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A necessária contribuição do Direito: as dificuldades e limitações inerentes ao estudo

Entendemos que o estudo da regulação do sexo pelo Direito sempre foi de primordial importância, em especial devido à relevância que a sexualidade tem nos mais diversos aspectos da vida das pessoas e da sociedade. Portanto, sendo o sexo tão importante, uma das maiores fontes de prazer e sofrimento humano, da criação de instituições e controvérsias políticas, ele certamente merece ser objeto dos melhores esforços intelectuais,75 sendo plenamente justificável e legítima a pesquisa sobre o tema por parte dos juristas. Ademais, por todos os motivos já explicitados no decorrer deste capítulo, os direitos sexuais estão na ordem do dia, conforme bem sintetiza RIOS:

“no mundo contemporâneo os direitos sexuais se revelam tão necessários quanto desafiados. De fato, na realidade social, política e jurídica nacional cada vez mais surgem reivindicações e demandas em torno dos direitos sexuais (...). Este quadro decorre de uma incontrolável combinação: as lutas sociais contra a desigualdade de gênero, a consolidação de movimentos identitários e a irrupção de novas formas individuais e coletivas de ser e viver a sexualidade, o impacto da epidemia do HIV/AIDS e sua relação com a sexualidade. Estes, dentre outros fatores, deixam fora de dúvida a necessidade da afirmação de direitos sexuais. (...) vários obstáculos se contrapõe à diversidade de identidades e de expressões humanas na sexualidade, tais como a intolerância religiosa, fundamentalismos de toda ordem,

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higienismo sanitário, preconceitos, exclusão econômica e política, práticas culturais institucionalmente arraigadas e historicamente construídas.” 76

O Direito, por evidente, não pode permanecer inerte diante deste cenário de incertezas, em especial porque a sociedade demanda respostas a todos os desenvolvimentos ocorridos nessa área, sendo imperiosa, mais do que nunca, uma discussão aprofundada e séria sobre tais questões. Em decorrência, o estudo dos direitos sexuais tem aumentado exponencialmente, e muitas das mais importantes instituições de ensino jurídico no mundo tem se debruçado sobre o tema.77

Contudo, apesar do recente aumento dos esforços, esta continua a ser uma das áreas mais lacunosas, apresentando a regulamentação do sexo pelo direito, em qualquer nível de analise, ictu oculi, inúmeras inconsistências e contradições, evidenciando a insuficiência dos instrumentos jurídicos existentes nessa área. Diante da ausência de paradigmas e em meio a um momento de transição, este trabalho objetiva uma análise crítica da atual situação dos diversos aspectos relativos à normatização do sexo pelo Estado, bem como apontar sugestões para seu aperfeiçoamento, dispersando “algumas das nuvens de ignorância, preconceito, vergonha e hipocrisia que enevoam o discurso público sobre o sexo, permitindo sua discussão de forma menos apaixonada e mais racional”,78 informada pelo conhecimento e apropriada ao complexo momento histórico no qual estamos inseridos.

O Direito é uma das ciências cuja interação com o sexo é das mais antigas, íntimas e turbulentas e, como se não bastasse a complexidade do tema, existem ainda outras questões que tornam seu estudo particularmente difícil e singular.

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RIOS, Roger Raupp, op. cit., p. 07.

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Como exemplo, a Universidade de Columbia, uma das pioneiras neste campo, chegou mesmo a instituir um Centro de Estudos sobre o Direito da Sexualidade e Gênero. A Faculdade de Direito da Universidade de Georgetown, na qual nos pós-graduamos, por sua vez, edita uma prestigiosa publicação, denominada Journal of

Gender and the Law que, embora inicialmente focada na visão feminista do direito, atualmente abarca os direitos

sexuais como um todo. Iniciativas similares existem em muitas das mais prestigiosas instituições de ensino do mundo.

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A primeira delas é o caráter necessariamente interdisciplinar de tal estudo, vez que mesmo a sexologia contemporânea, per se, é um campo de estudos multidisciplinar, que une perspectivas médico-biológicas, socioculturais e psicológicas. Neste sentido, diferentes disciplinas enfatizam, de forma complementar, cada um dos aspectos específicos da sexualidade: fisiológicos, evolutivos, antropológicos, etiológicos, socioculturais e normativos, cognitivos, motivacionais, semióticos, dentre outros,79 razão pela qual, ainda que tentemos nos concentrar nos aspectos normativos, devemos reconhecer que a análise da interação entre o sexo e o direito requer, como conditio sine qua non, a compreensão de uma realidade que escapa ao fenômeno jurídico, o que gera dificuldades, particularmente no tocante a ainda pouco estudada interação recíproca entre as diversas teorias existentes nestas áreas do direito e da sexologia.

O estudo da interação entre sexo e o Direito também tende a extrapolar para uma série de questões conexas, normalmente interligadas, interdependentes ou sobrepostas, sendo certo que a análise das dimensões estruturais e culturais da sexualidade demandam que confrontemos silêncios, invisibilidades e injustiças resultantes de múltiplas formas de exclusão social, estigma e discriminação,80 o que significa que, ao estudar o sexo, não podemos ignorar questões de poder material e institucional.81

Entretanto, acreditamos firmemente que tentativas de reformas na lei e nas ações humanas em geral requerem mais que preconceito, tradição e ideologia: elas requerem conhecimento.82 Contudo, é precisamente neste momento que nos deparamos com o escasso nível de informação de muitas das pessoas que lidam com o tema.83 Tal estado de coisas tende, frequentemente, a empobrecer o diálogo, reduzindo-o, muitas vezes, a uma simples verbalização de opiniões sem qualquer embasamento científico ou questionamento mais elaborado, o que comprova que continua a ser muito difícil, para a quase totalidade das

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GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes contra dignidade sexual. Editora Atlas: São Paulo, 2011, p. 04.

80

CORRÊA, Sônia et al, op. cit., p. 10.

81

ALTMAN, Dennis, op. cit., p. 01.

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POSNER, Richard A., op. cit., p. 442.

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pessoas, por mais educadas ou intelectualizadas que sejam, tratar do tema como objeto de estudo científico desapaixonado.

E não se conclua que o precário nível de informação seja menos preocupante entre os profissionais do direito, inclusive nos quadros do Poder Judiciário. Os profissionais do direito pertencem a uma área do conhecimento que, em geral, é tendente ao conservadorismo e que, em grande parte, reluta em discutir o assunto. Com efeito, como afirma a doutrina, a maior parte dos juízes sabe muito pouco sobre sexo, além de sua própria experiência pessoal, que quase sempre é muito limitada,84 chegando POSNER a salientar que, quando tratam de sexo, as cortes têm pouca idéia do que estão fazendo, o raciocínio legal convencional não leva a lugar nenhum e o “bom senso” não é um guia confiável, devido à natureza emocional do sexo e os inúmeros tabus que o cercam.85

Com efeito, as tradicionais linhas de raciocínio morais e legais usadas para lidar com temas tão complexos como a sexualidade têm se mostrado completa e reiteradamente inadequadas,86 evidenciando a necessidade de se trazer a lume um novo discurso, centrado principalmente em bases científicas e na discussão racional sobre a normatização do sexo.

Outra questão importante deriva da tradicional reticência cultural em discutir o assunto. Muito embora seja verdade que a literatura sobre sexo que emergiu a partir da década de 60 expandiu-se exponencialmente para abranger áreas diversas, que vão da pornografia a complexos estudos teóricos e acadêmicos, é certo que ainda existe uma relativa escassez de literatura na área, em especial a partir de uma abordagem mais abrangente e universal.

A doutrina existente, em sua maior parte, continua a ser de autoria de estudiosos oriundos de países ocidentais com alto grau de desenvolvimento, o que enseja, necessariamente, a predominância de uma determinada visão de mundo. Infelizmente, a produção acadêmica, na maior parte dos países africanos e asiáticos (em particular aqueles de tradição muçulmana), continua a ser quantitativamente insignificante. Some-se a isso o fato de

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POSNER, Richard A., op. cit., p. 01.

85

ABRAMSON, Paul R. et al, op. cit., p. 64.

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que tais obras dificilmente são traduzidas, e temos um quadro no qual grande parte do mundo deixa de participar do debate internacional sobre essas questões, o que é extremamente prejudicial ao desenvolvimento de uma doutrina mais inclusiva e de caráter universal. Quer nos parecer óbvio, por exemplo, que a China ou a Índia, os dois países mais populosos do mundo, devam ter alguma coisa a contribuir na discussão acadêmica sobre o sexo. O mesmo pode-se dizer de países com cultura milenar como o Japão ou o Irã, dentre outros. Entretanto, a produção acadêmica sobre o sexo e direito, em um grande número de países, continua a ser muito pequena, quando não inexistente.

As implicações dessa excessiva ocidentalização do debate sobre o sexo se tornaram evidentes com as pesquisas em larga escala da AIDS as quais demonstraram que muitas das categorias e classificações usadas para descrever a vida sexual no ocidente, tidas por nós como conceitos perfeitamente delimitados, tais como de homossexualidade, adultério ou prostituição, longe de serem universais, são frequentemente entendidas de forma bastante diferente em outras culturas. Ademais, diferentes culturas apresentam outras categorias e conceitos que não se encaixam no nosso sistema de classificação da sexualidade,87 sendo essencial reconhecer, ainda hoje, a existência de importantes desafios na produção de conhecimento significativo, diante de tantas lacunas epistemológicas.88

Aproveitando-se deste vácuo na produção acadêmica global, se aprofunda a existência de uma nova tendência, caracterizada pela hegemonia cultural dos Estados Unidos, auxiliada por certas questões estruturais, em especial o uso progressivo do inglês como língua universal e a esmagadora supremacia da indústria norte-americana do entretenimento a influenciar a cultura de todos os outros países.

Paradoxalmente, os Estados Unidos não são muito permeáveis às idéias que vêm de outros países, sendo que nenhuma outra nação é tão insular no tocante ao resto do mundo e ao mesmo tempo tão capaz de exportar suas idéias e visões.89 Tal estado de coisas tem consequências importantes, já que os Estados Unidos permanecem como modelo que

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CORRÊA, Sônia et al, op. cit., p. 134.

88

Ibid., p. 142.

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influencia as tendências relativas à sexualidade, seja sob o ponto de vista da produção cultural ou da pesquisa sobre sexologia,90 o que é visto com desconfiança por muitos que se questionam se a exportação das idéias americanas sobre o sexo não seria uma forma de neocolonialismo.91

Entendemos, contudo, que a influência cultural norte-americana, em especial no tocante a idéias relacionadas ao sexo, não deve ser aceita de forma acrítica. Infelizmente, se é verdade que os Estados Unidos têm uma produção de altíssima qualidade na área acadêmica, também é verdade que boa parcela da mídia se especializou em explorar, sem pudores de qualquer espécie, os instintos, impulsos e preconceitos mais primitivos da população, forçando o nível do discurso a patamares inacreditavelmente baixos e, muitas vezes, imbecilizando-o por completo.

Some-se a isso o fato de que os Estados Unidos tem uma herança dual de puritanismo religioso e capitalismo liberal92 que faz com que os discursos relativos ao sexo sejam singulares, excessivamente politizados e, em nossa opinião, particularmente incongruentes. Sua influência global, entretanto, está permitindo que aquele país exporte para o resto do mundo muitas das ansiedades e contradições inerentes a sua cultura sexual,93 motivo pelo qual é particularmente importante que ela seja analisada de forma crítica.

Contudo, talvez a questão mais preocupante quando se estuda o sexo é a confusão que se faz, raramente de forma inconsciente, entre a adoção de uma abordagem conceitual ou normativa do sexo, questão fundamental para se entender todas as discussões sobre o tema.

Expliquemos melhor: a sexologia e as ciências correlatas, por serem ciências naturais, têm como objeto de estudo uma realidade ôntica, qual seja, o sexo e o comportamento sexual (e não o que eles deveriam ser). O Direito, ao contrário, tem caráter lógico eminentemente deôntico, sendo regido pelas leis da imputabilidade (dever-ser). Em

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Ibid., p. 32.

91

ALTMAN, Dennis, op. cit., p. 94.

92

Ibid., p. 148.

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outras palavras, a ciência jurídica tem por objetivo estudar normas que enunciam o que se deve fazer e não o que sucedeu, sucede ou sucederá.94 Isso quer dizer que o Direito, enquanto ciência, pressupõe um posicionamento axiológico vis-à-vis a uma realidade ôntica, ou seja, que a norma expresse, no mais das vezes, um juízo valorativo sobre a conduta humana.

Assim sendo, em princípio, o estudo da realidade ôntica do sexo, objeto da abordagem científica conceitual, não se confunde com o objeto da abordagem normativa do sexo, de caráter deôntico, que é privativa do Direito. Ou ao menos é assim que deveria ser.

Entretanto, não é isso o que se observa, provavelmente em razão das importantes implicações, na esfera sociocultural, do comportamento sexual humano. Destarte, no mais das vezes, os trabalhos científicos sobre sexo (ainda que sob o prisma ôntico), se mostram carregados de um alto grau de ideologia, motivo pelo qual a própria doutrina reconhece que a literatura científica sobre a sexualidade humana, mais do que em qualquer outra área, a par da linguagem descritiva, é mesclada com conselhos e linguagem prescritiva moralizadora.95 De fato, uma das questões mais curiosas, quando se estuda a matéria, é observar que as pessoas parecem ter idéias bastante específicas não apenas sobre o seu próprio comportamento sexual, mas principalmente sobre o comportamento sexual dos “outros”.

Este ubíquo problema da confusão entre as análises descritiva e prescritiva do sexo é, em nossa opinião, o de mais difícil solução, particularmente porque a ideologia, muitas vezes é deliberadamente inserida de maneira sutil e indireta ou porque, em alguns casos, há real impossibilidade de determinação dos limites entre as questões conceituais e normativas.

Em verdade, vez que a informação sobre a sexualidade humana vem de ciências e campos tão diversos, diante deste enorme volume de informação, heterogênea e desigual, é de certa forma inevitável que, em qualquer discussão sobre a sexualidade, estaremos direta ou indiretamente lidando com os preconceitos e inclinações normativos e prescritivos das pessoas.96 Contudo, compartilhamos a opinião de que qualquer ação social evidentemente terá

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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 120.

95

SYMONS, Donald; op. cit., p. 67.

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melhores chances de ser bem-sucedida se for baseada em uma abordagem realista da condição humana,97 o que significa que, antes de tentar normatizar o sexo, talvez devessemos, coletivamente, empenhar mais recursos na tarefa de compreendê-lo.

Há de se considerar também que, sendo a sexualidade e suas manifestações uma das características singulares de cada ser humano e, paradoxalmente, um tema tão universal e complexo, é certo que por mais que extensamente pesquisada, necessariamente nossas conclusões refletirão uma visão fragmentada, limitada, incompleta e talvez mesmo afetada por nossos próprios preconceitos, ainda que inconscientes. Cientes, ainda, das constantes mudanças sociais que acontecem nessa área, devemos admitir que muito do que escreveremos deverá, certamente, ter caráter provisório, vez que novas idéias sobre as questões aqui abordadas surgem com velocidade sem precedentes, forçando que revisemos constantemente conceitos e opiniões.

Entretanto, todas estas dificuldades não nos desanimam. Ao contrário, elas apenas denotam os motivos pelos quais o estudo destas questões se faz mais premente, importante e necessário.

1.7. EM BUSCAS DE DEFINIÇÕES: DIFICULDADES EPISTEMOLÓGICAS E