmica.204

Passou a fazer parte de praticamente todas as culturas humanas, a partir de então, um esforço racional e deliberado dos homens em procurar restringir e controlar a sexualidade das mulheres, utilizando-se de todos os meios disponíveis, em particular a força, como forma de garantir a certeza da paternidade de sua prole, tendência cujos efeitos se fazem sentir até os dias atuais.

203

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 33.

204

Também data deste período o surgimento do tabu do incesto, uma regra de validade universal.

A procriação consanguínea consistente produz uma raça uniforme, perfeitamente adaptada ao meio em que vive, mas significa que a única escolha genética é entre alternativas similares. A seleção natural, portanto, não pode operar efetivamente neste cenário, razão pela qual as sociedades com altas taxas de procriação consanguínea têm dificuldade em se adequar a condições externas variáveis. Sociedades com pouca procriação consanguínea, em contraste, fornecem os elementos necessários para permitir que a seleção natural funcione e estão geneticamente equipadas para produzir a adaptabilidade essencial ao progresso.

Há também de se considerar que a procriação consanguínea produz uma quantidade muito maior de filhos com problemas genéticos. O tabu universal do incesto sugere que ele tenha derivado, ainda que de forma inconsciente, de tais fatos, tendo sempre sido reconhecido como tão natural e intrínseco à humanidade que mais tarde governantes, como no Egito e Peru, procuraram demonstrar seu status divino ou sobre-humano por meio de sua não observância.205

Nos seres humanos, antes que os contatos intertribais se desenvolvessem, a procriação consanguínea era quase inevitável; mas tal tabu veio a se solidificar tão logo as condições permitissem uma maior interação com grupos e pessoas diversos, de forma que, contrariamente ao que muitos acreditam, foi o incesto, e não o canibalismo, o primeiro tabu a existir no mundo.206 É interessante notarmos, neste sentido, que meninos e meninas criados juntos desde a infância, em proximidade doméstica, não se sabe exatamente a razão, desenvolvem laços afetivos uns pelos outros (e com os pais); que inibem a atração sexual entre eles mais tarde na vida, fenômeno denominado efeito Westermark, em homenagem ao sociólogo finlandês que primeiro descreveu.207 Assim é que, normalmente, irmãos (ainda que adotivos), não sentem atração sexual, uns pelos outros, na idade adulta.

205

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 18.

206

Ibid., p. 18.

207