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2.2. A História do Sexo e sua interação como Direito

2.2.3. A Idade média (476 d.C a 1453 d.C.)

O cristianismo levou cerca de mil anos para se estabelecer firmemente na Europa, num processo de crescente consolidação do poder religioso e político, sendo que entre 400 d.C e 1.000 d.C, a Igreja Católica sobreviveu e expandiu-se como a principal força coesiva em um mundo instável, provando-se a verdadeira sucessora da Roma Imperial, exercendo um controle com efeitos muitas vezes paralisantes sobre o pensamento ocidental.311

Como dito, inicialmente o cristianismo incorporou algumas das idéias de autocontrole já existente na Antiguidade, sendo que esta cultura da moderação e as primeiras influências cristãs mutuamente se influenciaram ao pregar formas de controle ou renúncia ao sexo.312

Contudo, por fim a nova religião terminou indiscutivelmente por inovar, criando uma ética sexual radicalmente nova,313 que denominamos o Paradigma Judaico-Cristão.

Sobre a criação desse novo sistema moral, novamente nos servimos da lição de TANNAHILL:

309

TANNAHILL, Reay, op. cit., p.47.

310

Ibid., p.54.

311

Ibid., p. 129.

312

MOTTIER, Véronique, op. cit., p. p. 17.

313

“Era uma moralidade advinda de basicamente três fontes, quais sejam: partes do Velho Testamento, todo o Novo Testamento e o pensamento dos primeiros pensadores cristãos, ou os pais da Igreja, no tocante a algumas áreas de dúvida relativamente aos textos fundamentais. Num período com altas taxas de alfabetização, suas conclusões seriam contestadas ou mesmo modificadas. Contudo, a alfabetização e o ensino foram duas das maiores vítimas da queda do mundo clássico. Como resultado, as conclusões dos primeiros pensadores cristãos não foram contestadas e, com o tempo, se tornaram incontestáveis. Suas deliberações, frequentemente produto de visões excessivamente pessoais e altamente preconceituosas sobre a vida e a sociedade, passaram a ter uma aura de verdade revelada e sua moralidade, totalmente relativa em suas origens, passou a ter caráter absoluto. Desta forma, o próprio conceito de pecado que chegou ao mundo moderno advém não dos ensinamentos de Cristo ou das tábuas do monte Sinai, mas das vicissitudes sexuais de uns poucos homens que viveram na época final do império romano”.314

O Paradigma Judaico-Cristão de moralidade mostrou-se um modelo normativo altamente influente, baseado primordialmente em questões de índole sexual. Em verdade, dentre todas as aplicações da moralidade na vida humana, o cristianismo colocou o sexo como o mais importante, motivo pelo qual MOTTIER esclarece: “ao dar ao sexo um status tão especial, declarando-o “o” pecado original, o cristianismo colocou o sexo firmemente no centro da moralidade cristã”.315

A visão teística abraçada pelo cristianismo entendia o sexo como uma parte da natureza animal do homem, separada de sua natureza divina, sendo aceito, na melhor das hipóteses, como um mal necessário à sobrevivência da espécie (e mesmo assim, alguns cristãos, no início do cristianismo, consideravam este um preço muito alto a pagar), sendo que o celibato e a virgindade eram tidos estados ainda mais santos.316

314

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 130.

315

MOTTIER, Véronique, op. cit., p. 25.

316

Assim, ao elevar a virgindade e a castidade ao patamar de mais alto ideal espiritual, ao mesmo tempo em que dava ao sexo um significado cultural ligado ao trabalho demoníaco e algo que deve ser temido e evitado,317 o novo paradigma sexual criou um ethos de animosidade com relação ao sexo virtualmente sem precedentes na história humana. Tal animosidade, que denominaremos negatividade sexual, adotando nomenclatura proposta por RUBIN, pode ser descrita nos seguintes termos: “A doutrina cristã concebe o sexo como inerentemente pecaminoso. Os genitais são considerados como uma parte inferior do corpo (...). O sexo é tratado com suspeita, considerado culpado até provado inocente e o exercício da sexualidade depende de pretextos que são desnecessários para a obtenção de outros prazeres como comer ou ler um bom livro”.318

Neste momento, faz-se necessário questionar, de forma objetiva, qual seria a real profundidade da negatividade sexual que serviu de base ideológica de sustentação do Paradigma Judaico-Cristão.

Não precisamos ir muito longe para encontrarmos a resposta.

O cristianismo é intrinsecamente contrário ao sexo. Em verdade, nos registros da vida de Cristo, simplesmente não existem relatos referentes a atividades sexuais de qualquer espécie. Mesmo seu nascimento foi doutrinariamente desenvolvido para que não fosse fruto de uma relação sexual, motivo pelo qual afirma STEARS que “a animosidade do cristianismo ao sexo é evidente. Jesus nasceu de uma virgem e não é fruto de uma relação sexual, o que denota uma crença implícita de que sua divindade não é compatível com a cópula”.319

O sexo e, mais especificamente, o desejo carnal, era visto como obstáculo para a salvação espiritual, vez que prendiam os homens aos seus instintos animais.320 Alguns pais do cristianismo, tais como Orígenes, levaram a luta contra o sexo tão a sério que chegaram

317

MOTTIER, Véronique; op. cit., p. 24.

318

RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In: Pleasure and Danger. Exploring Female Sexuality. Carole Vance. Editor, 1984, p. 11-34. Apud ESKRIDGE JR. et al, op. cit., p. 551.

319

STEARNS, Peter N., op. cit., p. 48.

320

mesmo a se castrar, talvez inspirados pela Bíblia, que é clara ao reconhecer que “(...) há eunucos, que a si mesmos se fizeram eunucos, por amor do Reino dos Céus”.321

Em verdade, o problema da castração voluntária como forma de expressão da castidade cristã alarmou suficientemente a Igreja para que ela fosse obrigada a condenar a prática como heresia.322

Grande influência teórica foi exercida por Santo Agostinho, um dos fundadores do cristianismo ocidental, que desenvolveu a doutrina do pecado original, que apresenta o sexo como a causa da expulsão de Adão e Eva do paraíso, colocando os desejos carnais como inimigos de Deus, e incrementando ainda mais uma concepção negativa a respeito do corpo e da sexualidade humana.

Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho é explícito quanto a magnitude do primeiro pecado, pelo qual a todos é devida a pena eterna, chegando a afirmar que “daí resulta que se tenha tornado em massa condenada (massa damnata) todo o gênero humano - porque o primeiro que esse crime cometeu, foi punido com a sua estirpe, que nele estava radicada, de maneira que ninguém é libertado deste justo e merecido castigo a não ser por uma graça misericordiosa e imerecida”.323

Defendia ele que o sêmen era o agente pelo qual o pecado original passava de uma geração à outra, tendo transformado esse simples agente biológico em um importante instrumento teológico de danação.324 O sexo, para ele, era pecaminoso, exatamente por causa do prazer que gerava,325 motivo pelo qual defendia fervorosamente a abstinência.326

A partir de então, a doutrina cristã incorpora a condenação do corpo e de tudo que se tornou matéria perecível em consequência do pecado original, sendo que a negatividade

321

Bíblia Sagrada. Mateus, 19:12.

322

MOTTIER, Véronique, op. cit., p. 21.

323

AGOSTINHO, A Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 2171.

324

FRIEDMAN, David. M., op. cit., p. 80.

325

Ibid., p. 43

326

sexual estará presente, como um refrão obsessivo, mesmo em épocas que os costumes se abrandam, num crescendo até o Renascimento,327 de forma que, “quando finalmente o mundo ocidental emergiu da Idade das Trevas, o pecado tinha um papel mais importante e imediato na moralidade cristã que a própria redenção. E de todos os pecados abrangidos por essa moralidade, nenhum tinha uma aplicação mais ampla que o pecado do sexo. Por causa disso apenas a noção idealizada da castidade dos padres lhe dava autoridade moral. Conscientemente ou não, homens e mulheres com apetite sexual normal ficavam obcecados pela culpa. Sexo poderia ser seu único pecado, mas nos olhos da Igreja era o mais grave”.328

Com a alteração do centro de poder para a Igreja, a castidade e a pureza tornaram- se valorizadas, enquanto sexo e desejo se tornaram policiados, com o consequente aumento do vigor das penalidades aplicáveis aos comportamentos sexuais.329

Mas a mais fantástica novidade introduzida pela nova normatividade cristã (talvez criada em decorrência da inerente dificuldade de efetivo controle sobre a sexualidade das pessoas) tenha sido a de adicionar às punições terrenas, a idéia da punição divina no tocante ao comportamento sexual,330 por meio de um conceito revolucionário: o pecado.

Com efeito, a doutrina moral cristã era apoiada pela ameaça do fogo dos infernos, meio de intimidação mais efetivo, para a população da época, que qualquer outro que algum governo pudesse ter inventado.331

E a Igreja foi particularmente hábil em usar as proibições sexuais, que ela própria havia criado, como instrumento para obter ainda maior autoridade religiosa e social, motivo pelo qual ensina RUFIÉ:

“Não há duvida que, a partir de considerações teóricas ou doutrinarias, a Igreja – que também é um poder temporal que pretende ser obedecido – se aproveitava

327

RUFFIÉ, Jacques, op. cit., p. 146.

328

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 153.

329

MOTTIER, Véronique, op. cit., p. 17.

330

STEARNS, Peter N., op. cit., p. 44.

331

da proibição sexual para exercer, através da confissão auditiva, um controle rigoroso sobre as sua ovelhas, numa época e em países onde o simples fato de se confessar descrente podia levar a fogueira.

Sem muita dificuldade, podemos nos abster de matar o vizinho ou de roubar-lhe as galinhas. É mais difícil não desejar a sua mulher, pelo menos mentalmente, quando ela é desejável. E é quase impossível escapar-lhe, se a dita mulher, compreendendo nosso sentimento, dele partilha e vem entregar-se. Na realidade cotidiana, poucos homens ou mulheres, um dia ou outro, terão tido vontade de cometer um homicídio ou um roubo. Mas todos, ou quase, terão sido solicitados para uma ou varias aventuras extraconjugais.

Encarregado do controle da sexualidade e trancando-a em limites estreitos, o cristianismo faz de todo homem um pecador, tendo-o à sua mercê, pois somente a Igreja, através do sacramento de penitência, possui a chave da redenção. E esse método é tão eficaz que o pecador reincidirá, quase que inelutavelmente”.332

Mas a Igreja, evidentemente, estava ciente de que, embora sua doutrina fosse contrária ao sexo, por óbvio, este não poderia desaparecer. Por esse motivo, foi obrigada a encontrar uma fórmula conciliatória que permitisse a compatibilização entre suas proibições sexuais e a procriação da espécie, o que feito pela adaptação da já existente instituição do casamento, incorporado por ela como uma concessão à fraqueza humana, caracterizada pela necessidade de companheirismo, sexo e filhos.333 O casamento, em consequência, passou a ser considerado uma espécie de compromisso aceitável com as necessidades do mundo material, colocando-se ainda mais ênfase em seu aspecto reprodutivo.334

Não deve se olvidar, contudo, que a idéia do casamento como algo aceitável, mais ainda assim inferior à castidade,335 consta expressamente na Bíblia, no momento em que São Paulo ordena aos fiéis: “Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem

332

RUFFIÉ, Jacques, op. cit., p. 148.

333

TANNAHILL, Reay, op. cit., p. 137.

334

MOTTIER, Véronique, op. cit., p. 20.

335

Os padres, e até mesmos os bispos podiram se casar nos primórdios do cristianismo. Foi somente no século XI que se decretou a necessidade de castidade absoluta, restrição que perdura até hoje na Igreja Cátólica.

como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar- se”.336

O único comportamento sexual aceitável se tornou, portanto, o sexo entre pessoas casadas com a chancela da Igreja, com o único propósito da procriação, o que gerou profundas consequências no mundo jurídico.

A primeira delas é a condenação do adultério (desta feita tanto para os homens como para as mulheres), bem como dos filhos gerados fora do casamento, crianças estas que eram estigmatizadas, de forma a desencorajar o sexo não marital, sendo que, em alguns períodos, as crianças ilegítimas sequer tinham direito de pedir sustento de nenhum dos pais.337 A opinião expressa na Bíblia acerca dos filhos ilegítimos não poderia ser mais cândida ou sútil: “Nenhum bastardo entrará na assembléia do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará na assembléia do Senhor”.338

A segunda consequência foi o crescimento exponencial da condenação (e criminalização) de todas as formas de sexo não expressamente autorizadas. A fornicação (i.e. o sexo motivado pelo prazer), em especial, era considerada um pecado mortal.339

As relações homossexuais também foram particularmente afetadas. Com efeito, por volta do século VI d.C., qualquer evidência de atividades homossexuais virtualmente desapareceram. É claro que, por óbvio, elas não deixaram de existir, mas sua expressão passou a não mais ser socialmente aceita e a atividade começou a ser feita secretamente, ou “no armário”, conforme a expressão utilizada nos dias de hoje.340

Mesmo as questões relativas à identidade de gênero, toleradas em muitas culturas da Antiguidade, passaram a ser um tabu, desaparecendo também a aceitação de qualquer ambigüidade sexual, conforme também explicitado na Bíblia: “A mulher não usará roupa de

336

Biblia Sagrada, Coríntios, 7:8.

337

POSNER, Richard A., op. cit., p. 262.

338

Bíblia Sagrada. Deuterônimo, 23:2.

339

FRIEDMAN, David. M., op. cit., p. 45.

340

homem, nem o homem, veste peculiar à mulher; porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao senhor teu Deus”.341

Era de se supor, contudo, que no contexto de uma religião mais igualitária, a situação da mulher na sociedade fosse ser objeto de substancial melhoria. Entretanto, isso não aconteceu, pois o cristianismo continuou a ser muito severo para com as mulheres, a começar pela interpretação do Antigo Testamento.

De fato, embora tenha sido a segunda na ordem da criação (Eva foi criada a partir de uma costela de Adão), torna-se logo a primeira na ordem da queda, pois é ela que tenta Adão, e os faz cair na condição humana, via pecado original, com todas as suas servidões e sofrimentos, motivo pelo qual continuará, também com base em fundamentos religiosos, subordinada ao homem, por determinação do próprio Deus, que se dirige à ela nos seguintes termos: “Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será o de teu marido, e ele te dominará”.342

O criador, por sua vez, é representado como o Deus-pai e seu enviado à terra, Jesus Cristo, torna-se também um homem. Definitivamente, nesta religião, não havia espaço para uma deusa,343 assim como não há, na alta hierarquia católica, espaço para qualquer mulher ainda nos dias atuais.

Sendo o sexo considerado tão terrível e pecaminoso, por evidente que as referências à sexualidade deixaram de ser aceitas, bem como sua representação em qualquer forma de arte. A nudez, antes tão celebrada, em reverso à tradição estética do mundo clássico, torna-se um tabu, e o corpo humano objeto de vergonha,344 tendo mesmo o Papa Paulo IV mandado que Michelangelo pintasse panos sobre os órgãos sexuais das imagens da obra “O Juízo Final”, na Capela Sistina (é interessante notar que a obra foi recentemente restaurada, mas os panos pintados continuam lá).

341

Bíblia Sagrada, Deuterônimo, 22:5.

342

Bíblia Sagrada, Gênesis, 3:16.

343

TANNAHILL, Reay; op. cit., p. 72.

344

Existiam, como sempre, vozes discordantes. Mas estas, se não eram caladas pela fogueira, encontravam pouco eco na sociedade. A Inquisição, nesse sentido, é a ilustração mais emblemática da maneira como se deveria tratar qualquer manifestação dissidente.

Contudo, se a ética sexual ensinada pelos teólogos católicos medievais era extremamente severa, a prática era muito diferente. Concubinagem, prostituição, adultério, fornicação e homossexualidade floresceram (mesmo entre o clero), com pouca interferência do Estado ou da Igreja. Basta nos lembrarmos dos Bórgia...