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3 6 O AUMENTO DA COMPETIÇÃO E A ' NOVA EVANGELIZAÇÃO '

Em meados de 1995, no Recife, entrei num templo católico para assistir a uma missa e ouvi um padre falando a respeito da necessidade de cada um se transformar num missionário. Depois de apresentar alguns exemplos padrões retirados da Bíblia sobre a ação missionária de vários 'servos do Senhor" ele terminou o sermão anunciando o início próximo de cursos de capacitação para fiéis interessados na participação na atividade de evangelização de casa em casa. O padre estava falando de um novo estilo de evangelização que a Igreja estava iniciando a propor, a "Nova Evangelização", que repete o modelo evangélico de multiplicação a partir da responsabilidade missionária individual.

Além das transformações já citadas acima, ligadas aos processos de racionalização das atividades visando à maximização dos resultados, vamos assistir, na última década do século XX, ao surgimento de uma atitude diferente da Igreja no que diz respeito à evangelização. A nova conjuntura, já caracterizada em termos de perda do poder da tradição na determinação das escolhas individuais no campo da religiosidade e pela intensificação da luta entre propostas de religiosidade pela adesão das pessoas, coloca

para a Igreja Católica a necessidade inédita de preocupar-se com os números relativos à afiliação religiosa.

O discurso sobre a evangelização do mundo, que sempre significou outra coisa diferente da preocupação com a conquista de fiéis, ou com o número de freqüentadores das missas e participantes nas atividades eclesiais, agora tem que abordar a necessidade de fazer frente ao avanço de outros modelos de religiosidade no cenário do mercado religioso nacional, dando origem à chamada "Nova Evangelização"196.

Depois de todo esse tempo desfrutando de uma posição semi-monopolista dentro do mercado, a Igreja Católica e seus agentes principais - os padres -, são chamados a enfrentar uma incômoda situação de disputa pelos fiéis. Enquanto os pastores evangélicos encaram com total naturalidade a atividade de busca de novos fiéis, como veremos posteriormente, encontramos vários indicativos do desconforto dos padres nessa nova conjuntura nas respostas à questão a respeito das estratégias de proselitismo utilizadas. Vejamos algumas das falas:

Olha, a palavra proselitismo é um pouco chocante, não é? Nós trabalhamos mais com a disponibilidade. As pessoas se apresentam e a gente sempre fala a partir do ponto de vista da liberdade. Esse negócio de até ficar fazendo oferta como se religião fosse uma mercadoria, isso não só fere a mim, como também entristece. (...) Quem gosta de fazer proselitismo é a Renovação Carismática. Ela ainda vai levar muita cacetada para aprender, porque ela tem que entrar no pensamento da Igreja do Brasil e não ser uma Igreja paralela, que faz proselitismo. (Padre João Saturnino de Oliveira, paróquia de Santa Luzia)

"Olhe, proselitismo é uma palavra feia para a Igreja Católica, não é? Nossa igreja não faz proselitismo."(grifo nosso. Padre Acírio, paróquia do Sagrado Coração de Jesus, Campina Grande)

Aqui não temos Renovação carismática. Não temos esses movimentos, vamos assim dizer, pentecostais, como é o caso dos carismáticos, que tem uma grande influência na Igreja hoje, não é? (padre José Ronaldo, da Paróquia de Taperoá, quando perguntado a respeito das estratégias de proselitismo)

Olha, a Igreja não faz proselitismo. Não é uma seita, que está precisando de proselitismo. A Igreja está acompanhando as comunidades, não é? E não se importa com proselitismo. Não conquistamos fiéis. Não é nossa intenção. (Monsenhor Luiz Pescarmona, Paróquia de Araçagi)

Eu não digo proselitismo. Nós da Igreja Católica não somos proselitistas. Temos o cuidado para não fazer da religião um comércio, nem um 'ôba, ôba'! Não estamos de porta em porta, nas praças. Não temos proselitismo, temos uma conscientização. (frei Severino Batista de França, da paróquia de Catolé do Rocha, 54 anos)

196 As linhas gerais do novo plano de evangelização estão contidas no No. 54 da série Documentos da

Na verdade não tem proselitismo, porque, tradicionalmente, todo mundo é católico. Acho que nunca trabalhamos estratégias de proselitismo porque todo mundo era católico. O que acontece é tentar re-evangelizar as pessoas que são católicas ao menos no papel. Isso se tenta fazer e o meio principal é, na verdade, o ministério da música. Estamos tentando chamar a atenção, principalmente da juventude, através da música. Há dois anos trabalho com jovens nesse município de Camalaú. Tem cerca de 100 jovens envolvidos nesse trabalho. (padre João Jorge, paróquia de Camalaú)

Nas falas acima, podemos ver pelo menos três atitudes típicas na reação dos padres a respeito do proselitismo e da própria competição entre as organizações religiosas: a primeira, a negação da competição, o que pode ser compreendido à luz da posição que historicamente a Igreja tem ocupado no mercado religioso no Brasil. Mesmo depois da separação oficial do Estado, a Igreja Católica continuou durante muito tempo como uma liderança hegemônica isolada. Isso produz um certo estranhamento em relação a uma situação em que ela tem que admitir a necessidade de "sujar as mãos" e tomar providências para evitar que os pentecostais e neo-pentecostais atraiam suas "ovelhas". Um exemplo dessa posição é a fala do padre Valdir Campelo, da paróquia de Cabaceiras:

A Igreja Católica sempre foi hegemônica nessa região e procura não fazer proselitismo. Não vive em busca de novos adeptos. (...) Não trabalhamos nessa linha. Estamos trabalhando com os fiéis católicos.

A segunda, a negação da prática do proselitismo pela alegação de que o que a Igreja está fazendo não é lutar para conquistar novos fiéis e sim trabalhar pela "volta" ou pelo "compromisso" por parte dos católicos que estão "afastados". A rigor, isso não seria proselitismo porque significaria trabalhar no âmbito do próprio "rebanho", como podemos ver na fala do padre Rômulo Remígio, da paróquia de Aroeiras:

A palavra proselitismo é terrível pra gente. Prefiro dizer assim, 'o jeito de atrair as pessoas, de conquistar o coração das pessoas, de fazer com que as pessoas se sintam ou assumam sua condição de católicos'.

A terceira, a localização do proselitismo nos "outros", no caso, na Renovação Carismática ou nos evangélicos. O que observamos é que os carismático realmente trabalham com a idéia de "conversão", num padrão bastante semelhante ao dos evangélicos, o que envolve, entre outros elementos, uma ruptura com uma identidade e adoção de outra, e a aceitação de um padrão ético diferenciado. Isso poderia justificar a idéia de que "eles" é que são proselitistas. Na prática, porém, a "Nova Evangelização", partindo do pressuposto de que o padrão do católico nominal é muito próximo do não-católico, propõe uma atitude crescentemente agressiva de todos os setores da Igreja, no sentido de produzir uma reação ao avanço dos concorrentes, o que se traduz em estratégias de envolvimento de fiéis, quer seja através do estímulo à participação nas atividades das inúmeras pastorais e equipes, quer seja através do ministério da música, de atividades esportivas, dentre outras.

Uma variação da segunda atitude apareceu na fala de outros padres, que consiste na negação da prática do proselitismo e o simultâneo anúncio de atividades de

proselitismo. Por exemplo, no discurso do padre Assis Meira, da paróquia de Picuí ele afirma não fazer proselitismo e depois anuncia duas estratégias "missionárias". Ele justifica sua opinião dizendo que, a rigor, ela não está buscando converter ou conquistar novos fiéis, mas atingir, despertar os que já se declaram católicos. Isso tem uma certa lógica, na medida em que grande parte da população é, em termos nominais, católica. Todavia, em termos organizacionais, se na prática isso se traduz em falta de compromisso institucional, numa participação irregular nas celebrações e atividades da igreja, e também no seu sustento, podemos entender a preocupação "missionária" que aparece nas falas, apenas aparentemente contraditória. Vejamos trechos das entrevistas que apontam para essa atitude:

Rapaz, a gente não tem essa atividade (de proselitismo) aqui muito, assim com muita ênfase. A paróquia aqui é um pouco conservadora, de modo que a gente não tem construído muito ainda essa ação mais missionária em busca do pessoal. (...) A gente tem aí programada para o mês de junho e agosto uma extensa campanha missionária aqui em Picuí, e também um pouco de programação nos colégios para ver se atingimos mais esse pessoal que está afastado da Igreja. Mas assim no sentido mesmo de proselitismo, de ir em busca, de lutar para aumentar o número de fiéis que participam, a gente está meio recalcado nisso. (padre Assis Meira, paróquia de Picuí)

Vale ressaltar também que o uso das expressões grifadas (por nós) indicam que há uma intenção que ainda não se realizou por causa do 'conservadorismo', ligado a um modelo de religiosidade adequado para uma conjuntura já ultrapassada. Vejamos outro exemplo, onde encontramos inclusive o uso de uma linguagem anteriormente associada com o universo da prática dos evangélicos ('proclamar', 'aceitar', 'de casa em casa'):

A paróquia não faz proselitismo. A paróquia proclama o evangelho e aceita quem realmente se sente livre para aceitar a fé em Jesus Cristo. (padre da paróquia de Monteiro)

'Proselitismo' me parece estranho, porque a gente não usa proselitismo para conquistar fiéis de maneira alguma. (...) Os fiéis vêm de forma espontânea. Agora, nossa paróquia tem, assim, uma característica de alegria e um bom acolhimento. Nós primamos por isso. Temos uma equipe de recepção e de acolhida. As pessoas ficam distribuídas na frente da igreja, às portas, nas calçadas. Algumas cuidam do estacionamento, zelando pelos carros, cuidando deles durante a celebração. Outras ficam às portas recebendo as pessoas idosas. Também as celebrações têm uma característica que é muito forte de alegria, de festa mesmo. Não são coisas que a gente faz para conquistar fiéis. É o nosso estilo e as pessoas na paróquia se identificaram bastante e isso vem, digamos assim, dando bons resultados. Isso faz com que as pessoas gostem, participem e até convidem outros também.(padre Vanildo, paróquia de Nossa Senhora de Fátima, Campina Grande)

Geralmente é nas cidades grandes que se encontra mais essa questão do proselitismo. Por aqui o pessoal tem uma religião mais definida.(...) (sobre novas estretégias para conquistar fiéis) Estamos realizando

trabalhos missionários, que consistem na visita de casa em casa para reanimar famílias afastadas, chamando-as à participação. (padre Espedito Fernando, paróquia de Teixeira)

O projeto 'Rumo ao Novo Milênio' está propondo atitudes novas em 4 dimensões: a do serviço; a do diálogo; a da comunhão eclesial; e a do anúncio. Por que essas 4 dimensões? Para atingir os 'afastados'. A Igreja está adotando como ponto de partida atingir aos irmãos que estão distantes. E essa atitude é eminentemente missionária. (padre João Saturnino, Santa Luzia, que afirmou, como registrado acima, que proselitismo é 'coisa' da Renovação Carismática.)

Já na fala de padre Ribamar, da Catedral de Campina Grande, embora haja o indicativo do mal-estar com a idéia do proselitismo, podemos também encontrar uma atitude mais assumida em termos de uso de estratégias para conquistar/atingir fiéis:

Eu não sei bem se a palavra para nós é exatamente proselitismo. A nossa intenção é juntar as pessoas para que elas possam viver melhor, ter uma comunhão maior com Deus e com a comunidade. De qualquer modo temos tentado atingir a juventude e os casais. Claro que, por extensão, também conseguimos um contato com as crianças. Se você faz um trabalho com a família, naturalmente os jovens e as crianças serão envolvidos. A família, é, portanto nossa principal estratégia.

As dificuldades em relação ao proselitismo encontram-se também associadas com atitudes ambivalentes em relação ao ambiente de pluralismo e de competição. A tendência mais forte encontrada foi a de negar a competição. Essa "vergonha" em admitir a lógica do mercado parece estar ligada ao fato de que não é uma posição comum reconhecer que nessas coisas de religião se exerce, cada vez com mais intensidade - como também na âmbito de outras atividades consideradas de certa maneira como sagradas, como a produção de conhecimento na academia (o que não impede que professores e departamentos promovam articulações e movimentos velados de aprovação/reprovação de teses, inclusão/exclusão de artigos, dependendo do grau em que os candidatos, autores se filiem ou não aos cânones das diversas "igrejas") - a lógica da concorrência.

No caso dos padres, alguns trabalham com uma idéia, resultante da fixação nas fases anteriores da história da religião no Brasil, de que a Igreja Católica é tão poderosa que não admite concorrentes. De acordo com essa visão, o que estaria acontecendo na verdade é que as outras igrejas trabalhariam no espaço que os católicos não conseguem atingir, não havendo, porisso, uma competição propriamente dita, mas uma complementação. Essa posição implica, por um lado, no reconhecimento da impossibilidade de um monopólio religioso perfeito, e, por outro, numa certa negação da conjuntura mais recente do mercado religioso, que aponta para a intensificação da concorrência e para um descenso dos números referentes, inclusive, à declaração nominal de catolicismo. Vejamos algumas falas nesse sentido:

Ninguém compete com a Igreja. (...) O povo é tanto que não conseguimos alcançar toda a multidão que está aí. Trabalhamos muito, nos organizamos, falamos, anunciamos, mas não conseguimos dar conta da

multidão de pessoas. Então, cabe, tem vaga para todos. (Monsenhor Luiz Pescarmona, Araçagi).

(...) porque não estamos preocupados em trazer, em arrancar gente de outras associações religiosas para nossa igreja. Não estamos preocupados com isso até porque nem necessitamos disso. Estamos preocupados em ajudar os católicos, que, às vezes, estão afastados por diversas situações, a se sentirem, católicos novamente. (padre Rômulo Remígio, paróquia de Aroeiras)

No caso do padre Espedito Fernando, da paróquia de Teixeira, a ambivalência é evidente. Se por um lado ele disse não se preocupar com a competição, quando perguntamos a respeito das mudanças que têm havido no papel do padre dentro da instituição, ele declarou:

Vou ter que procurar novos métodos, novas maneiras, sobretudo para lidar com essa situação muito pluralista.

Dos entrevistados apenas uma minoria assumiu uma atitude de desconsideração para com as mudanças no campo. Um dos que apresentaram essa postura foi o padre Paulo Roberto de Azevedo, da paróquia do Congo, onde existem apenas três modelos religiosos em competição - o que pode influenciar também, de certa maneira, esse tipo de atitude -, como vimos em algumas de suas falas que se seguem:

Pouco se me dá essa estória de competição. (...)Olha, eu não me incomodo com o pluralismo não, porque o que a gente vê é o seguinte: a fé do povo é muito pouca. Hoje está aqui, amanhã passa para a Assembléia de Deus, no outro dia já está em outra igreja. Assim, não me incomodo muito com esse pluralismo religioso, porque o povo não tem consistência. (...) Não tenho estratégias de proselitismo porque não me dou muito com essas novidades. (padre Paulo Roberto de Azevedo, Congo)

A preocupação com a competição e com o pluralismo remete a ação das organizações religiosas para a necessidade de concentrar esforços no sentido de fornecer serviços religiosos que se adeqüem ao máximo à demanda dos consumidores. É sobre isso que passamos a discutir.