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2 O ANIMAL LABORANS E A QUESTÃO DO AGIR

2.1 Os riscos da substituição da ação pela fabricação

2.1.2 O movimento totalitário: uma massa acrítica de indivíduos isolados

2.1.2.1 A experiência nazista

O totalitarismo, ademais disso, não se satisfaz com meios externos (o Estado ou uma máquina de violência) para governar. Eliminando a distância, por assim dizer, entre governante e governados, estabelecendo uma situação na qual o poder e o desejo de poder não representam papel nenhum ou exercem um papel secundário, descobriu uma forma de subjugar e aterrorizar internamente os seres humanos por meio de sua ideologia peculiar, reservando lugar no aparelho estatal à coação.

Lembrando a Política de Platão – onde a “ação” é tida como ordenar o início de um ato (archein) e a execução de uma ordem (prattein), Hitler dizia que até mesmo “o pensamento (...) [só existe] em virtude da formulação ou execução de uma ordem” eliminando a distinção entre o pensamento e a ação, entre governantes e governados”.

“Sua ideia de domínio – a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida – é algo que nenhum Estado ou mecanismo de violência jamais pôde conseguir, mas que é realizável por um movimento totalitário acionado”(...) “Essencialmente, o líder totalitário é nada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é um indivíduo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânica e arbitrária. Como simples funcionário, pode ser substituído a qualquer momento e depende tanto do “desejo” das massas que ele incorpora, como as massas dependem dele” (ARENDT, 2011c, p. 375). Pior que isso era a idéia da produção da história. A ideia do “império mundial germânico”, ou do império mundial “ariano”, no dizer de Himmler, e como preferia Hitler, império que viria dali a séculos. “Para o movimento, era mais importante demonstrar que era possível fabricar uma raça pela aniquilação de outras ‘raças’ do que vencer uma guerra de objetivos limitados” (ARENDT, 2011c, p. 462). Como o totalitarismo no poder manteve-se fiel aos dogmas originais do movimento, levou-se ao governo a divisão entre membros do partido e simpatizantes em organizações de vanguarda que levou à “coordenação” de toda a população agora organizada como simpatizantes.

O grande aumento de simpatizantes era controlado reservando a força partidária a uma determinada classe privilegiada (de alguns milhões), criando, ao mesmo tempo, um superpartido de

várias centenas de milhares, as chamadas formações de elite16. Assim é que a máquina estatal se

transforma numa organização de vanguarda de burocratas simpatizantes que tem a função de propagar confiança entre as massas de cidadãos “coordenados” e que tinham em suas relações exteriores a burla do mundo exterior não-totalitário.

De outro lado, a “guerra psicológica” do totalitarismo se revela também na propaganda que faz do regime; bem como no uso do terror. É que, meio a um mundo não totalitário, os movimentos totalitários recorrem à propaganda sempre dirigida a um público externo (às camadas não-totalitárias da população do próprio país e os países não-totalitários do exterior) que ditam sua necessidade.

“Sempre que uma doutrinação totalitária no país de origem entra em conflito com a linha de propaganda para consumo externo (como na Rússia, durante a guerra, quando Stalin teve que se aliar as democracias para combater Hitler), a propaganda é explicada no país de origem como temporária “manobra tática”. Estabelece-se logo na fase anterior a tomada do poder, a diferença entre a doutrina ideológica destinada aos iniciados do movimento, que já não precisam de propaganda, e a propaganda para o mundo exterior. (...) A relação entre a propaganda e a doutrinação depende do tamanho do movimento e da pressão externa. Quanto menor o movimento, mais energia despenderá em sua propaganda. Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre os regimes totalitários mais ativa será a propaganda totalitária” (ARENDT, 2011c, p. 392).

“A doutrinação, aliada ao terror, cresce na razão direta da força do movimento ou do isolamento dos governantes totalitários que os protege da interferência externa” (ARENDT, 2011c, p. 393). Mas, mesmo após atingir o seu objetivo psicológico, o regime totalitário continua a empregar o terror. A propaganda instrumentaliza o totalitarismo para enfrentar o mundo não-totalitário; e o terror constitui, então, a essência da sua forma de governar. Uma passagem de “Eichmann em Jerusalém”, relatada por Arendt, é capaz de expor terror, lealdade ao regime, irreflexão, a banalidade do mal, enfim, o totalitarismo nazista em espécie:

“De vez em quando, a comédia despenca no horror, e resulta em histórias – provavelmente verdadeiras – cujo humor macabro ultrapassa facilmente todo invento surrealista. A história do infeliz Kommerzialrat Storfer, de Viena, contada por Eichmann durante seu interrogatório na polícia, era desse tipo. Eichmann recebeu um telegrama de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, revelando que Storfer havia chegado e solicitava urgentemente ver Eichmann. “Eu disse comigo mesmo: tudo bem, esse homem sempre se comportou bem, vale a pena [...] Eu mesmo vou lá e vejo qual é o assunto dele. E vou até Ebner [chefe da Gestapo em Viena], e Ebner diz assim – só me lembro vagamente – ‘Se ele pelo menos não fosse tão desastrado; ele se escondeu e tentou escapar’, alguma coisa assim. E a polícia o prendeu e mandou para o campo de concentração, e segundo as ordens do Reichsführer [Himmler], ninguém podia sair, depois de entrar num deles. Nada se podia fazer. Nem o dr. Ebner, nem eu, nem ninguém podia fazer alguma coisa a respeito. Fui para Auschwitz e pedi a Höss para ver Storfer. ‘Claro, claro [Höss disse], ele está num dos grupos de trabalho forçado.’ Com Storfer, depois, bom, foi normal e humano, tivemos um encontro normal e humano. Ele me falou de todo o seu sofrimento, sua dor: eu disse: ‘Bom, meu querido amigo [Ja, mein lieber guter Storfer], sobrou

16 A multiplicação de cargos, a duplicação de funções e a adaptação do relacionamento do simpatizante a essas

novas condições significam simplesmente a conservação da estrutura peculiar do movimento, no qual cada camada é a vanguarda da próxima formação mais militante.

para nós! Que falta de sorte!. E eu disse também: ‘Olhe, eu não posso mesmo ajudar você, porque as ordens do Reichsführer são de ninguém sair. Não posso tirar você. O dr. Ebner também não pode. Soube que você cometeu um grande erro, que você se escondeu ou quis se trancar, coisa que afinal você não precisava fazer’ [Eichmann queria dizer que Storfer, como funcionário judeu, tinha imunidade de deportação.] Não me lembro da resposta dele. E aí perguntei como estava. E ele disse, bem, perguntou, se não podia ser dispensado do trabalho pesado. E eu então disse a Höss: ‘Storfer não vai ter de trabalhar!’. Mas Höss disse: ‘Todo mundo trabalha aqui’. Então eu disse: Certo, vou escrever uma nota para solicitar que Storfer fique cuidando dos caminhos de cascalho com uma vassoura’, havia uns caminhos de cascalho lá, ‘e que ele tem o direito de sentar com sua vassoura num dos bancos’. [Para Storfer] eu disse: ‘Está bom assim, Sr. Storfer? Está bom para o senhor?. Com isso ele ficou muito contente, e apertamos as mãos, e ele recebeu a vassoura e sentou no banco. Isso foi uma grande alegria interior para mim, poder ao menos ver esse homem, com quem trabalhei durante tantos anos, e ver que poderíamos conversar.” Seis semanas depois desse encontro normal, humano, Storfer foi morto – aparentemente não na câmara de gás, mas fuzilado” (ARENDT, 2011a, p. 63).

Também era perturbador “o modo pelo qual tratavam a questão constitucional” (ARENDT, 2011c, p. 444). Sem abolir a Constituição de Weimar, os nazistas fizeram uma avalanche de leis e decretos. Após a promulgação das Leis de Nuremberg – leis que baniram os judeus de todos os aspectos da vida nacional alemã – ficava patente o desrespeito dos nazistas por suas próprias leis. Caminhavam por setores sempre novos, mas, ao final, suas instituições estatais ou partidárias criadas não podiam definir-se pelas normas que as regiam. Normas que muitas vezes sequer eram de domínio público, já que, segundo Hitler, o “Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética”. A lei, idêntica à ética, emanaria da consciência de todos, não havendo, por isso, necessidade de qualquer decreto público.

Há, também, desde o começo, a procura consciente por manter todas as diferenças essenciais entre o Estado e o movimento, a fim de evitar que as instituições “revolucionárias” do movimento fossem absorvidas pelo governo (ARENDT, 2011c, p. 469). Para tanto, apenas aqueles membros do partido de importância secundária podiam ascender na hierarquia do Estado, e todo o poder de verdade era depositado nas instituições do movimento, fora da estrutura estatal e do exército alemão.