• Nenhum resultado encontrado

Foto 10 − Brincadeira de salão de beleza entre Graça, Nízia e Tereza

8. A IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL DE CRIANÇAS NEGRAS REMANESCENTES

8.4. A identidade de crianças negras e do campo

O intuito dessa sessão é discutir fatores que perpassam as vivências das crianças, participantes da pesquisa, extra instituição. Com isso, se busca conhecer quais são os fatores envolvidos na construção da identidade dessas crianças negras enquanto também sujeitos do campo.

As falas das crianças analisadas a seguir foram produzidas a partir de uma pergunta feita às crianças sobre uma situação vivenciada pela menina Vitória. Foi solicitado às crianças que elas sugerissem para a personagem Vitória o que ela poderia fazer na comunidade

remanescente de quilombolas na qual elas residem: A Vitória e a família dela vieram morar

aqui na comunidade faz pouquinho tempo. A Vitória não conhece nada daqui. Passa o dia inteiro dentro de casa sem fazer nada. Ela acha isso muito chato. Vocês “topam” ajudar a Vitória? Vamos dizer pra ela o que ela pode fazer aqui na comunidade! (Trecho da história

para completar, HCa – 1º aplicação)

Segundo Maria e José a menina pode brincar em casa, mas, não pode ir para a rua. As crianças justificam que há cobras fora de casa, além disso, também há caminhões que podem passar e atropelar. Na rua, ela pode pegar na mão da mãe dela, segundo José:

Pesquisador: O que é que a Vitória pode fazer na rua? José: Nada!

Maria: Não!

José: Ela pode pegar na mão da mamãe dela. Maria: É que tem uma cobra fora e vai morder ela. Pesquisador: Mas, ela pode ir pra rua?

Crianças: Não!

José: O caminhão atropela ela. (JOSÉ e MARIA, HCa – 1º aplicação)

As crianças parecem já ter internalizado as recomendações dos adultos sobre como elas devem se comportar. O que também se sabe, a partir da fala das crianças, é que elas não têm liberdade para interagirem/brincarem na rua. Embora, a comunidade não apresente grande fluxo de pessoas e automóveis, as crianças são ensinadas a brincarem dentro de casa e a não saírem para a rua sozinhas, pois esta é um lugar hostil (TONUCCI, 2008).

Figura 4 – Cercado por um mundo hostil (TONUCCI, 2008)

A ausência da rua como espaço para interações, brincadeiras, peripécias etc. entre as crianças também foi expressa na fala de Tereza:

Tereza: Ei, Predo, Predo! A minha mãe né, num deixa nós fazer nada. Nós só vamo pra escola, volta pra casa. Vamo pra escola, volta pra casa.

Pesquisador: Só isso que faz? Tereza consente que sim. (TEREZA, HCa – 1º aplicação)

A fala acima parecia estar engasgada na menina, pois ela comentou sobre esse fato antes mesmo de se questionar o que a Vitória poderia fazer na comunidade. A casa como único lócus (extra instituição) das vivências infantis também emerge na fala da menina Nízia:

Pesquisador: O quê que ela pode fazer? Nízia: Sentada, bem quietinha.

Pesquisador: Ela pode fazer outra coisa? Nízia consente que não.

Pesquisador: Qual outra coisa ela pode fazer? Nízia: brincar de esconde-esconde.

Nízia: Eu brinco.

Pesquisador: Onde é que brinca de esconde-esconde pra eu dizer pra ela? Nízia olha a sala em que estamos, olha para a porta e diz: Lá fora. Pesquisador: Lá na tua casa onde é que tu brinca de esconde-esconde? Nízia: Em casa.

(NÍZIA, HCa – 1º aplicação)

No livro “A solidão da criança”, Tonucci apresenta reflexões sobre a “casa fortaleza”, o ambiente doméstico para a criança é analisado pelo autor como uma prisão. Tonucci (2008) faz uma crítica ao contexto urbano, à cidade, como um mundo cheio de muitos perigos para as crianças. No entanto, a partir das falas das crianças remanescentes de quilombolas, é possível refletir que a insegurança e a desconfiança, por meio da mediação dos adultos, também se fazem presentes no campo. Assim como a cidade não pertence mais às crianças (TONUCCI, 200), a posse do campo também parece estar ameaçada.

Figura 5 – Fechado em uma casa-fortaleza (TONUCCI, 2008)

Outra característica identificada na fala das crianças trata-se da presença dos pais no contexto familiar. As crianças falavam e ou perguntavam sobre os pais da menina Vitória:

Pesquisador: A Vitória fica em casa sem fazer nada, ela acha muito chato. Nízia: Cadê a mãe dela? Foi pa onde?

Pesquisador: A mãe dela foi trabalhar. Nízia: Trabalhando?

Pesquisador: É. Nízia: Cadê o pai dela?

Pesquisador: Foi trabalhar também. (NÍZIA, HCa – 1º aplicação)

Diferentemente, da realidade de muitas crianças residentes em contextos urbanos, a presença do pai e da mãe em casa é sentida pelas crianças da comunidade remanescente de quilombolas como um aspecto importante. Nízia manifesta estranhamento com o fato da menina Vitória estar em casa sem a mãe e sem o pai, o que pode decorrer da companhia que Nizia e sua mãe compartilhavam em práticas cotidianas, como mencionado por ela em uma outra fala.

Para conhecer o que as crianças, de fato, podem fazer ou fazem na “comunidade remanescentes de quilombo”, se questionou o que a menina Vitória poderia fazer na rua:

Pesquisador: E na rua, o que a gente pode fazer na rua? Nízia: Na estrada.

Pesquisador: Na estrada? Nízia consente que sim.

Pesquisador: O que a gente pode fazer na estrada? Helena: Sentar.

Pesquisador: Sentar? Nízia: Sentar.

Pesquisador: Mas, o que a gente pode fazer na estrada?

Nízia: E o trator passou... bem grande... Foi a minha mãe que foi sentar lá, bem, bem lá na estrada. E a moto passou.

(NÍZIA e HELENA, HCa – 1º aplicação)

A coordenadora da instituição estava presente na realização desta etapa do procedimento. Por ser vizinha da menina Nízia, ela comentou que todas as tardes, a menina e a mãe sentam na calçada e ficam observando o fluxo na rua. O relato de Nízia foi o único que trouxe experiências com os familiares. As outras crianças citaram a casa e os pais, mas, nada comentaram sobre o que se fazia junto.

Aparentemente, as crianças não têm acesso às brincadeiras tradicionais em casa, assim como não têm no CEI Luiza Mahin. Apenas Nízia mencionou brincar de Esconde- esconde. A companhia de outras crianças foi outro aspecto ausente, como também o contato com a natureza, o que chama muita a atenção, pois as crianças tinham a disposição amplos terreiros com árvores. Segundo Tonucci (2008, apud SILVA, 2008, p. 262) “embora pareça um contrassenso, quanto mais estudada a criança é, mais seus direitos são violados, sejam eles o de

brincar, o de ter contato com a natureza, o de dialogar, de criar, de silenciar-se, de ter a companhia de outras crianças, entre tantos outros”.

No estudo de Paula (2009) com crianças (de 4, 5 e 6 anos) negras remanescentes de quilombolas do sul do Brasil, foram várias as situações em que a pesquisadora se deparou com a aproximação entre a cultura da comunidade e a cultura infantil. Em suas brincadeiras, as crianças traziam histórias, costumes e espaços da comunidade, como também, elas faziam-se presentes nas práticas sociais do grupo remanescente de quilombolas, como por exemplo, a prestação de homenagem às pessoas que faleciam na comunidade. A autora ressalta que as crianças participavam dessa última prática com a mesma seriedade presente em suas brincadeiras (PAULA, 2009).

No estudo de caso em questão, as crianças, quando questionadas sobre o que se poderia fazer na comunidade em que moravam, nada citaram dos espaços da comunidade e das suas práticas culturais, como por exemplo, as desenvolvidas no centro cultural, na associação de moradores, na tenda de umbanda etc. A ausência de contato das crianças com a cultura da comunidade pode se dar pelo fato dos seus moradores ainda estarem caminhando na construção de estratégias de preservação da cultura, como também de contágio dos pares para a promoção de um sentimento de pertencimento à comunidade (ação ainda invisível no CEI Luiza Mahin). Nesse processo, é necessário que esta cultura se constitua como uma tradição para além da manutenção, mas, para a recriação, a ressignificação e a transformação (SAURA, 2015), pois só assim, as crianças poderão conhecer a si mesmas como herdeiras e possuintes de negritude e campesinato.