• Nenhum resultado encontrado

Foto 10 − Brincadeira de salão de beleza entre Graça, Nízia e Tereza

2. A TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DE CRIANÇAS NEGRAS E POBRES NO

2.3. Ditadura Militar

A demanda por creche é intensificada pelas classes populares e médias da sociedade nos anos 60 (KUHLMANN JR., 1998), fenômeno que decorre da concentração de famílias vindas do campo nos novos centros urbanos, da diminuição da mortalidade infantil e da entrada progressiva da mulher no mundo do trabalho. É neste cenário que o Departamento Nacional da Criança (DNCr) funda um atendimento destinado às crianças de 2 a 6 anos, os Centros de

Recreação (KUHLMANN JR. 2000).

Este modelo de atendimento se caracterizava pela contratação de pessoas sem formação (o que implicava em baixos salários ou até mesmo em trabalho voluntário), pela utilização de espaços adaptados, pela ausência de materiais pedagógicos e pelo atendimento de um grande número de crianças em um espaço pequeno (ROSEMBERG, 2003).

Iniciativas que não eram ligadas ao governo também foram implementadas neste período, como por exemplo, o Projeto Casulo (1974) gerido pela LBA. Segundo Kuhlmann Jr. (2000), o projeto tinha como finalidade o ordenamento social da população pobre “através da assistência [nutricional e recreativa] às crianças de 0 a 6 anos” (CRUZ, 2005), como também objetivava solucionar o problema das altas taxas de reprovação no ensino de 1º grau (VILARINHO, 1987, apud KUHLMANN JR., 2000).

Segundo Rosemberg (1996, p. 61), as “creches e pré-escolas constituíam alternativas à escola de 1º grau para crianças pobres e negras”. A autora apresenta com espanto e indignação um número elevado de crianças pretas na faixa de sete anos, sobretudo no Nordeste (26,16%),

frequentando a pré-escola em decorrência da não alfabetização13. Estas crianças não

alfabetizadas permaneciam na pré-escola até estarem aptas – “alfabetizadas” – para o então ensino de primeiro grau.

Desde a década de 60, muitos foram “os paradigmas formulados para explicar o fracasso escolar de estudantes oriundos das camadas populares ou de determinados grupos étnicos, como os negros” (ANHORN e CANDAU, 2000, p. 7). Uma dessas explicações é fornecida pela “teoria” da carência cultural, que segundo Patto (2008), enfatiza supostos déficits do meio no qual os sujeitos tidos como inferiores se encontram. A compreensão de que as

crianças pobres e negras14 são carentes de afeto e de estímulos deriva da visão de que o meio e

os adultos das classes marginalizadas não têm nada a oferecer, por outro lado, esses adultos também são vistos como depósitos dos males que atingem essa população, os quais podem ser perpetuados pelas gerações seguintes, como por exemplo, o fracasso escolar (PATTO, 2008). Porém, esses males são produzidos pela dinâmica intencional de manutenção da alienação e da exploração que sustenta o modelo de sociedade vigente. O fracasso escolar é produzido por uma educação que diz:

(...) para o oprimido que a deficiência é dele e lhe prometem uma igualdade de oportunidades impossível através de programas de educação compensatória que já nascem condenados ao fracasso quando partem do pressuposto de que seus destinatários são menos aptos à aprendizagem escolar. Mesmo assim, fazem renascer, com estes programas, a esperança na justiça social, mais uma vez graças ao papel democratizante atribuído à escola compensatória que supostamente reverterá as diferenças ou deficiências culturais e psicológicas de que as classes “menos favorecidas” seriam portadoras (PATTO, 2008, p. 76) (grifo nosso).

Durante o período de 1960 a 1980, observa-se na política brasileira para educação das crianças a articulação entre a educação compensatória e o tipo de atendimento que se fazia presente desde o início do século, o assistencialismo. Segundo Kuhlmann Jr. (1998), é o “assistencialismo na educação compensatória” (p. 198).

A Educação Compensatória, influenciada pela “teoria” da carência cultural, concebe as crianças que proveem das classes sociais marginalizadas como carentes culturalmente, sendo a falta de cultura e de hábitos, que decorre da ignorância da família, o explicativo da evasão e da repetência, o que implica em culpar as próprias crianças pelo fracasso

escolar (KRAMER, 1982)15. Tal concepção justifica “a posição da escola num sistema em que

14 No caso do Brasil e de outros países, nos quais a escravidão constituiu um modelo econômico e social, essas

variáveis estão associadas. A divisão de classes econômicas realizada por essa “teoria” coincide com a de grupos étnicos

15 Entre 1972 e 1977 foi exibido pela TV Cultura (até 1974) e pela Rede Globo (até 1977) o programa Infantil Vila

Sésamo, “com tom de brincadeira, (...) [o programa] ensinava, estimulando o raciocínio, e transmitia noções básicas do alfabeto, números e cores. A grande preocupação do programa, segundo Wilson Aguiar [coordenador], era diminuir as diferenças culturais entre as crianças de classes sociais distintas”. Disponível em <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/infantojuvenis/vila-sesamo/formato.htm>. Acesso em 11 mar. 2017.

se ensina a criança a fracassar e se espera previamente o seu desempenho fraco” (KRAMER, 1982, p. 4-5).

O fracasso ensinado (produzido pela escola) é marca no atendimento ofertado às crianças negras brasileiras, segundo Rosemberg (1991, p.30) “a carreira de educação inicial de crianças negras é por vezes frustrada - por ela não ter acesso - acidentada, porque interrompida, retomada ou abandonada e sofrida, porque tende a ser de pior qualidade”. Outra constatação feita pela pesquisadora é que nas creches e pré-escolas onde são verificados os maiores índices de crianças pobres é também constado o maior número de crianças negras. O público infantil negro e pobre é submetido a atendimentos de péssima qualidade, com isso “cria-se (...) desde a creche, uma trajetória educacional dualista onde crianças negras iniciam uma história de experiências educacionais frustrantes e de segunda mão (ROSEMBERG, 1991, p.32).

Neste mesmo período, também foi implementado o programa Educação Pré- escolar, que se caracterizava por um modelo de Educação Infantil de massa, construído pelo MEC a partir de recomendações do UNICEF. Acerca deste programa, Rosemberg (1999) destaca a “[...] desigualdade no custeio/qualidade que penaliza crianças pobres e negras de diferentes formas” (p. 31), fato visto por ela como uma “morte educacional anunciada”.

Apesar disso, neste mesmo período, surgem movimentos que redirecionam as discussões sobre o atendimento de Educação Infantil. Com o crescente número de mulheres entrando no mercado de trabalho, a luta por uma Educação Infantil “pública, democrática e popular se confundia com a luta pela transformação política e social mais ampla” (KUHLMANN JR., 2000, p. 7), especialmente, a garantia dos direitos trabalhistas das mulheres da classe média. Este fato leva a creche e a pré-escola a serem pensadas para além de um atendimento destinado aos filhos da população carente e desamparada, negra e pobre; fortalecendo, junto ao meio acadêmico, a concepção de que este atendimento deveria ter um caráter pedagógico e ser de responsabilidade do Estado (CRUZ, 2005).

Segundo Kuhlmann Jr. (1998), o atendimento as crianças pequenas não deveriam se tornar educacional, pois já o era: por trás da organização do tempo, dos espaços, dos materiais, de como o planejamento era feito e da forma como aconteciam as interações com as crianças havia uma concepção de criança e de educação, como também objetivos a serem alcançados. Porém, esses aspectos não estavam tão claros para os movimentos sociais e para os acadêmicos da época. Não se concebia os serviços ofertados às crianças como constituintes de um tipo de educação, centrando-se principalmente em conteúdos escolares. No caso das crianças negras e pobres, essa educação se caracterizava por ser ruim e por educar para a subalternidade (ROSEMBERG, 2003). Essas características (que também podem ser chamadas

de objetivos) repercutiram na construção de condutas, e sobretudo, da identidade das crianças, que sob a influência de práticas descomprometidas quanto à qualidade, como também preconceituosas em relação à pobreza e ao pertencimento étnico-racial produziram uma infância de ombros e cabeças curvas.