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2. AS MEDIAÇÕES ENTRE A RELIGIÃO E A POLÍTICA: as Comunidades Eclesiais

2.4 A Identidade Cultural forte aliada no acesso à terra

[...] era do tempo da escravidão e ela muito bem como professora lá em São Paulo sabia que havia uma lei que as pessoas que foram de descendente de escravos tinham direito a sua terra, e isso ajudou também muito o nosso trabalho e nós era um deles, então não era zumbi... mais pertencia quilombo, quando a gente teve essa noticia e conseguiu ganhar ... Fundação Palmares então... a gente tem o nome de quilombo porque na realidade ali não era quilombo mais era descendente porque a nossa bisavó era da época então foi isso...essa ... era finada Zulica era da época a Tonica, Marcelina e a Tonica eram prima uma da outra, então ela escrevia tudo direitinho como se fosse um livro e foi comprovado que a gente....não só nós mais vários lugares passou a escravidão mais a mancha ficou, os defeitos pessoas na realidade sem ter direito ficou não tinha direito de escola ... escravo é o lixo....trabalhava bastante ...pros doutores ter condição de vida melhor (CONCEIÇÃO, 2011).

A professora a quem o Sr. Valentim se refere é Neusa Maria Mendes Gusmão (GUSMÃO, 1979, 1990), que construiu a sua dissertação de mestrado e tese de doutorado realizando o trabalho de campo dentro do território do Quilombo do Campinho da Independência. Ela afirma que no ano da Campanha da Fraternidade, em 1988, a comunidade recebeu a visita dos Agentes de Pastoral Negros de Nova Iguaçu- RJ e do então Deputado Federal da República, Abdias Nascimento, e que ela própria teria levado um diácono negro para uma conversa na comunidade (GUSMÃO, 1990). As reflexões realizadas pelos Agentes de Pastoral Negros passam a ser compartilhadas como os trabalhadores negros do campo.

A Constituição de 1988, através do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, garantiu o direito à propriedade aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estivessem ocupando suas terras, obrigando o Estado a conceder os títulos. A identidade negra, apontada pelo Sr. Valentim, é acionada em diálogo com a nova legislação que, finalmente, garantiria a conquista da titulação da terra que ocorreu para o Quilombo do Caminho da Independência, fundamentada nessa nova legislação. Isso não aconteceu da mesma forma no Quilombo do Bracuí, que permanece na luta pela titulação das terras.

[...] o decreto lei que já estava no senado com o Dr. Abdias Nascimento com a....esqueci o nome da outra no senado...Benedita da Silva e ....a Fundação Palmares também aí ajudou muito....quer dizer não era mentira era uma lei que foi aprovado pelo senado e a gente tinha direito, não só nós, mais Pernambuco vários lugares, ajudou se não fosse isso custava mais talvez não chegasse mais....mais com a lei assinada todo mundo os advogados tem como trabalhar, tem

como discutir e comprovando que nós éramos mesmo descendente por causa da nossa bisavó a gente conseguiu com a graça de Deus. [...] Olha pra te falar, a gente fez uma emenda ... tinha dia que a gente ia dormir lá pra meia noite quase uma hora o nosso advogado sentado também sabe, uma turma da Pastoral da Terra, pra vê como fazer, discutir como é que a gente ia usar, era mais isso discutir, nós vamos ganhar como vai ser, você tem esse pedaço daqui e tá trabalhando aqui a nossa mãe o nosso filho que estão trabalhando aqui agora como vamos fazer essa emenda se a gente ganha então foi discutido que cada um ficava no seu trecho porque antes tinha uma lei que pessoa morada 20 poucos anos num lugar podia entrar na justiça que tinha direito(CONCEIÇÃO, 2011).

O processo de titulação era lento e exigia o certificado de reconhecimento à comunidade como quilombola, emitido pela Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura. O registro no Cadastro Geral dos Remanescentes de Quilombo da Fundação Cultural Palmares e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), associado ao trabalho do ITER (Instituto de Terras do Estado), no caso de território estadual. Abdias Nascimento (PDT) e Benedita da Silva (PT) participaram como Deputados Federais na constituinte.

Após o decreto da constituição, formou-se uma rede associada ás diferentes comunidades quilombolas visando a transmissão das tradições culturais69, objetivando o acesso à terra:

[...] depois a gente fez emenda com outros lugares veio pessoa de fora aqui passar um tempo, conversar sobre o tempo dos africanos ajudar como era as danças quilombolas, algumas coisas pegavam, algumas coisa não pegaram, mais muitas coisas que já estavam por perto...por exemplo jongo eu sei meu tempo de criança, dançava o jongo alguma fazendas mais eu não participava, as crianças que participavam, na época.

... a maioria das coisas teve gente de Bracuí, teve gente de Santo Antônio da Serra, Campos o povo daqui saí numa comunidade as vezes estão imprensadas também para adquirir seu titulo, mas de lá também vem muita gente aqui....agora que tem pouca gente, está aparecendo pouca gente, mais na época de 15 em 15 dias tinha grupo no meio do indo de um lado do outro conversar porque a necessidade deles também era de procurar saber o que aconteceu aqui pra eles também fazer isso em vez era vice e versa eles também traziam várias informações que eles tinham (CONCEIÇÃO, 2011).

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Só em 1999, onze anos após o decreto, ocorreu o reconhecimento da comunidade como remanescentes quilombolas.70 Após duas décadas de luta, os moradores do Campinho da Independência receberam a titulação coletiva da terra.

O ano de 1988 foi emblemático na organização de uma narrativa política, na construção de uma identidade racial. Externamente, o ano registrou celebrações e os protestos referentes aos 100 da abolição da escravidão no Brasil; ocorreu a inserção dos direitos quilombolas na Constituição promulgada; internamente, a Igreja Católica lançou uma Campanha da Fraternidade, nesse mesmo ano, com o tema: A Fraternidade

e o Negro e como lema: Ouvi o clamor deste povo (BAPTISTA, 2014). A Campanha permitiu o diálogo com a sociedade mais ampla e tornou público um debate que já acontecia internamente. O que mudou na luta pela terra a partir do final da década de 1980? Foi o período em que os quilombos, dentro da construção religiosa ligada à Teologia Negra de libertação, foram consagrados como marco histórico na construção da resistência negra à escravidão e como símbolo da luta por libertação.

O boletim Informativo71 do mês de setembro de 1988 anuncia a chegada do mês das missões, celebrado em outubro. O lema da Campanha Missionária realizada foi: A

África, nossos pais nos contaram. Essa campanha estaria reforçando o tema examinado

na campanha da fraternidade que trouxe para o interior das CEBs e das celebrações que eram também reflexões, realizadas dentro das casas dos fieis sobre a “realidade do negro no Brasil”. Na narrativa construída no boletim, a campanha missionária ampliaria o estudo, celebração e reflexão com a inclusão de análise sobre o “continente-mãe, a África”, através de um vasto material distribuído às paróquias também disponível para os encontros realizados nas casas dos fieis sobre as missões. O tema da Campanha da Fraternidade sobre a realidade do negro no Brasil e o da Campanha das Missões vinculando essa realidade ao continente africano encontrou um campo fértil e aberto a diversos desdobramentos e ressignificações dentro dos territórios em luta pela terra no Litoral Sul Fluminense. E favoreceram certo enquadramento da memória construída.

As reflexões realizadas nessas Campanhas fazem circular no território da diocese, dentro das comunidades eclesiais de base, a busca por emancipação, autonomia e o desejo de plena cidadania fundamentado na noção de diáspora, onde a identidade dos negros no Ocidente está marcada pela experiência da escravidão, por intensas trocas

70Informação constante no ARQUIVO DA PASTORAL DA TERRA DA DIOCESE DE ITAGUAÍ. 71 BOLETIM INFORMATIVO DA DIOCESE DE ITAGUAÍ. ANO IX Nº 95: Diocese de Itaguaí, setembro de 1988, p 5.

culturais espalhadas pelo Atlântico (GILROY, 2001). A experiência traumática da escravidão, do racismo, do desenraizamento e as constantes mudanças estruturais e culturais vivenciadas na experiência da modernidade possibilitaram produções culturais fundamentadas num constante trabalho de elaboração e reelaboração da memória do cativeiro, objetivando politicamente a afirmação de identidades e culturas negras no pós-abolição (CASTRO & RIOS, 2004)72.