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CAPÍTULO 1: DO ANTIGO REGIME À REFORMA DO DIREITO EUROPEU DA CONCORRÊNCIA

2. OS OBJETIVOS DO DIREITO DA CONCORRÊNCIA

3.2. De Paris a Roma

3.3.2. A “idade imperial” e a expansão dos objetivos da defesa da concorrência

Confrontada pela crescente paralisia institucional187, e confortada por um

Tribunal de Justiça disponível para a apoiar no alargamento dos meios de atuação da Comunidade188, a Comissão encontra na aplicação das regras de

concorrência um instrumento de política económica, prosseguindo assim outros objetivos para além da integração dos mercados.

Com efeito, no Acórdão Metro, de 1977189, o Tribunal deu razão à

Comissão num caso em que o acesso de uma empresa a um sistema de relativas às restrições verticais numa noção de garantia da liberdade empresarial, decorrente ainda da influência das considerações estruturalistas da Escola de Harvard, enquanto que as preocupações europeias centram-se na necessidade de garantir o objetivo final de integração dos mercados.

187 Já aqui referimos a crise da “cadeira vazia”, motivada pelo abandono do Conselho do

representante do Governo Francês em 1965, nas vésperas do fim do período transitório, em que a regra da aprovação por unanimidade para a generalidade das matérias da competência do Conselho passaria a aprovação por maioria simples, crise essa que seria ultrapassada pela adoção do “Compromisso do Luxemburgo”, determinando a necessidade de se procurar alcançar um consenso sempre que um Estado-Membro invocasse um “interesse nacional vital”. Por outro lado, em 1973 assiste-se ao primeiro alargamento da Comunidade, que passa a incluir o Reino Unido (tradicionalmente relutante em matérias de integração europeia), a Dinamarca e a Irlanda. Este contexto está na origem, por um lado, da paralisia institucional que marca o processo de integração entre meados da década de 1960 e o final da década de 1970 e, por outro lado, o crescente papel da Comissão e do Tribunal como “atores principais” na determinação do modo de evolução do processo de integração. 188 Assim, no Acórdão de 13.2.1969, Walt Wilhelm e o. c. Bundeskartellamt, 14/68, EU:C:1969:4, adiante “Acórdão Walt Wilhelm”, o Tribunal de Justiça conclui que “o artigo (101.º, n.º 1) dirige-se a todas as empresas da Comunidade, cujo comportamento regula, quer através de proibições quer através da concessão de exceções – nas condições que precisa – a acordos que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos para promover o progresso técnico ou económico. Se o Tratado pretende, em primeiro lugar, eliminar através desses meios os obstáculos à livre circulação de mercadorias no mercado comum e afirmar e salvaguardar a unidade desse mercado, também permite às autoridades comunitárias exercer uma certa ação positiva, ainda que indireta, para promover um desenvolvimento harmonioso das atividades económicas no seio da Comunidade” (cf. Acórdão Walt Wilhem, n.º 5).

189 Acórdão Metro I, já citado.

distribuição havia sido recusado, tendo a Comissão considerado que esse mesmo sistema de distribuição respeitava as condições de isenção do artigo 101.º, n.º 3 TFUE190, apontando para uma orientação qualitativamente distinta na aplicação

das regras de concorrência do Tratado da que até aí presidira às preocupações do Tribunal – a garantia da liberdade de concorrência –, e invocando em seu apoio o conceito de workable competition, de CLARK191: “a condição prevista nos

artigos 3.º e (101.º TFUE) do Tratado CEE de não falsear a concorrência implica a existência no mercado de uma concorrência eficaz (workable competition), isto é, de um grau de concorrência necessário para sejam respeitadas as exigências fundamentais e alcançados os objetivos do Tratado e, em especial, o estabelecimento de um mercado único que estabeleça condições análogas às de um mercado interno. Tal exigência reconhece que a natureza e a medida da concorrência possam variar em função dos produtos ou serviços em causa e da estrutura económica dos mercados sectoriais em vista”192.

Com esta afirmação, o Tribunal não só alarga consideravelmente a margem de liberdade da Comissão na aplicação das regras de concorrência do Tratado, em especial no que respeita à sua articulação com outros objetivos de política económica193, como acolhe expressamente o pensamento da “Escola de

190 Em concreto, a recorrente (queixosa) alegava que a Comissão havia incorrido em desvio de

poder, “na medida em que a Comissão teria ignorado o ‘objetivo da proteção instaurada pelo artigo (101.º, n.º 1 do TFUE) (ou seja) a liberdade de concorrência em benefício do consumidor e não a defesa dos interesses paralelos de um fabricante e de um grupo determinado de comerciantes, tendo em vista obter preços de venda considerados satisfatórios por estes últimos” (cf. Acórdão Metro, nº. 19).

191 (CLARK, 1940). Clark conclui que o modelo de concorrência perfeita é simultaneamente

impossível de atingir na prática, e indesejável como modelo teórico subjacente à aplicação das regras de concorrência. Um modelo alternativo, assente num conceito de concorrência possível, pode conduzir a resultados práticos mais adequados, assentando numa garantia de escolhas ao consumidor. Esta conceptualização assenta num conjunto de critérios que, se verificados, permitem identificar um mercado com um grau de concorrência suficiente. Para uma crítica da proposta da workable competition, em especial relativamente aos critérios escolhidos por Clark para a sua identificação, ver (SOSNICK, 1958). 192 Cf. Acórdão Metro I, n.º 20. 193 Neste sentido, ver (VAN ROMPUY, 2012, p. 151; WESSELING, 2000, p. 34).

Harvard” e se afasta ostensivamente da visão ordoliberal e do modelo da concorrência perfeita, com consequências no modo como o Direito da concorrência evoluirá na Europa194 e, em especial, no modo de atuação da

Comissão.

Assim, no seu IX Relatório sobre a Política da Concorrência, de 1980, a Comissão apela a um princípio de “concorrência justa” (assente na noção de

fairness) no modo de implementação do sistema de defesa de concorrência do

Tratado, assente na necessidade de atender a um conjunto de elementos meta- concorrenciais, em especial (i) a igualdade de oportunidades para todos os operadores do mercado comum, (ii) a necessidade de salvaguardar as diferentes condições nas quais as empresas operam, com especial atenção para as “Pequenas e Médias Empresas”, e finalmente (iii), considerações de equidade para que os interesses de trabalhadores, utilizadores e consumidores sejam tidos em consideração195.

O recurso a este discurso de “legitimação social” da política de concorrência justifica uma abordagem menos rigorosa à aplicação das regras de concorrência, temperada por preocupações de justiça social e de contemplação das condições concretas da situação económica, o que por sua vez terá consequências ulteriores na redefinição dos limites – e da razão de ser – das

194 Note-se que nesta altura a Escola de Harvard já não assumia um papel relevante no quadro

analítico e de aplicação do Direito norte-americano da concorrência.

195 Cf. IX Relatório sobre a Política da Concorrência (1980, p. 10). Na introdução do Relatório, a

Comissão apela a noções de legitimação da política de concorrência da Comunidade à luz dos objetivos mais amplos da integração económica: “In the case of the Community, delineation of the

general thrust of its competition policy must not be based on a dogmatic approach, but requires reference back to the fundamental provisions of the EEC Treaty… Nevertheless, the perpetual struggle to unify the common market is not the only objective of the system to ensure undistorted competition. It is an established fact that competition carries within it the seeds of its own destruction” (p. 9-10). No ano seguinte, no X Relatório sobre a Política da Concorrência (1981), a

Comissão iria um pouco mais longe: “The pouring of oil on waters troubled by intolerable social

tensions is also part of a healthy competition policy. And this kind of competition policy cannot succed without a stamp of approval from the social and political forces. In the current circumstances in particular, the Commission’s competition policy not only has to sustain effective competition; it has to support an industrial policy which promotes the necessary restructuring” (p.

regras da concorrência, recentrando a discussão dos objetivos do Direito europeu da concorrência em torno de considerações de eficiência económica196.

Neste período – que qualificamos de “imperial” pelo alastramento das fronteiras do campo de aplicação das regras de concorrência no Tratado para âmbitos distintos da garantia da integração dos mercados ou, mesmo, da garantia do processo concorrencial e da liberdade de concorrência – a Comissão, procurando alargar o âmbito da aplicação das regras de defesa da concorrência para o controlo das concentrações empresariais, vê o Tribunal de Justiça aceitar a premissa de que o aumento do poder de mercado através de uma concentração de empresas pode constituir um abuso de posição dominante, através de uma avaliação finalística que escapava completamente à letra do Tratado e ao

legislative intent dos seus autores, para quem o controlo prévio das

concentrações – ou a proibição do domínio – poderia constituir um travão à reconstrução económica europeia do pós-guerra197.

É neste contexto que se pode justificar que o Tribunal de Justiça, no seu Acórdão Continental Can, de 1973198, valide a posição da Comissão relativamente

à aquisição de poder de mercado através de uma concentração de empresas, simultaneamente justificando a intervenção da Comissão perante o que, de outro modo, poderia ser entendido como uma lacuna do Tratado perante determinados comportamentos que de outro modo poderiam ser considerados restritivos da concorrência199: “Na ausência de disposições expressas, não é

196 Como resume (ODUDU, 2010, p. 613), em defesa de uma recondução do Direito da

Concorrência à promoção da eficiência económica, no que respeita à consideração de objetivos de política económica na aplicação das regras da concorrência, “no claim is made that wider goals

should not be pursued; rather the wider goals must be pursued without competition law adjudication. The objection here is that to pursue them, absent a clear mandate to do so, seriously undermines the legitimacy of Union competition law”. 197 (GERBER, 1998, p. 360 e ss.; MOURA E SILVA, 1999, 2010). 198 Acórdão Continental Can, já citado. 199 Como referimos anteriormente, e ao contrário do Tratado de Roma, o Tratado CECA disponha de mecanismos – ainda que com um alcance prático limitado – que permitiam o controlo prévio de concentrações de empresas.

possível supor que o Tratado, tendo proibido, no (artigo 101.º, n.º 1) determinadas decisões de simples associação de empresas que alteram a concorrência sem a suprimir, admita no entanto como lícita, no (artigo 102.º), que empresas, após terem realizado uma unidade orgânica, possam atingir uma potência dominante tal que qualquer possibilidade séria de concorrência seria, na prática, afastada. Semelhante diversidade de tratamento jurídico abriria no conjunto das normas de concorrência uma brecha suscetível de comprometer o funcionamento correto do mercado comum. Com efeito, se para eludir as proibições do (artigo 101.º) bastasse proceder de forma a que os acordos atingissem um tal grau de aproximação entre as empresas que estas escapassem à aplicação deste artigo sem serem atingidas pelo (artigo 102.º) tornar-se-ia lícito isolar uma parte substancial do mercado comum, em contradição com os princípios fundamentais deste... Assim, o facto de uma empresa em posição dominante reforçar essa posição ao ponto de o grau de domínio assim atingido prejudicar substancialmente a concorrência, ou seja, deixar subsistir apenas empresas dependentes, no seu comportamento, da empresa dominante, pode constituir um abuso”200.

Este alargamento substantivo do domínio de aplicação das regras de concorrência para o controlo de concentrações que estivessem na origem de um poder de mercado abusivo é sintomático de uma política de concorrência que encara as regras do Tratado como instrumento de concretização de uma política económica mais vasta, e que conjuga bem com o impulso da integração pela Comissão em diálogo com o Tribunal. Neste aspeto, o Tribunal valida as preocupações da Comissão em poder antecipar eventuais problemas futuros decorrentes da criação de poder de mercado, sujeitando as operações de concentrações, como fusões e aquisições, ao escrutínio concorrencial da Comissão, na ausência de qualquer norma do Tratado ou sistema administrativo previsto para o efeito201.

200 Acórdão Continental Can, n.º 25-27.

201 Nos anos que se seguiram, e até à aprovação do primeiro regulamento de concentrações, o

Regulamento 4064/89, a Comissão continuou a aplicar os critérios admitidos pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Continental Can para sujeitar as operações de concentração empresarial ao seu controlo para efeitos de aplicação do artigo 102.º, e até do artigo 101.º. As restrições estruturais decorrentes da aplicação de um sistema normativo que, independentemente do

Se, por um lado, este período pode ser caracterizado pela “expansão territorial” da aplicação do Direito europeu da concorrência para domínios que apenas mediatamente podem ser considerados enquadráveis no Tratado, por outro, verifica-se uma crescente importância de outros objetivos, para além da integração dos mercados, mas igualmente aquém de considerações de eficiência económica.

O facto de o final da década de 1970 e princípio da década de 1980 ter sido caracterizada por crescentes problemas económicos que marcaram o fim dos “gloriosos trinta anos” de crescimento económico que marcaram a reconstrução europeia do pós-guerra não deixou indiferente a Comissão e, por arrasto, a aplicação do Direito europeu da concorrência é marcada por um apelo permanente à flexibilidade dos conceitos, que justificam restrições à concorrência tanto pela necessidade de se reestruturar um sector económico202,

esforço de integração da Comissão e do Tribunal, não permitia equipar a Comissão com um mecanismo sistemático e coerente para avaliação das operações de concentração e, em especial, o facto de a sua avaliação ocorrer ex post, contribuíam para a limitação desta abordagem e determinaram a introdução de um mecanismo administrativo de controlo prévio. Por outro lado, uma vez que os Estados-Membros não estavam impedidos de introduzir mecanismos de controlo de concentração a nível nacional, tornava-se necessário garantir a coerência no modo como as operações de concentração seriam avaliadas, sob pena de se prejudicar o próprio fim de integração dos mercados pela inexistência de uma abordagem coerente a concentrações de dimensão europeia. Ver (BENGTSSON, BADIA, & KADAR, 2014, p. 540 e ss.; CUNHA, 2005; MORAIS, 2006).

202 Ver XI Relatório sobre a Política da Concorrência (1982), p. 13: “The industries in crisis also

raise the problem of the introduction of defensive measures by firms, in the form of agreements known as ‘structural crisis cartels’, and these must be viewed in the light of the provisions governing restrictive practices. Where there is an irreversible disparity between production capacity and demand, agreements between undertakings aimed at achieving an orderly reduction of excess capacity may be exempted from the ban on restrictive practices in so far as undertakings do not jointly fix production and delivery volumes and selling prices of the relevant products nor aim at barring imports.” Embora com limites (“nor can the Commission tolerate measures which use private or public protectionism to shield a national market from external competition”, loc. cit, p.

cit.), a Comissão viria a admitir determinados acordos horizontais destinados a reestruturar sectores económicos e a reduzir a capacidade excedentária: e.g., Decisão da Comissão 84/380/CEE, de 4.7.1984, no proc. IV/30810, Fibras Sintéticas, JO L 207, de 2.8.1984; Decisão da Comissão 84/387/CEE, de 19.7.1984, no proc. IV/30863, BPCL/ICI, JO L 212 de 8.8.1984. Como mais tarde a Comissão reconheceria no XIV Relatório sobre a Política de Concorrência (1985), “in

the period from 1981 to 1984, competition policy was conducted in the shadow of economic problems manifested notably in rising unemployment and the contraction of declining industries.

como pelo estímulo direto à criação de sectores transfronteiriços203; por esta via,

e à luz da visão pragmática da workable competition legitimada pelo Tribunal, a Comissão promove uma expansão clara do papel da política de concorrência no contexto mais vasto da política industrial comunitária.

3.3.3. A antecâmara da modernização: o papel da concorrência no