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A História e Historiografia da Ciência: Um debate sobre externalismo e

Capítulo 1: Histórias da “História da Ciência”

1.2 A História e Historiografia da Ciência: Um debate sobre externalismo e

Martins (2004, p.115) define a historiografia da ciência como sendo o resultado da produção dos historiadores, enquanto a história é o conjunto de eventos pertencentes a uma determinada época. Neste aspecto, Martins aponta que:

[...] Pode-se considerar que a história existe independentemente da existência dos historiadores [...]. Ela é constituída por um encadeamento de atividades humanas ocorridas ao longo do tempo. A historiografia, por outro lado, é o produto da atividade dos historiadores. Ela é composta essencialmente por textos escritos e reflete sobre os acontecimentos históricos agregando-lhes um caráter discursivo novo. Procura desvendar aspectos da história, mas não é mera descrição da realidade histórica. Além desses dois, há um terceiro nível, que é a reflexão sobre a atividade dos historiadores. Este também é usualmente chamado de “historiografia”, mas para maior clareza, vamos utilizar o termo “meta-historiografia” [...] Trabalhos sobre metodologia da pesquisa histórica e discussões sobre correntes e abordagens utilizadas pelos historiadores são igualmente meta-historiográficos.

Desse modo, no primeiro nível Martins refere-se à história como acontecimentos ocorridos no passado. Enquanto que a historiografia seria a produção dos historiadores com seus registros e interpretações das análises dos fatos históricos. E por fim, Martins define um terceiro nível, quando utiliza o termo “meta-historiografia da ciência”. Neste último termo ele faz referência às diferentes correntes e abordagens historiográficas como sendo, portanto, uma reflexão sobre os trabalhos dos historiadores da ciência.

Neste aspecto devemos entender a historiografia como uma interpretação dos acontecimentos históricos e, portanto, não é neutra e é sempre influenciada por diferentes visões, dependendo da concepção de ciência daquele que escreve. Assim, a historiografia reflete critérios que estão baseados na concepção epistemológica do historiador.

A respeito disso D’Ambrósio argumenta que:

A historiografia é, essencialmente, a história das narrativas, do registro dessas narrativas e da interpretação dos processos de decisão tomados por grupos sociais. Os dados históricos, geralmente, são fragmentados e a composição e reconstituição desses dados aproxima a história da ficção. Particularmente na falta de registro escrito, a historiografia se aproxima da ficção (D’Ambrósio, 2004, p.166).

Daí depreende-se que toda a concepção histórica está submetida a certas concepções filosóficas, culturais e científicas do seu autor e, portanto, trata-se de uma visão de mundo.

Retomemos aqui brevemente as teses de Hessen sobre Newton que influenciaram muitos historiadores e cientistas de vários países, dos quais faziam parte, entre outros, John Desmond Bernal (1901 – 1971), especialista em cristalografia, e Joseph Needham (1900 – 1995), bioquímico e historiador da ciência. Podemos

reconhecer aqui aquilo que posteriormente se convencionou chamar visão externalista da história da ciência, em oposição à historiografia tida então como internalista. (BELTRAN, 2014, p. 37).

Outra perspectiva historiográfica surge, por exemplo, a partir dos estudos de Lynn Thorndike (1882-1965), que pensava a transformação da ciência a partir de uma perspectiva operacionista, vislumbrando-a como uma gama de possibilidades que contemplaria desde a magia até o experimentalismo.

Thorndike escreveu a obra História da Magia e Ciência Experimental [tradução nossa], publicada em oito volumes entre 1923 e 1958. Nesta obra o autor apontava que a magia precedera a ciência moderna. No entanto, esta obra não causou muito impacto na época de sua publicação, pois a maioria dos historiadores e cientistas adeptos do positivismo não incluíam esse tipo de investigação em seus estudos. (GOLDFARB, 2004; BELTRAN, 2014).

Neste cenário, abre-se uma possibilidade de debate a partir de duas perspectivas historiográficas distintas: “internalista” versus “extenalista”.

A corrente historiográfica definida como externalista considera a ciência como uma atividade humana fruto do contexto social, político e econômico de um determinado período histórico. Já a perspectiva internalista entende a ciência como autônoma, neutra e independente do contexto social onde o conhecimento científico é produzido.

A corrente externalista teve grande influência nos trabalhos sobre história da ciência de Bernal. É importante destacarmos a publicação em 1939 do livro de Bernal. A função social da ciência que, por sua vez, influenciou a consciência social de cientistas de todo o mundo. No início dos anos cinquenta, Bernal publica o livro Science in History [Ciência na História – tradução nossa] que se tornou um clássico no campo da história da ciência (BELTRAN et al, 2014).

Segundo Beltran (2014, p. 37), os trabalhos de Bernal contribuíram para a consolidação da história social da ciência. Também merece destaque a contribuição de Needhan, que fez um trabalho minucioso sobre a ciência chinesa, defendendo a anterioridade do conhecimento oriental sobre o ocidental.

Assim como autores que se alinham mais as vertentes externalistas, a nosso ver, uma historiografia centrada apenas nos aspectos internos da ciência é anacrônica, não permitindo uma análise mais profunda sobre como um conhecimento foi produzido. Contudo, considerar apenas os aspectos externos da ciência também não contempla toda a complexidade do fazer científico. Atualmente o debate entre o “internalismo” e o “externalismo” já foi praticamente superado pelos historiadores da ciência, já que se reconhece que ambos os aspectos são fundamentais para um quadro mais completo da construção do conhecimento científico.

Outro debate que queremos pontuar aqui, pois também contribuiu para a transformação do modo como se entende a história da ciência foi aquele em torno da visão descontinuísta de ciência. Um dos pioneiros deste debate foi Gaston Bachelard (1884 – 1962), filósofo francês, que propôs a ideia de que a ciência não se desenvolve de maneira contínua, mas que sofre rupturas ao longo do processo, ou seja, ao longo de sua história ideias antigas são substituídas por outras mais novas.

Embora Bachelard tenha rompido com a visão continuísta da ciência, sua ideia de desenvolvimento científico ainda está pautada na noção de progresso científico. Além disso, para Bachelard, a história deveria ser contada a partir da ciência do presente. Conhecida como “presentista” ou praticante da recorrência histórica, essa corrente historiográfica também foi alvo de muitas críticas.

Herbert Butterfield (1900 – 1979), em seu trabalho publicado em 1931, intitulado The Whig interpretation of history, critica Bachelard argumentando que os historiadores tomaram partido. Esse tipo de narrativa foi inspirado na prática do partido político britânico, que buscava organizar a história para firmar seu próprio poder. (FORATO, 2009, p.20).

De acordo com Forato (2009), esse é um tipo de anacronismo denominado de whigguismo, que tem como objetivo enaltecer grandes pensadores. Além disso, este modelo de narrativa histórica não considera o contexto social e valoriza apenas o discurso científico moderno. (BELTRAN, 2014, p. 40).

A tese da descontinuidade incomodou muitos filósofos contemporâneos de Bachelard, mas induziu estudos relativos à descontinuidade na ciência, principalmente nas décadas de 1940 e 1950. (ALFONSO –GOLDFARB, 1994).

Ainda nesta perspectiva descontinuísta, Koyré se manifesta como um descontínuista internalista, onde, além de se assumir como alguém que não acredita numa continuidade metodológica e conceitual, acredita que a ciência se desenvolve em seus âmbitos, sem elementos externos à práxis do cientista. O foco de seu estudo não incluía o contexto social onde o cientista está inserido. Essa ideia fica muito clara no seguinte trecho:

Não é a estrutura social da Inglaterra no século XVII que nos pode explicar Newton, nem é a Rússia de Nicolau I que pode lançar alguma luz sobre a obra de Lobatchevsky. Esta é uma empresa inteiramente quimérica, tão quimérica quanto querer predizer a futura evolução da ciência ou das ciências em função da estrutura social ou das estruturas sociais de nossa sociedade ou nossas sociedades. (KOYRÉ, 1982, p.377)

Para Koyré, autor de importantes estudos sobre Galileu, a Ciência avançava, mesmo que de forma descontínua, desde a Antiguidade, tendo em vista que cada período partia de diferentes precursores.

A partir da década de 1960, nesse então estabelecido debate entre continuísmo e descontinuísmo, o norte-americano Thomas Kuhn (1922 -1996) seria um personagem central na ruptura definitiva com a historiografia continuísta da ciência quando publicou, em 1962, o livro A estrutura das revoluções científicas, muito discutido pelos filósofos da ciência (ALFONSO- GOLDFARB, 1994).

Recorrendo a exemplos históricos, Kuhn desenvolveu sua tese contra o continuísmo, colocando em foco a ideia de paradigma como sendo um conjunto de regras, normas, crenças e teorias que direciona a ciência numa determinada época.

Segundo Kuhn, haveria períodos de ciência normal, nos quais a ciência avançaria dentro do seu próprio paradigma. Ele escreve:

Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. Quando esta peça do meu quebra-cabeça encaixou no seu lugar, um esboço preliminar deste ensaio [A estrutura das revoluções científicas] emergiu rapidamente (KUHN, 1998, p. 13)

Os períodos de ciência normal seriam intercalados por outros, chamados revolucionários, nos quais um paradigma entra em crise, ou seja, suas explicações não são mais satisfatórias ou não dão conta dos fenômenos.

Nessas ocasiões, vários paradigmas, ainda incompletos, competiriam entre si para tomar o lugar do que foi abandonado. A escolha de um novo paradigma ocorreria com base em motivos científicos, estéticos, emocionais, políticos, e não apenas por razões lógicas. E, perante a novos fenômenos que resistem à explicação dentro do paradigma vigente, este começa a revelar-se como uma fonte de problemas e de incongruências, que não podem ser solucionados pela “ciência normal”.

Um período de crise mais ou menos longo, se estabelece, no qual não há um consenso, mas sim debates fortemente polêmicos.

Surge então a necessidade de uma ruptura paradigmática, que é a revolução científica e culmina com a consequente aceitação do novo paradigma. Cabe destacar que para Kuhn o novo paradigma não tem nada em comum com o paradigma anterior e por isso ele denominou essa característica de incomensurabilidade entre diferentes paradigmas. Como exemplo, consideremos o conceito de gravidade, ou seja, a teoria de Einstein não é uma evolução da teoria de Newton, e assim, não há possibilidade de comparação ente elas.

As discussões epistemológicas e históricas de Kuhn foram importantes, pois derrubaram dois obstáculos: o primeiro, epistemológico, que impedia de se analisar a ciência como um empreendimento humano, sujeita a falhas, erros e acertos e muito influenciada pelo contexto cultural. O segundo, de natureza pedagógica, determinava que o ensino não deveria apenas oferecer o produto final da atividade científica, mas sim uma visão do processo e do contexto que a caracterizam.

Na próxima seção analisaremos as possíveis relações entre a história da ciência e o ensino de ciências. Para tal, a partir de sua caracterização inicial, faremos uma análise a fim de evidenciar as possíveis contribuições, as críticas recebidas, bem como as principais dificuldades apontadas por aqueles que resistem em utilizá-la. Por fim teceremos algumas considerações em torno das possíveis interfaces em sala de aula entre história e ensino de ciências.