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4. A Criação da Comissão Pastoral da Terra e a Fundação da diocese de itaguaí

4.4. A modernização autoritária

Estudos que abordam o período entre 1950 e 1980 o apresentam como décadas onde ocorreu um intenso processo de modernização pelo qual o país passou alterando as suas características sociais, econômicas e políticas. Ocorreram alterações irreversíveis. Um dos maiores impactos foi sobre a relação entre o campo e a cidade com o processo de industrialização. O Rio de Janeiro composto por 14 municípios na década de 1970 contava com uma população de 7.082.00 habitantes. Esse quadro se ampliou significativamente na década de 1980, passando a brigar 8% da população brasileira com 9.018.000 habitantes. Um elemento que justificou esse crescimento da cidade foi o êxodo rural, que esvaziou o interior motivado pelo crescimento da violência no campo (SILVA, 1990).

A tabela abaixo apresenta um crescimento vertiginoso da população urbana em relação ao mundo rural através de um acelerado processo de urbanização e industrialização. Se a decadência e o abandono sofridos pela região podem ser associados a modernização que as ferrovias significariam um século antes, o novo

processo de transformação está intimamente ligado à modernização autoritária do contexto político e econômico do regime civil militar que teve como característica grandes projetos de investimento em infraestrutura, construção e pavimentação de estradas e rodovias que favorecessem o processo de industrialização na região.

Essa situação foi assim registrada pela CPT nos municípios que compõem a diocese de Itaguaí166:

Tabela 1: População da Diocese de Itaguaí

Fonte: Levantamento da situação fundiária da diocese de Itaguaí.

A população local era formada, em sua maioria, por posseiros, parceiro e o arrendatário. É uma região de ocupação antiga onde apenas os grandes proprietários conseguiram a titulação da terra. Os conflitos pela posse da terra começaram antes da abertura da rodovia Rio-Santos, porém a partir da década de 1970 eles se intensificaram (PACHECO, 2010). Ocorreu a um processo violento de urbanização e modernização que não considerou a necessidade de inclusão da população local, ou se fez sem levar em consideração seus projetos pessoais e coletivos.

A publicação da Comissão Pastoral da Terra (PACHECO, 2010) aponta alguns recortes temporais e acontecimentos que demarcam uma brusca transformação na região Sul Fluminense em seu processo de desenvolvimento a partir da década de 1950. São apontadas como transformações sofridas pela região nos “últimos 25 anos”: a construção da Verolme Estaleiros reunidos do Brasil/SA em 1959; o tombamento em

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ARQUIVO DA PASTORAL DA TERRA DA DIOCESE DE ITAGUAÍ. Levantamento da situação fundiária da diocese, 1987.

População: estimativa 1985 - Diocese de ITAGUAÍ - 212.270 habitantes

TOTAL URBANO RURAL DENSIDADE

1970 1980 1985

estimativa 1970 1980 1970 1980 1980

PARATY 15.934 20.599 23.473 4.169 8.904 11.765 11.695 22,49/KM²

ANGRA DOS REIS40.276 57.861 67.926 19.200 28.993 21.076 28.868 70,40/KM²

MANGARATIBA 12.338 13.845 15.076 6.125 8.096 6.213 5.749 47,69/KM²

ITAGUAÍ 55.839 90.136 105.795 17.468 76.241 38.371 13.892 72,45/KM²

TOTAL 124.387 182.438 212.270 46.962 122.234 77.425 60.204

População da Diocese de ITAGUAÍ = 1,6 % da população do Rio de Janeiro. (11.489.797) 15,9 % da população do Distrito Federal (1.203.333) equivalente à população de Volta Redonda. (183.620)

1966 da cidade de Paraty como Monumento Histórico e Artístico Nacional; a construção das Usinas termo Nucleares de Itaorna em 1970 em Angra dos Reis; A construção do terminal da Baía da Ilha grande (TEBIG) da Petrobrás em 1975; a construção do Porto de Sepetiba no Município de Itaguaí incluindo a implantação da CONSIGA. Dois fatores são destacados com maior relevância: uma política governamental qualificada como desastrosa em 1972, através do decreto nº 70.986 de 16/08/1972, a construção da rodovia Rio-Santos. A construção da estrada Rio Santos é recorrente em todos os depoimentos orais, como elemento de ruptura de uma situação anterior, representada pela imagem de uma “certa” tranquilidade.

4.4.1 O Teatro do Poder: a construção da Rodovia Rio Santos e os decretos presidenciais

A construção da estrada litorânea Rio Santos (BR101) que começou a ser aberta em 1970 e concluída em 1976 é registrada como um elemento que deflagrou uma série de conflitos de terra no Litoral Sul principalmente nos municípios de Paraty e Angra dos Reis, esses municípios no período pertenciam a diocese de Volta Redonda e viviam isolados após a decadência da economia cafeeira. A situação teria sido agravada por uma política governamental que, através do decreto nº 70.986 de 16 de agosto de 1972, considerou áreas que integram os municípios de Itaguaí, Mangaratiba, Angra dos Reis e Paraty “áreas prioritárias para a reforma agraria”. No entanto, seis meses depois, através da resolução nº 413 de 13 de fevereiro de 1973, com base no decreto nº 71.791 de 31 de janeiro de 1973, passou a ser considerada como zona prioritária de interesse turístico. O último decreto altera radicalmente a finalidade do primeiro, desalojando uma população de pequenos proprietários voltados para a produção familiar, atraindo para a região uma logística “moderna” ligada a empresas de turismo.

A memória construída na região Sul Fluminense aparece delimitada pela primeira vez, durante o Governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Através do Decreto nº 70.986, de 16 de agosto de 1972,167 as áreas integradas pelos municípios de Itaguaí, Mangaratiba, Angra dos Reis e Parati no Estado do Rio de Janeiro foram “declaradas prioritárias para fins da reforma Agrária” ficando sobre a justificação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria – INCRA que fixou um prazo de

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Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70986-16-agosto-1972- 419208-publicacaooriginal-1-pe.html acesso em 11 de agosto de 2017.

cinco anos que poderia ser prorrogado de intervenção governamental na área. Por esse decreto, as florestas e outras formas de vegetação existente seriam regidas pelo Código Florestal em conformidade com o INCRA e o IBDF. O INCRA teria o prazo de 180 dias para apresentar um Plano Regional de Reforma Agrária e a situação nas áreas definidas pelo decreto que seria aprovado pela Instrução Especial do Ministro da Agricultura que teria como atribuição especificar:

a) Os objetivos a alcançar, principalmente o número de unidades familiares e cooperativas a serem criadas;

b) O cadastro técnico da região, na forma do parágrafo 1º do artigo 46 da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964;

c) A regularização de títulos de domínio de imóveis rurais que satisfaçam as exigências da Lei.

Os imóveis rurais, pertencentes à União, que estivessem situados nas áreas estabelecidas pelo decreto, sem destinação especifica, seriam transferidos ao INCRA através do Serviço de Patrimônio da União. Esse decreto foi revogado seis meses depois, através da resolução nº 413 de 13 de fevereiro de 1973, e a mesma área foi considerada “zona prioritária de interesse turístico”, com base no decreto 71.791 de 31 de janeiro de 1973168.

...a violência foi base do processo de expulsão das famílias dos trabalhadores rurais e pescadores das suas posses. Vão chegando as empresas especularas com tratores para derrubar plantações e casas. Os oficiais de justiças acompanhados de policiais para dar despejos aos jagunços armados de rifles e revolveres e as famílias expulsas postas nas estradas; foram elas se deslocando para as periferias das cidades, muitas vezes sem dinheiro algum e outros com alguns cruzados tidos como indenizações irrisórias pelas benfeitorias. O direito de usucapião destas famílias foi desconhecido pela lei que favorece a estes posseiros não foi aplicada169.

Devido aos fatores acima expostos desenvolveu-se na região uma forte especulação imobiliária nos anos de 1970 que se apoiou em uma rede burocrática, cartorária e judicial que resultou na busca por parte de grandes empresas nacionais e multinacionais pela região, assim como de grileiros que portadores de escrituras na

168Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-71791-31-janeiro-1973- 421651-publicacaooriginal-1-pe.html acesso em 11 de agosto de 2017.

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ARQUIVO DA PASTORAL DA TERRA DA DIOCESE DE ITAGUAÍ. Levantamento da situação fundiária da diocese, 1987.

maioria das vezes forjadas expulsou a população rural para as áreas periféricas resultando na favelização dos lavradores.

O relatório organizado pela comissão da verdade do Rio de Janeiro afirma:

Selecionamos alguns casos, que se destacam pelo modo como os agentes envolvidos atuaram no jogo político. Em Paraty destacamos os conflitos da Praia do Sono (Fazenda Santa Maria do Mamanguá); Trindade (condomínio Laranjeiras); Fazendas Taquari, São Roque e Barra Grande; Campinho da Independência; São Gonçalo. Em Angra dos Reis, destacamos Santa Rita do Bracuhy (MEDEIROS ET. ALL., 2015).

Segundo o documento, a região era composta por comunidades descendentes de escravos das antigas fazendas de café, caiçaras e índios guaranis. Segundo o levantamento realizado durante a pesquisa que deu origem ao relatório, 56 dos 133 conflitos registrados no Estado do Rio de Janeiro durante os anos de 1970 e 1980 ocorreram nesse território. Ainda segundo o relatório, a peculiaridade dos conflitos escolhidos para estudo reside na violência empregada contra as populações camponesas. Não foram encontrados registros, nos documentos da polícia política, de denúncias ou tentativas de subversão da ordem. Os registros existentes se concentrariam apenas no clero local. As violações estariam relacionadas a:

[...] um contexto de grandes transformações econômicas; crescimento do interesse nas terras por agentes de grandes transformações econômicas; crescimento do interesse nas terras por agentes externos; expropriação, dificuldade de organização e denuncia dos que ali estavam. Por conseguinte, os casos tratados ilustram outra face do que foi a repressão no regime militar: omissão do Estado frente à violência privada e ao processo desterritorialização de populações locais (MEDEIROS ET. ALL., 2015).

A peculiaridade apontada no relatório não indica a aceitação da situação, mas a forma de resistência escolhida que combinou tradição e modernidade. Uma tradição religiosa herdada do tempo do cativeiro, com seus usos e costumes, que pode por um certo tempo se reinventar com pouca interferência externa, garantida por um relativo isolamento. Porém, o isolamento não era total porque havia a comercialização dos produtos, um contato com um universo externo, com pouca interferência na dinâmica de organização interna.