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As organizações religiosas existem em relações entre si e como um conjunto que se relaciona com os diversos sistemas existentes numa sociedade. O espaço social ocupado pelas instituições religiosas é a resultante de todas as articulações que estas mantém com as outras congêneres e como sistema semi-autônomo que compõem, com os outros sistemas.

Dessa maneira, as transformações pelas quais os modelos de religiosidade passam sofrem a influência de duas conjunturas, inter-relacionadas, uma no nível interno do campo religioso e outra na sociedade em que elas existem.

Uma resultante desse raciocínio é que para um entendimento adequado da religião, é necessário considerar o contexto social no qual ela existe. Segue-se também que um estudo cuidadoso da esfera da religião pode dar pistas do que acontece na sociedade inclusiva. Não se trata de reduzir a religião a um mero reflexo da sociedade na qual ela ocorre. A esfera da religião guarda um ritmo que lhe é próprio, o que não implica que possamos conceber a dinâmica das práticas e discursos religiosos apenas como o fruto da iniciativa e decisão dos agentes religiosos. Aceitar isso seria reconhecer que o funcionamento da esfera da religião é completamente autônomo, o que implicaria, inclusive, na invalidação de qualquer análise sociológica do fenômeno.

É exatamente a partir do reconhecimento da idéia de que o macro-ambiente marca o sistema da religião que se torna possível estudar sociologicamente a religião, sendo o conhecimento produzido tanto mais apurado quanto mais se der conta dos aspectos do seu contexto social inclusivo. Pensando na direção inversa, de maneira semelhante, o estudo da dinâmica da esfera da religião como um resultado da influência das tendências que prevalecem nas sociedades pode produzir a abertura da nossa visão a respeito de aspectos do sistema social mais geral.

Utilizando o Paradigma do Mercado Religioso, trabalhamos com dois princípios básicos, relacionados com a determinação social da dinâmica das transformações das práticas e discursos religiosos. O primeiro deles, é o reconhecimento da importância dos processos de secularização - que acontecem em ritmos e com feições também dependentes do conjunto de condições sócio-culturais de cada sociedade -, que resultam na necessidade de que a religião entre na concorrência com outros sistemas de significação do mundo. Assim, os abalos nas estruturas de plausibilidade da atitude religiosa abriram as portas de sua entrada no mercado de opções dentre as quais os indivíduos escolhem para dedicar seu tempo e outros investimentos, o que implica em modificações significativas na natureza de negociação entre o subsistema da religião e os outros sistemas da vida social.

O segundo, mais relacionado com a dinâmica interna do campo da religião, refere-se ao fato de que o aumento dos níveis de competição entre organizações religiosas contribuem decididamente para um considerável aumento do poder da demanda dos consumidores na determinação da dinâmica das mudanças que as práticas religiosas e discursos religiosos atravessam. Quanto maior a competição entre modelos de religiosidade pela preferência dos indivíduos num determinado espaço social, maior

será a influência das características hegemônicas nas sociedades inclusivas sobre a moldagem dos produtos religiosos e da atividade das organizações religiosas.

A abertura da esfera da religião à influência do contexto mais amplo em que ela ocorre, - de um lado pela perda do poder de determinar o mundo, e de outro pela necessidade que as organizações têm de, em contextos de competição, atender a uma demanda de consumidores que reflete as características do meio ambiente social -, torna o estudo de sua dinâmica numa oportunidade de conhecimento dos traços e tendências que ganham hegemonia nas sociedade inclusivas. São significativas as declarações registradas nas entrevistas dos padres do estado sobre a pressão da demanda no sentido de celebrações mais místicas e por sermões menos politizados - prontamente atendida por uma Igreja crescentemente preocupada em garantir e expandir os espaços no campo religioso - numa conjuntura social em que prevalece o desinteresse pela política. Outro dado significativo em termos de articulação entre as condições mais gerais de organização da sociedade e a dinâmica da esfera da religião é o sucesso das religiosidades que enfatizam a possibilidade de trocas mágicas com o sobrenatural, - a estratégia do "toma lá - dá cá"), nesses tempos de ascensão do individualismo imediatista.

A idéia de mercado está relacionada com a religião, em termos de sistema social mais geral, portanto, pelo fato de que assistimos à mudança de status da atitude e das práticas religiosas, - no sentido da sua perda gradual da centralidade na vida contemporânea -, que passam a concorrer com outras atitudes e atividades pela preferência dos indivíduos na sociedade. Isso determina algumas mudanças na natureza dos modelos de religiosidade e na atividade das organizações religiosas, na medida em que devem ser disponibilizados para o consumo seguindo as mesmas regras às quais outras mercadorias seculares se submetem no processo de seu oferecimento no mercado.

Os modelos de religiosidade sempre tiveram como pressuposto uma demanda. Isso não é novo. O que parece ser objeto de transformações é o significado e a importância da religião na vida social. O processo de erosão de sua importância e a conseqüente necessidade de competir em pé de igualdade com outras opções pela preferência das pessoas, coloca a religião no âmbito do consumo, fenômeno crescentemente importante nas sociedades contemporâneas.

Essa nova situação marca tanto a lógica da produção dos 'bens de salvação' em termos de adoção de uma visão mais mercadológica, que altera a sua moldagem tanto intrínsicamente, - como, por exemplo, nos casos de "desetnização" no Candomblé, levada a cabo com o objetivo de produzir uma "desterritorialização" que possibilite, pela orientação para a sociedade abstrata200, uma ampliação das fatias de mercado atingíveis; e também no caso da assemelhação entre pentecostais e católicos carismáticos, que promovem a ascensão da doutrina dos dons do Espírito Santo na Igreja, com o objetivo de deter a perda de fiéis católicos para religiosidades mais emotivas e mágicas - quanto em relação à forma pela qual os indivíduos se comportam

200 À Gesellschaft, em termos de Weber, à "Sociedade" em termos de Tönnies e à sociedade abstrata, ao

em relação a variáveis tais como a afiliação religiosa formal e os tipos de participação efetiva.

No que se refere ao campo interno ao sistema da religião, podemos falar em mercado religioso no sentido em que existem várias organizações religiosas oferecendo produtos para o consumo e competindo pela preferência dos consumidores, utilizando na concorrência princípios semelhantes àqueles observados nos mercados de itens seculares. O caráter de mercado ligado à idéia de concorrência é secular, já que os protestantes marcam presença como competidores no Brasil desde o final do século XIX, mas se torna mais evidente no país na medida em que a tradição do catolicismo vai diminuindo seu poder de determinação da escolha religiosa individual - inclusive no bojo dos processos de secularização em curso na sociedade brasileira -, e dos processos de ascensão da mentalidade de consumo, que atinge todos os campos, e a Igreja Católica tem sua posição de monopólio questionada, tornando-se nacionalmente visível a concorrência com outros modelos de religiosidade201.

Sem pretender aqui fazer uma exposição exaustiva sobre a teoria da concorrência202, vale a pena destacar alguns pontos sobre o tema, já que vimos, recorrentemente neste trabalho, falando dele em relação à dinâmica de transformações da esfera da religião no Brasil. A concorrência deve ser entendida como um processo seletivo pelo qual as decisões relativas aos produtos oferecidos aos consumidores - no caso, discursos e práticas religiosas -, devem necessariamente passar, para dar aos seus produtores condições de reprodução no mercado. As características dos processos seletivos variam de acordo com as condições do mercado. Uma das particularidades importantes deste que estudamos, - o mercado religioso -, é que a possibilidade de cada concorrente elaborar estratégias visando melhor desempenho, resulta na ampliação da adesão de fiéis. Para que isso aconteça, é fundamental que os concorrentes se diferenciem dos seus rivais, mesmo em processos de assimilação, de modo a prevalecer sobre eles. Assim, no âmbito do mercado religioso, a concorrência consiste fundamentalmente na busca de vantagens competitivas que sirvam de trunfos para a atração do maior número possível de fiéis. Em situações de competitividade alta, essa busca deve ser constantemente renovada, na medida em que todos os competidores procuram obter novos trunfos, ou no mínimo, tentar anular as vantagens alheias. Assim, quanto maiores os níveis de competição num determinado mercado religioso, maior tende a ser o dinamismo dos discursos e práticas religiosas.

As regras da competição nem sempre são explícitas. Os critérios de seletividade praticados pelos consumidores de religião são, na maioria das vezes, incógnitas que algumas organizações tentam desvendar, inclusive, através de estatísticas e de projeções de especialistas do campo religioso e da área de marketing203. Uma vez

201 E com outras agências atribuidoras de sentido, como no caso do período pós 1964, período em que o

"catolicismo de esquerda", utilizando a estratégia das CEBs e da Teologia da Libertação, concorria contra movimentos da esquerda, que lutavam com a Igreja pela "direção" daquele momento histórico (conforme Motta, em carta ao autor, em julho de 1999).

202 Para uma resenha da noção de concorrência nas principais linhas da teoria econômica, ver POSSAS

(1989). É interessante também consultar de Possas, Sílvia (1999), Concorrência e competitividade: notas sobre estratégia e dinâmica seletiva na economia capitalista. São Paulo: Hucitec.

203 Berger (1985) menciona o crescente uso de pesquisas de mercado pelas organizações religiosas nos