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1.7. Em buscas de definições: dificuldades epistemológicas e conceitos básicos

1.7.1. Dificuldades Epistemológicas

O que é o sexo? O que é o comportamento sexual?

Aparentemente tais perguntas parecem ser simples e mesmo desnecessárias. Se as fizermos para qualquer pessoa adulta, independentemente da cultura na qual esteja inserida, ela irá achar que as respostas são tão óbvias, que as perguntas sequer fazem sentido.

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Contudo, como nós veremos a seguir, contrariamente ao que nos leva a crer nossa intuição, a conceituação do sexo, do comportamento sexual e de vários conceitos conexos é uma questão de extrema complexidade e que apresenta desafios epistemológicos ainda longe de serem superados, sendo que a única certeza é não existirem idéias sedimentadas e unanimemente aceitas.

E os juristas, por sua vez, devem abster-se de apontar seus dedos para os sexólogos, acusando-os de pouca cientificidade, diante de tantas indeterminações. Por acaso algum de nós, beneficiários de séculos de uma riquíssima cultura jurídica, podemos sequer afirmar que dispomos de uma definição, precisa e universalmente aceita, do que seja o direito, objeto da ciência à qual nos dedicamos?

Entretanto, as indeterminações existentes, que refletem os imprecisos limites entre as questões conceituais e normativas, longe de serem insignificantes, têm enormes efeitos práticos, com consequências importantíssimas para o direito. Com efeito, uma das razões pela qual nossa sociedade acha tão difícil resolver os problemas relativos à sexualidade é que existem desacordos fundamentais até mesmo sobre o que ela seja.

Acerca da questão, atualmente, podemos afirmar, genericamente, que coexistem três modelos conceituais, aparentemente irreconciliáveis entre si, quais sejam: (i) aqueles que compreendem a sexualidade como um fenômeno natural, que deve se adaptar a princípios ou interesses universais (em geral de ordem religiosa), tendo a sociedade a obrigação ética de canalizar para as suas manifestações mais éticas/morais, desencorajando suas formas imorais; (ii) a sexualidade entendida como uma questão biológica, fundada nas características biopsicológicas do indivíduo e que a sociedade, de maneira fútil, tenta restringir e; (iii) a sexualidade como um fenômeno social, produto de uma complexa interação entre fatores culturais e históricos que caracterizam os padrões de socialização que cada pessoa experimenta.98

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Independentemente da posição que se adote, contudo, há de se compreender que a maior parte das discussões teóricas sobre o sexo, na atualidade, diz respeito à tentativa de conciliação entre o segundo modelo conceitual (de caráter essencialista ou reducionista, por partir do pressuposto de que todos os seres humanos são essencialmente iguais, por conta de nossas similaridades biológicas) e o terceiro (de caráter construcionista, ou expansionista, por enfatizar o papel das diversas forças sociais na formação da sexualidade). Em outras palavras, é a tentativa de responder o quanto de nosso comportamento sexual é afetado por nossas características biológicas, e em que parcela, é resultado de influencias externas, debate ainda longe de ser equacionado.

Mas não se conclua, açodadamente, que estas discussões teóricas sejam apenas cerebrinas e não ensejem grandes consequências práticas vez que, como demonstraremos, a adoção de uma delas, em detrimento das outras, pela norma ou por seus intérpretes, pode levar a consequências jurídicas completamente diferentes.

Consideremos, utilizando um exemplo proposto por SOBLE,99 o adultério. Ele pode ser definido como a atividade sexual entre duas pessoas, pelo menos uma das quais é casada (não com a outra). É certo que não podemos aplicar com segurança o conceito de adultério até que se defina o que é “atividade sexual”.

Assim, caso João e Maria, via Internet, conversem e troquem entre si fotos e mensagens provocantes (ou mesmo se masturbem mostrando seus órgãos sexuais um para o outro pela webcam), estariam eles praticando um ato sexual (cybersex)? Ou imaginemos, para não escapar da questão do contato físico, que eles depois se encontrem num cinema e troquem beijos lascivos, com direito mesmo a algumas carícias íntimas. Podemos dizer com segurança que houve contato suficiente, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, para que se considere que uma atividade sexual tenha ocorrido, caracterizando a ocorrência do adultério?100

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SOBLE, Alan. The Philosopy of Sex and Love. St. Paul: Paragon House, 2008, p. 05.

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É interessante notar que, mesmo no Brasil, enquanto vigorava o artigo 240 do Código Penal (revogado pela Lei no 11.106/05), que previa o crime de adultério, havia uma querela doutrinária e jurisprudencial sobre a necessidade da “conjunção carnal” para a tipificação do crime.

Provavelmente obteremos respostas diferentes se fizermos esta pergunta ao João, a Maria, ou aos cônjuges de qualquer um dos dois, o que denota que questões conceituais e morais estão intimamente interligadas, e que a falta de claridade sobre o que seja ato sexual, in

casu, poderia permitir a exoneração de comportamentos suspeitos por meio da conveniente

adoção de entendimentos diversos e sobre o que seja atividade sexual.

Desta forma, ao analisarmos o comportamento sexual, a intenção subjetiva das pessoas envolvidas (ou poderíamos dizer, em tom de brincadeira, o “dolo”), pode ser tão importante como o ato em si. Por exemplo, um médico que examina os seios de uma paciente pode estar cometendo, conforme suas intenções, um ato moralmente reprovável ou não, muito embora não haja diferença entre o ato físico observável. Vez que ninguém jamais viu um desejo ou uma cognição, nem mesmo experimentou alguma emoção ou desejo que não sejam seus, somos obrigados a inferir a existência e a natureza dos atos sexuais de outras pessoas pelo que elas fazem e dizem, o que não é passível de verificação objetiva. Em verdade, são os aspectos mentais da sexualidade, que não são observáveis pelo comportamento ou pela fisiologia, que fazem o estudo da sexualidade humana tão interessante e ao mesmo tempo tão difícil.101

Na medida em que passamos a adotar um modelo cultural de entendimento da sexualidade, a questão se torna ainda mais complexa, pois há de se considerar que a definição de um comportamento sexual em si pode mudar de uma sociedade para outra. Tocar os braços de alguém em uma cultura pode apenas servir para chamar sua atenção, mas o mesmo ato em outra cultura pode ser visto como um ato agressivo ou de cunho claramente sexual. Como exemplo, vale recordar que, no ápice do poder da União Soviética, os caquéticos líderes comunistas se cumprimentavam com calorosos beijos na boca que, aparentemente, não tinham qualquer conotação sexual.

E para que não se pense que as questões até aqui tratadas têm caráter meramente secundário, sem maiores consequências práticas, vamos ilustrá-las por meio de um caso

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emblemático, no qual as questões teóricas sobre o sexo e seus respectivos efeitos na interpretação e aplicação do direito afetaram, recentemente, a história política de todo um país.

Uma servidora pública do estado norte-americano do Arkansas, chamada Paula Jones, ajuizou uma ação acusando o então governador daquele estado, Bill Clinton, de tê-la assediado sexualmente, em 1991. No curso daquele processo (Jones v. Clinton), os advogados da autora tentaram imprimir maior veracidade às suas alegações mediante a comprovação de que Clinton, já então Presidente dos Estados Unidos, tinha como padrão de comportamento se relacionar sexualmente com suas subordinadas.

Clinton então foi perguntado se tinha tido envolvimento sexual com outras servidoras públicas com as quais tivesse trabalhado, dentre as quais a estagiária Monica Lewinsky. Clinton negou peremptoriamente que tivesse mantido relações sexuais com Lewinsky, usando em seu proveito a ambiguidade inerente à expressão relação sexual, que havia sido definida, pelo Juiz do caso, como “contato com a genitália, ânus, virilha, seios, parte interna das coxas ou nádegas de uma pessoa com a intenção de gratificação ou despertar o desejo sexual”.102

Por meio de uma malandra interpretação da definição que lhe foi apresentada, Clinton, que havia recebido sexo oral de Lewinsky, defendeu que não teve qualquer relação sexual com ela, por não ter tido contato com as partes íntimas da estagiária, mas sim com seus lábios, como ele, candidamente, admitiu em depoimento retransmitido ao vivo para o mundo inteiro. Assim, segundo esta linha de raciocínio, quem manteve contato com a genitália dele teria sido Lewinsky, o que resultou numa inusitada situação: a estagiária teria mantido relações sexuais com ele (já que tocou sua genitália), mas ele não teria mantido relações sexuais com ela (vez que apenas teve contato com seus lábios).

Vez que aparentemente ninguém se convenceu da interpretação legal proposta por Clinton, foi ele acusado de falso testemunho, o que precipitou um processo de impeachment,

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No original: “For the purposes of this definition, a person engages in "sexual relations" when the person

knowingly engages in or causes contact with the genitalia, anus, groin, breast, inner thigh, or buttocks of any person with an intent to gratify or arouse the sexual desire of any person”.

que culminou com a sua absolvição pelo Senado, no caso mais emblemático e exemplificativo da crescente politização da sexualidade no mundo contemporâneo.

Assim sendo, comprovada a importância das questões conceituais subjacentes, e para tornar mais clara as nossas idéias aos leitores, entendemos que se faz necessário explicitarmos as opções conceituais adotadas na presente obra, o que será feito a seguir.