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História da Ciência: Algumas Considerações educacionais

Capítulo 1: Histórias da “História da Ciência”

1.5 História da Ciência: Algumas Considerações educacionais

Continuamos esta discussão com a seguinte questão: Qual o papel da ciência na formação básica? Essa pergunta se faz muito importante considerando a visão de ciência que pode estar presente na sala de aula. Assim, como resposta à questão anteriormente proposta, Zanetic (1991) estabeleceu um conjunto de dimensões que, em sua concepção, seriam importantes, ou mesmo indispensáveis, ao ensino de ciências para a formação de um cidadão contemporâneo. Reproduzimos as dimensões:

i. vivemos numa época fortemente influenciada/determinada pela ciência; é o “homo cientificus”, categoria aparentemente superior do “homo sapiens”;

ii. a natureza é basicamente explicada pela ciência, isto é, esta permite um diálogo inteligente com aquela;

iii. a tecnologia, presente na nossa realidade, é fortemente lastreada na ciência;

iv. os métodos científicos podem ser facilmente transferíveis para outras atividades humanas;

v. a ciência favorece o discurso racional, da razão;

9 Ciência & Educação(C&E), Investigações em Ensino de Ciências (IENCI), Caderno Brasileiro de

Ensino de Física(CBEF), Revista Brasileira de Ensino de Física(RBEF), Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (RBPEC) e Ensenãnza de las Ciências (Enz)

vi. a ciência permite um diálogo com o cotidiano vivenciado; vii. a ciência enriquece e promove a imaginação;

viii. a ciência desperta a observação cuidadosa do trabalho com a experimentação;

ix. a ciência promove o pensamento crítico;

x. a ciência favorece a luta pela transformação social; xi. a ciência... tem 1001 utilidades.

Concordamos com Zanetic (1991, p. 5) quando ele afirma que se em sua lista estivesse o papel da ciência para realizar os exames vestibulares este seria o único item contemplado nas salas de aulas. Nossa experiência como professores corrobora esta afirmação. Em nossas escolas ainda prevalece um ensino de Física “formulista”, que visa apenas a resolução de exercícios para a realização de provas e para o vestibular.

Não obstante, as linhas mais contemporâneas de ensino das ciências, as Orientações Curriculares para o ensino médio sinalizam:

Partimos da premissa de que no Ensino Médio não se pretende formar físicos. O ensino dessa disciplina destina-se principalmente àqueles que não serão físicos e terão na escola uma das poucas oportunidades de acesso formal a esse conhecimento. Há de reconhecer, então, dois aspectos do ensino de Física na escola: A Física como cultura e como possibilidade de compreensão do mundo (BRASIL, 2000)

Entendida como cultura, a ciência amplia a compreensão do mundo. Neste sentido, é necessário que os estudantes tenham acesso a muito mais do que um enunciado de fórmulas incompreensíveis unidos a conceitos abstratos.

Concordamos que alguns aspectos dos processos que envolvem a construção do conhecimento científico devem ser abordados pela educação cientifica na escola básica (ABD-EL-KHALICK; BELL e LEDERMAN, 1998). Fazendo uma simples analogia, seria como tentar ensinar um estudante tocar piano sem que este tivesse acesso ao aprendizado das notas musicais e suas relações com a harmonia da música. Assim, no caso da ciência, o professor deve promover discussões que favoreçam o acesso dos estudantes às práticas cientificas e à forma dessa área construir o conhecimento. (DRIVER; NEWTON; OSBORNE, 2000).

Isso não significa, obviamente, que a Física não deva ser ensinada e tratada pelo professor da escola de forma criteriosa. É preciso ensinar os processos específicos da ciência e do fazer científico, ou seja, ensinar “como as coisas funcionam” e os seus processos de investigação:

(...) o que a Física deve buscar no Ensino Médio é assegurar que a competência investigativa resgate o espírito questionador, o desejo de conhecer o mundo em que se habita, Não apenas de forma pragmática, como aplicação imediata, mas a compreensão do mundo, a fim de propor novas questões e, talvez, encontrar soluções (BRASIL, 2006).

Portanto, não interessa que o aluno aprenda apenas os conceitos da Física, mas que tenha uma compreensão das práticas que envolvem esse conhecimento. Para tal, é fundamental que compareçam no ensino dessa disciplina, elementos históricos e estéticos bem como os elementos culturais que se relacionam com o conhecimento físico.

Nesta perspectiva, deseja-se despertar nos estudantes a capacidade de perceber que a Física está presente em diversas áreas da cultura. Na literatura especializada temos alguns trabalhos que corroboram esta importante interface a começar pela tese do professor João Zanetic, que inspirara tanto este trabalho como outros sobre esta mesma temática. (AMARAL, 2003; LEITE 2003; OLIVEIRA 2004; DEYLLOT 2005; SILVA 2006; PIASSI E PIETROCOLLA 2007; GUERRA e BRAGA, 2011).

Assim, como professores, devemos estar comprometidos com o ato de ensinar que impõe não somente ensinar conteúdos, mas também ensinar a “pensar certo.” Sobre isso, já nos alertava Paulo Freire, quando escreve:

(...) pensar certo tanto implica o respeito do senso comum no processo de sua necessária superação, quanto o respeito e o estimulo à capacidade criadora do educando. “Implica o compromisso do educador com a consciência crítica do educando, cuja promoção da ingenuidade não se faz automaticamente”. Por isso mesmo pensar certo coloca o professor ou, mais amplamente à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta anos vem sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos (FREIRE, 1996; p.30).

Segundo Freire (1987), o professor democrático deve, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do estudante, sua curiosidade, sua insubmissão. Portanto, o educador que possibilita a seu estudante ser cada vez mais criador e mais crítico em seu aprendizado poderá desenvolver neste a curiosidade epistemológica.

A “curiosidade epistemológica” tem papel significativo no processo ensino- aprendizagem, pois segundo Freire (2003, p.78):

Não é a curiosidade espontânea que viabiliza a tomada de distância epistemológica. Essa tarefa cabe à curiosidade epistemológica – superando a curiosidade ingênua, ela se faz mais metodicamente rigorosa. Essa rigorosidade metódica é que faz a passagem do conhecimento do senso comum para o do conhecimento científico. Não é o conhecimento científico que é rigoroso. A rigorosidade se acha no método de aproximação do objeto. A rigorosidade nos possibilita maior ou menor exatidão no conhecimento produzido ou no achado de nossa busca epistemológica.

Para Freire também o diálogo entre professor e estudantes é fundamental para o desenvolvimento da “curiosidade epistemológica”. Para trabalhar a “curiosidade epistemológica” somos desafiados como educadores a criar condições de refletir sobre a própria prática, conscientizando-nos de que o processo de ensinar não é só transmitir conhecimentos, mas sim criar possibilidades para a sua produção e significação.

Por outro lado, a nossa prática e vivência no contexto escolar nos mostra que nos dias de hoje a física escolar distância e afasta os estudantes da ciência e como resultado temos um crescente desinteresse por parte dos estudantes por essa disciplina. Nosso sistema educacional não está distante, portanto de obstáculos apontados por Émile Durkheim quando escreveu sobre o sistema educacional francês, ainda no final do século XIX:

O ensino secundário está atravessando, há meio século, uma crise que ainda não chegou à sua conclusão e parece estar longe disso. […] por toda parte, pedagogos e homens do Estado estão conscientes de que as mudanças ocorridas na estrutura das sociedades contemporâneas, em sua economia interna, bem como nas suas relações externas, necessitam transformações paralelas e não menos profundas nessa parte especial de nosso organismo escolar. […] (Durkheim 1895 apud Gebara, 2001, p. 25).

Apesar do texto de Durkheim ter sido escrito há mais de um século, ele ainda é atual e universal, pois usualmente na escola, o ensino reforça a ideia de uma ciência pronta, acabada e muito acima da compreensão dos “meros mortais”, acessíveis somente à gênios, como Newton ou Einstein. Desse modo, sem intenção, o professor de ciências, muitas vezes, reforça essa visão (LENKE, 1997).

Como já discutimos anteriormente neste trabalho, os livros-textos também podem reforçar essa concepção ao privilegiar uma visão meramente instrumental da ciência. Em sua linguagem simbólica, os manuais didáticos apresentam aos estudantes o paradigma dominante, fazem breves citações históricas aos temas abordados, priorizam

fatos e acontecimentos. Com isso, o estudante em geral não percebe a construção do conhecimento científico, o que pode gerar uma insatisfação e falta de interesse dos estudantes pelas ciências.

Em síntese, podemos inferir que a maior parte dos estudantes vê a ciência como descoberta ignorando todo o complexo processo de seu desenvolvimento. Assim muitos estudantes permanecem com a percepção de que a ciência se resume somente a descoberta de leis e relações matemáticas que regulam o universo.

Defendemos que essa situação pode ser minimizada ao se colocar em prática um dos objetivos do Ensino de Ciências, ou seja, trazer para as salas de aula discussões sobre as práticas do fazer científico, de forma a explorar os limites e as possibilidades desse conhecimento.

Em abril de 2009 o Programa Ensino Médio Inovador da Secretaria de Educação Básica do MEC, ampliou as discussões estabelecendo que a respeito dessa temática:

(...) o Ensino Médio deverá se estruturar em consonância com o avanço do conhecimento científico e tecnológico, fazendo da cultura um componente da formação geral, articulada com o trabalho produtivo. Isso pressupõe a vinculação dos conceitos científicos com a prática relacionada à contextualização dos fenômenos físicos, químicos e biológicos, bem como a dicotomia entre humanismo e tecnologia e entre a formação teórica geral e técnica instrumental (BRASIL, 2009).

Do exposto acima, pretende-se que o estudante tenha condições de adquirir uma cultura científica que lhe permita atuar no mundo contemporâneo de forma consciente e crítica (MATTHEWS, 1994; MCCOMAS, 2008).

Desse modo, o conhecimento da história da ciência pode contribuir para que se reflita sobre o processo de construção do conhecimento científico, como um processo não cumulativo, dinâmico, inacabado e integrado à outras áreas do saber (MARTINS; SILVA, 2006; PEDUZZI, 2001). Segundo Guerra et al (1994, p.36):

É importante chamar a atenção para a questão da neutralidade da ciência.[...] Toda esta visão de neutralidade deve ser questionada junto aos alunos, uma vez que é falsa e inibidora do pensamento científico.

Carvalho e Vannucchi (2000), no mesmo sentido, reportam que a história e a filosofia da ciência podem influenciar de forma positiva a educação científica, pois,

discussões histórico-filosóficas contribuem para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e da argumentação.

Assim, é necessário também que o professor organize o trabalho em sala de aula de modo a estabelecer um ambiente favorável ao diálogo, levando os alunos a elaborarem perguntas que gerem ideias, a novos questionamentos e à reelaboração de significados. Para tal, são necessárias estratégias que possam subsidiar o desenvolvimento da criatividade e do senso crítico. Assim, Sasseron e Carvalho (2011) defendem que o ensino de Ciências deve fazer uso de atividades e propostas instigantes. Segundo as autoras:

É necessário, a nosso ver, desenvolver atividades que, em sala de aula, permitam argumentações entre alunos e professor em diferentes momentos de investigação e do trabalho envolvido. Assim, as discussões devem propiciar que os alunos levantem hipóteses, construam argumentos para dar credibilidade a tais hipóteses, justifiquem suas afirmações e busquem reunir argumentos capazes de conferir consistência a uma explicação para o tema sobre o qual se investiga.

Além disso, análises de narrativas históricas acerca do desenvolvimento da ciência também podem ser úteis para identificar características essenciais dessa atividade humana. Por fim, as autoras argumentam ainda que a história e a filosofia da ciência podem ajudar a desmistificar a ciência por propiciar uma visão mais realista do potencial e das limitações do conhecimento científico, o que é essencial na atual sociedade. Portanto, também o contexto político-social deve ser levado em conta no estudo de Ciências e a análise histórica desses contextos permite esclarecer os conceitos trabalhados em sala de aula, que nem sempre são óbvios na visão do aluno (Amaral, 2003).

Neste sentido, a história da ciência como prática de ensino deve possibilitar reflexões e discussões críticas e argumentativas pelos estudantes.

E, as atividades que têm como eixo norteador um contexto cultural, instrumentalizam os estudantes para compreenderem aspectos que contradizem a visão dogmática do conhecimento pautada em pressupostos segundo os quais a sua origem está somente na observação e experimentação (visão empirista); seu desenvolvimento se dá em um progresso contínuo e linear do conhecimento científico; e o seu funcionamento se legitima pela neutralidade do cientista, portadora de um raciocínio lógico-matemático, que a partir dos dados observados descobre uma teoria.

A nosso ver, narrativas históricas que problematizem os aspectos citados acima, possibilitam que os estudantes percebam o caráter provisório do conhecimento científico. Desse modo, destaca Zanetic (1989) que:

[...] A recuperação da física enquanto uma área que tem muito a contribuir na formação cultural geral do cidadão contemporâneo[...] Ao lado do algoritmo, da aplicação na solução de determinados problemas importantes, (por exemplo, a física das coisas), a história da física oferece o aspecto dinâmico de uma área de conhecimento em evolução e/ou mudança.

No XXI Simpósio Nacional de Ensino de Física (SNEF), realizado em janeiro de 2015 em Minas Gerais, o professor João Zanetic volta a proferir uma palestra intitulada “O Ensino de Física na Sociedade Contemporânea”. Nesta palestra, a história da ciência como elemento problematizador no viés cultural é a base da argumentação de Zanetic. Como fica evidente no trecho de sua fala reproduzido a seguir:

(...) Para tanto, iniciarei esta breve narrativa com trechos do texto De Caelo(Sobre os céus) de Aristóteles (384 -322 AC), escrito em 350 AC, dedicado às suas propostas cosmológicas e astronômicas. Se pensarmos num

ensino de física que busque mostrá-la como uma construção cultural com

rica dinâmica de ideias, creio que é salutar citarmos alguns trechos bem interessantes, mesmo para um jovem curioso dos nossos tempos (...) Notamos, assim, como um interesse por temas cosmológicos, que ganharam notoriedade tem uma longa história, se nos basearmos, por exemplo, na concepção de recorrência histórica de Gaston Bachelard (...).(ZANETIC 2015, p. 6, grifo nosso).

Como já explicitado, ao longo do presente texto, defende-se neste trabalho que a história da ciência no ensino de ciência é um elemento fundamental para uma educação cientifica cultural. O trecho extraído de Matthews (1995) e reproduzido a seguir também sintetiza muitas das ideias defendidas por nós:

A tradição contextualista assevera que a História da Ciência contribui para o seu ensino por que: (1) motiva e atrai os alunos; (2) humaniza a matéria; (3) promove uma compreensão melhor dos conceitos científicos por traçar seu desenvolvimento e aperfeiçoamento; (4.,) há um valor intrínseco em se compreender certos episódios fundamentais na História da Ciência – a Revolução Científica, o darwinismo etc.;(5) demonstra que a Ciência é mutável e instável e que, por isso, o pensamento científico atual está sujeito a transformações que (6) que se opõem a ideologia cientificista; e, finalmente, (7) a história permite uma compreensão ,ais profícua do método científico e apresenta os padrões de mudança na metodologia vigente (MATTHEWS, 1995, p. 172-3).

Vimos também que muitas vezes o material histórico disponível para os professores, em livros didáticos e paradidáticos, reforça concepções empírico- indutivistas da ciência. Por isso o historiador da ciência e Físico Roberto Martins ao

analisar episódios que reforçam visões caricatas ou empírico-indutivistas, como o caso A Maçã de Newton (MARTINS. 2006b) e O episódio de Arquimedes e a coroa do rei (MARTINS, 2000a), nos alerta para o perigo de se disseminar a ideia de uma ciência constituída de verdades irrefutáveis e “grandes gênios”.

Referenciados em Allchin (2004), Martins (2006), Vidal e Porto (2012), entre outros autores, defendemos que seria mais profícuo trabalhar na escola um único estudo de caso, de forma mais aprofundada, do que na perspectiva de uma abordagem superficial com um amontoado de datas e nomes.

Neste aspecto vemos de forma crítica embora a Proposta Curricular de 1998 do Estado de São Paulo e o Guia do Programa Nacional do Livro Didático, pois embora tenham fundamentados em perspectivas historiográficas recentes, seus materiais didáticos propostos para uso de professores e estudantes persistem em narrar uma história da ciência linear e cumulativa. Além disso, estão repletos de anacronismos que não contribuem para uma compreensão conceitual mais crítica da ciência (HOTTECKE, SILVA, 2011; MARTINS, R. 2006 a).

Por outro lado, por mais criteriosa que sejam as propostas para a abordagem da história da ciência, se os professores não estiverem preparados para trabalhar com tais propostas, elas pouco poderão contribuir para a educação científica crítica.

A respeito da aproximação entre a História da Ciência e a educação científica, ainda é preciso destacar que, apesar da relevância da aproximação entre História da Ciência e Ensino não ser um consenso (RUFATTO; CARNEIRO, 2011, p. 30), ela tem ganhado adesão crescente de educadores e pesquisadores da área de Ensino de Ciências.

Na próxima seção apresentamos uma síntese de alguns argumentos a favor da história da ciência, bem como desafios e argumentos favoráveis e contrários a sua inserção nas aulas de ciência.