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Em 1922, Lukács escreveu no seu famoso “História e Consciência de Classe” sobre a constatação de que a lei da produção capitalista, a fragmentação do sujeito e do objeto, estava se estendendo para cobrir todas as manifestações da vida em sociedade (LUKÁCS, 1971). Essa idéia parece se concretizar também no que se refere à esfera da religião, na medida em que, como mostrado acima, a força determinativa da tradição diminui e se instaura uma situação na qual os indivíduos se encontram cada vez mais livres para, inclusive em termos de escolha religiosa, negociar com os padrões e modelos culturais que lhe são propostos, numa sociedade caracterizada pela velocidade com que as informações circulam, colocando as diversas instâncias sócio- político-culturais em contato crescentemente mais intenso.

O declínio da força da tradição sobre os indivíduos das sociedades foi, inclusive, uma constatação e ao mesmo tempo uma bandeira dos representantes do que ficou convencionado chamar de projeto da modernidade. O próprio Marx, por exemplo apresenta a idéia de mercado como uma característica dos tempos modernos, somente possível num momento da história da humanidade em que os níveis da abstração existentes na vida social e outras características relativas a uma organização da sociedade na qual os laços de comunidade, de pessoalidade, de informalidade iam sendo substituídos e se estabelecia progressivamente um processo de produção massivo, impessoal e de larga escala, no qual os indivíduos atuariam sob regras determinadas cada vez mais pela racionalidade econômica e cada vez menos pela

tradição.

Nesse novo modelo, a diminuição do peso da tradição é observada pelas mudanças tanto no que se refere ao nível da produção quanto ao do próprio consumo, na medida em que os laços decorrentes das relações pessoais são quebrados e os produtos não são produzidos para nenhuma pessoa especificamente, mas para serem oferecidos no mercado, num modelo no qual, a rigor, nem o produtor nem o consumidor tem um nome, e são mapeados socialmente apenas em termos de poder aquisitivo.

No que se refere à religião, a introdução da lógica de mercado associa-se com os processos de secularização, tendência social observada em conjunção com a gradual disseminação do projeto europeu da modernidade no mundo ocidental. Em termos gerais, esse fenômeno apontava para a perda gradativa da importância da religião na determinação da vida social e para o questionamento de suas estruturas de plausibilidade, o que implicou na diminuição da eficácia simbólica do seu sistema produtor de sentido para o mundo, que deveria a partir daí concorrer em pé de igualdade com outras propostas simbólicas pela preferência dos indivíduos na sociedade.

Em termos específicos, as organizações religiosas perderam uma posição confortável de hegemonia simbólica e tiveram que enfrentar a competição livre com outras agências não religiosas de produção de explicações do mundo e das coisas, desta feita sem o poder de uma tradição cultural que lhe conferisse um argumento inquestionável de autoridade, o que alguns autores consideram o delineamento de uma situação de mercado, aqui considerada no nível mais amplo do sistema social.

No que se refere à religião como subsistema social, alguns sociólogos americanos, liderados por Rodney Stark, George Finke e Laurence Iannaccone, propuseram analisar as instituições religiosas sob a ótica de mercado, definindo-as como fornecedores de produtos para consumo religioso, atuando sob regras especificas, sendo sua abordagem denominada de Paradigma do Mercado Religioso.

Por agora, é suficiente dizer que, para esses autores, os níveis de regulação ou de abertura do mercado têm conseqüências profundas sobre os níveis de mobilização religiosa dos indivíduos em cada sociedade. Duas de suas hipóteses básicas que consideramos aqui são as seguintes: (1) existe uma relação positiva direta entre o grau de regulação do mercado religioso e os níveis de mobilização religiosa; (2)os níveis de mobilização religiosa são determinados não por mudanças na demanda dos consumidores, mas por mudanças nas regras sob as quais operam os fornecedores (FINKE e STARK, 1992 e seguintes; IANNACCONE, 1992 e seguintes).

Outra linha de estudos que relacionam religião e aspectos econômicos é formada pelo conjunto de estudos produzidos sobre a questão da mercantilização da religião e daqueles realizados sobre o comportamento econômico de grupos religiosos específicos. Esta última corrente tem como obra-modelo “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (WEBER, 1987). A outra vertente de trabalhos destaca a análise dos processos pelos quais a religião se transforma numa mercadoria e as mercadorias adquirem um aspecto sagrado, feita por Mike Featherstone (FEATHERSTONE, 1991 e outros), incluindo ainda outros autores que estudam

especificamente a exploração econômica da atividade religiosa.

Alguns autores tem escrito a respeito das transformações da esfera religiosa no Brasil em mercado religioso. Por exemplo, Prandi (1996) analisando a individualização da religião como uma conseqüência da secularização e sua transformação em um item para consumo, considera que é preciso pensar o fenômeno sob a ótica da lógica mercadológica. Ele afirma que

Desde que a religião perdeu para o conhecimento laico-científico a prerrogativa de explicar e justificar a vida nos seus mais variados aspectos, ela passou a interessar apenas em razão do seu proveito individual. Como a sociedade e a nação não precisam dela para nada essencial ao seu funcionamento, e a ela recorrem apenas festivamente, a religião foi passando pouco a pouco para o território do indivíduo. E desta para a do consumo, onde se vê agora obrigada a seguir as regras do mercado. (PRANDI & PIERUCCI, 1996:260)

Na mesma linha, Brandão (1994:28) afirma que é patente o trânsito da situação de hegemonia religiosa da igreja católica para uma situação de campo religioso regida pela lógica e retórica do mercado de bens simbólicos.

Um último exemplo é o de Negrão (1994), que chama a atenção para a inexorabilidade da lógica de mercado decorrente do pluralismo religioso, comentando que a legitimação concedida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil à prática de cura e ao misticismo, elementos da proposta da Renovação Católica Carismática, no início da década de 90, recusada anteriormente, enquanto era hegemônica a proposta de um catolicismo mais politizado, não decorre da ambigüidade das estratégias institucionais oportunistas. Essas mudanças explicam-se pela imposição do princípio de preferência do consumidor, vigente no contexto religioso pluralista e de mercado (conf. NEGRÃO, 1994:133).

Neste nosso trabalho pretendemos utilizar a idéia de mercado na análise do fenômeno da religião no Brasil, construindo algumas interpretações da história religiosa recente a partir da utilização do imaginário mercadológico, destacando a primeira das linhas apresentadas - mesmo que em alguns momentos possamos considerar os aspectos mercantilísticos na medida em que se relacionem com compreensões laterais do nosso objeto de estudo -, propondo um pequeno desenvolvimento do Paradigma do Mercado Religioso com o objetivo de possibilitar sua utilização na explicação da dinâmica da esfera religiosa.

Além disso, são pontos da nossa proposta: (1) avaliar a hipótese de que maiores níveis de competição entre propostas de religiosidades correspondem a maiores níveis de participação religiosa; (2) verificar a relação entre o nível de concorrência no mercado e a atitude dos líderes organizacionais em relação à realização de transformações nas práticas e discursos religiosos; (3) observar a maneira pela qual a construção social da religião como mercadoria, ou como atividade secundária (para momento de lazer, por exemplo) determina a forma de consumo e o comportamento da demanda em relação a variáveis tais como o ‘compromisso’ e a ‘participação’; a ‘exclusividade’; a ‘ dedicação de tempo e de outros recursos’, dentre outras.

Uma das hipóteses com as quais trabalhamos é a de que um fator de alto poder explicativo das mudanças e transformações nos discursos e práticas religiosos seria a necessidade que as organizações religiosas têm de adequar os produtos aos imperativos de uma demanda dos consumidores que exerce tanto mais poder determinante da direção das mudanças, quanto maior o nível de competição num dado mercado.

Em termos gerais, os objetivos do nosso trabalho seriam os seguintes: (1) verificar de que maneira a competição entre organizações religiosas influencia a dinâmica do campo religioso no Brasil em geral e na Paraíba especificamente; (2) analisar de que maneira a demanda religiosa pressiona as organizações religiosas a transformar seus discursos e práticas. A estes somam-se os específicos, a saber: (1) observar a relação “NÍVEL DE COMPETIÇÃO ENTRE ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS” X “NÍVEL DE PARTICIPAÇÃO RELIGIOSA”; (2) analisar de que maneira a concorrência com outras propostas de religiosidade é encarada pelos líderes religiosos; (3) utilizando o modelo mercadológico, interpretar alguns aspectos centrais da história recente do campo religioso no Brasil.

Para atingir esses objetivos acima mencionados, fizemos um estudo que definimos como sendo correlacional e comparativo, na medida em que (1) pretendemos observar a existência ou não existência de duas correlações principais, a saber, entre o nível de competição de um determinado mercado religioso e o nível de participação religiosa no mesmo; e entre o nível de competição citado e a atitude dos líderes de organizações religiosas em relação à mudança nos seus discursos e práticas; (2) propomos uma comparação entre mercados religiosos que apresentam alto, médio e baixo níveis de competição entre fornecedores de religião.

Por outro lado, também podemos classificar nosso estudo de explicativo, na medida em que temos igualmente o objetivo de analisar a influência do nível de concorrência entre organizações religiosas pela preferência dos fiéis sobre sua atividade e sobre a atitude dos seus líderes religiosos em relação à transformação nas práticas e discursos religiosos, e suas conseqüências sobre a dinâmica do campo religioso.

A amostra com a qual trabalhamos foi duplamente composta:

1) através do sorteio de 16 municípios da Paraíba, sendo 2 com alto nível de competição (ANC = aqueles nos quais mais de 8 organizações estão em operação); 9 com médio nível de competição (MNC = aqueles nos quais existem de 4 - 8 organizações atuando) e 5 com baixo nível de competição (BNC = aqueles nos quais existem de 1 - 3 organizações em atividade);

2)pela escolha de líderes religiosos nesses municípios, com os quais fizemos entrevistas semi-estruturadas. Elaboramos a classificação dos municípios em termos de níveis de competição através da análise dos censos governamentais e dos dados municipais referentes aos registros de entidades religiosas.