• Nenhum resultado encontrado

A ideologia nazista e a “engrenagem” Eichmann

2 O ANIMAL LABORANS E A QUESTÃO DO AGIR

2.1 Os riscos da substituição da ação pela fabricação

2.1.2 O movimento totalitário: uma massa acrítica de indivíduos isolados

2.1.2.2 A ideologia nazista e a “engrenagem” Eichmann

Adolf Otto Eichmann era o chefe do Departamento da Gestapo responsável por toda a logística relacionada com os estudos e execução do extermínio de judeus, em curso, à época. À polícia secreta não cabia, portanto, descobrir crimes, mas, no caso de Eichmann, sob sua chefia, estar disponível para as ocasiões em que o governo decidia prender ou dizimar determinada categoria da população.

“Intimamente ligada a essa transformação do suspeito em inimigo objetivo é a nova posição da polícia secreta no Estado totalitário. Os serviços secretos já foram chamados corretamente de um Estado dentro do Estado, e isto não se aplica apenas aos despotismos, mas também aos governos

constitucionais ou semiconstitucionais. A simples posse de informes secretos sempre lhes deu nítida superioridade sobre todas as outras agências do serviço público, e constituiu franca ameaça aos membros do governo. A polícia totalitária, ao contrário, é totalmente sujeita ao desejo do Líder, que é o único a decidir quem será o próximo inimigo em potencial e, como o fez Stálin, pode dizer até quais os escalões da própria polícia devem ser liquidados” (ARENDT, 2011c, p. 476).

Para Arendt, no entanto, “o exemplo mais gritante de como os métodos e critérios da polícia secreta impregnam a sociedade totalitária é a questão da carreira pessoal” (ARENDT, 2011c, p. 481). Cada pessoa que tenha nela uma ocupação torna-se cúmplice do governo e de seus beneficiados pelos crimes por eles praticados. É um sistema que coloca em prática a lealdade total em suas possíveis implicações; em toda a sua extensão.

Era exatamente este o caso de Eichmann, o “executor-chefe do Terceiro Reich”, no holocausto. Em seu não mundo, tudo era feito em nome da ideologia totalitária. Ideologia que Arendt define como a “lógica de uma ideia” (ARENDT, 2011c, p. 520). É o estudo dos mecanismos de seu funcionamento que pode indicar os elementos que a tornaram tão perturbadoramente útil para o governo totalitário. Segundo Arendt, assim que a lógica é aplicada à ideia, essa ideia passa à premissa, num processo argumentativo que, sob a coerção da proibição de contradições, não pode ser interrompida nem por uma nova ideia e nem por uma nova experiência.

Durante toda a atuação de Eichmann enquanto oficial do exército de Hitler, sua conduta se justificava pela ideologia nazista. E está pressuposta na ideologia que uma determinada ideia é capaz de explicar tudo a partir da premissa, afastando qualquer experiência, porque nenhuma delas estará fora do alcance da dedução lógica de seu silogismo, o que substitui a capacidade humana de pensar pela camisa de força da lógica perpetrada por este processo, capaz de subjugar o homem com a mesma violência que a força externa é capaz de fazer.

Mas a ideologia não constitui, ela mesma, o totalitarismo. Seu papel é desempenhado, na verdade, num mecanismo de domínio que se revela sob três aspectos. Primeiro, na pretensão da explicação total. Com este objetivo, analisa não o que é, mas, sim, “o que vem a ser, o que nasce e passa” (ARENDT, 2011c, p. 522). Está preocupada com a História, isto é, com o elemento de movimento. Assim, a pretensão da explicação total é esclarecê-la, enquanto passado, presente e futuro. Segundo, na emancipação da realidade, libertando-se de toda experiência, mesmo que original, mesmo que a partir de nossos próprios sentidos, já que nada poderá sobrepujar a realidade “mais verdadeira” da ideologia, só sentida por um sexto sentido. Terceiro, na arrumação dos fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, a partir de uma premissa axiomaticamente aceita, para que tudo o mais seja dela deduzido.

“A propaganda do movimento totalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade; procura sempre injetar um significado secreto em cada evento público tangível a farejar intenções secretas atrás de cada ato político público. Quando chegam ao poder, os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas. O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração, e isso produz uma mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em seus próprios termos – a verdadeira

inimizade ou a verdadeira amizade – mas automaticamente se presume que ela significa outra coisa” (ARENDT, 2011c, p. 523).

Gerada a partir de si mesma, a argumentação ideológica fica inteiramente a salvo de qualquer experiência ulterior, já que nenhuma experiência será capaz de interferir no pensamento ideológico e nem a ideologia se deixa alterar pela realidade. Desta forma o governante totalitário usa sua ideologia como arma, com a qual cada governado pode obrigar-se a entrar em harmonia com o movimento do terror, a partir de premissas como as de que a “classe agonizante” consistia em pessoas condenadas à morte; de que as “raças indignas de viver” devem ser exterminadas17.

No nazismo, por isso, quem discordasse de que membros de “classes agonizantes” tivessem que ser mortos; ou de que era necessário matar as “raças incapazes”; ou achasse que o direito de viver não tinha nada a ver com a raça; ou era estúpido ou era covarde. Isso porque, segundo Hitler, não se pode dizer A sem dizer B. Um governo que, tendo como essência o terror e como princípio de ação a lógica do pensamento ideológico, revelou-se uma mistura nunca antes verificada nas várias formas de domínio político (ARENDT, 2011c, p. 526).

Tratava-se, o nazismo, portanto, da fabricação de um novo corpo político que tinha na glorificação da violência o meio de sua produção sob a convicção “de que a história é ‘produzida’ pelo homem”; pensada em termos de instrumentalidade, em que há evidente substituição da ação pela fabricação. A própria degradação da política transformada em mero meio de realização de fins supostamente superiores. A fabricação de um corpo político e de leis totalitários que imprimiam adesão, pelo terror, prometendo uma morada no mundo mais permanente e estável para os alemães.

Mas o terror só pode reinar assim absoluto sobre homens isolados. Sobre homens que se isolam uns dos outros. Eis porque esta é a preocupação primordial de todo governo tirânico, na medida em que o isolamento é solo fértil para que o terror nasça e floresça; porque é do isolamento que o terror sempre decorre. Porque o isolamento, que se caracteriza pela impotência, é pré- totalitário. E o isolamento se caracteriza pela impotência porque o poder só surge a partir de homens que trabalham juntos. Isolamento e impotência significam, assim, incapacidade de ação.

O isolamento da esfera política é o que se chama solidão na esfera social. Não significam a mesma coisa, portanto. Para Arendt, o isolamento ocorre quando a esfera política em que os homens agem em conjunto no interesse comum é destruída. Embora destrua o poder e a capacidade de ação, deixa intactas as atividades humanas produtivas, mas, ainda assim, é necessário ao homem. O homo

faber tende a isolar-se, para fabricar, deixando provisoriamente a esfera política. Seu isolamento só é

insuportável quando o torna incapaz de criar.

17 Assumindo um possível viés biopolítico da obra de Arendt, André Duarte faz interessante aproximação entre

os pensamentos de Agamben, Foucault e Arendt. Para Duarte, Agamben pensa que, apesar das análises exaustivas de Arendt a respeito dos campos de concentração totalitários e das mazelas das sociedades de massa, não teria ela conseguido perceber que “precisamente a transformação radical da política em espaço da vida nua (quer dizer, em um campo de concentração), legitimou e tornou necessário o domínio total. Apenas porque em nosso tempo a política passou a ser integralmente biopolítica, foi possível que ela se constituísse, em uma medida desconhecida, como política totalitária” (AGAMBEN, 2010, p. 126). No que diz respeito a Foucault, ainda segundo Duarte, Agamben acredita que, a despeito de ter sido o pensador francês quem formulou o conceito de biopolítica, ele nunca teria “trasladado sua investigação aos lugares por excelência da biopolítica moderna: o campo de concentração e a estrutura dos grandes estados totalitários do século XX” (AGAMBEN, 2010, p. 12).

Quando isso acontece, estamos num mundo com valores ditados pelo trabalho. Nessas condições só o esforço de manter-se vivo sobrevive, desaparecendo a relação do homem com o mundo enquanto criação humana. Abandonado pelo mundo das coisas o homem perde seu lugar na esfera política. E, “quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal

laborans... É aí que o isolamento se torna solidão” (ARENDT, 2011c, p. 527).

O que importa extrair disso tudo, é que a mera descrição do totalitarismo e das condições que deram azo ao seu surgimento remete-nos às democracias representativas contemporâneas constituídas em corpos políticos nas quais há inegável substituição da ação pela fabricação, e, concomitantemente, degradação da política, na medida em que somos sociedades de massa formadas por indivíduos apolíticos cumprindo as leis que realizam as ideias fundantes dos respectivos Estados-nação escolhidas arbitrariamente por uns em detrimento de muitos.

E se já somos capazes de ver nas sociedades de massa de trabalhadores e consumidores que vivem sob o regime democrático as mesmas condições apontadas por Arendt nas massas acríticas que deram oportunidade ao florescimento do totalitarismo, a “ação” de que fala, parece, de fato, algo imprescindível e urgente.