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A ilimitabilidade da “ação” e seu poder constituinte

2 O ANIMAL LABORANS E A QUESTÃO DO AGIR

2.2 A “ação” arendtiana

2.2.1 A ilimitabilidade da “ação” e seu poder constituinte

A ação e o discurso, porque estão sempre circundados pela “teia” de atos e palavras de outros homens, sempre estabelecem relações tendo por tendência o rompimento de todos os limites e a transposição de todas as fronteiras. Daí a necessidade das leis e das instituições humanas, cuja fragilidade independe da fragilidade da natureza humana.

Existem, pois, limites e fronteiras no domínio dos assuntos humanos, mas estes não constituem estrutura capaz de uma resistência “confiável ao assalto por meio do qual tem de se inserir nele cada nova geração” (ARENDT, 2010a, p. 238), e nunca são, por isso, salvaguarda segura até mesmo em face da ação advinda de dentro do próprio corpo político, assim como as fronteiras territoriais estão inseguras quanto a ações a elas externas. A isso Arendt chama de ilimitabilidade da ação:20.

“As cercas que circundam a propriedade privada e protegem os limites de cada lar, as fronteiras territoriais que protegem e tornam possível a identidade física de um povo e as leis que protegem e tornam possível sua existência política têm tamanha importância para a estabilidade dos assuntos humanos precisamente porque nenhum de tais princípios limitadores e protetores resulta das atividades que transcorrem no próprio domínio dos assuntos humanos” (ARENDT, 2010a, p. 239).

Nesse passo importa observar que quando Arendt fala de ação está a falar de poder. Vigor, para ela, diz respeito a uma só pessoa ou pertence a um objeto. Poder diz respeito à pluralidade, a pessoas que agem juntas. Assim, quando explica o que seja a “ação”, Arendt fala, à miúde, de poder. De um poder capaz de permanentemente constituir o novo e que nela se revela e com ela se identifica. O corpo político seria, por conta desse poder que emana naturalmente da pluralidade, um artefato humano exatamente para conviver com a ilimitabilidade, a irreversibilidade e a imprevisibilidade da ação.

A ação seria, por isso, o antídoto contra o totalitarismo, na medida em que se presta à expressão de nossa pluralidade. E o corpo político que a exclui, a forma de o governante se acautelar do poder que dela emana. É por conta dessa característica da ação que as limitações e fronteiras se estabelecem em todo corpo político, a fim de oferecer certa proteção em face dela. Contudo, esta proteção é totalmente impotente tendo em vista uma segunda característica da ação, que é a sua imprevisibilidade.

20 A ilimitabilidade da ação é o que parece ter invocado, segundo Arendt, a antiga virtude política da moderação

Apesar de Platão e Aristóteles, segundo Arendt, terem promovido os atos de legislar e de construir cidades ao topo da vida política, não podemos, com isso, concluir que tenham fomentado as experiências fundamentais da ação e da política na Grécia Antiga para incluir a legislação e a fundação no gênio político de Roma. Para ela, foi Sócrates que se voltou para essas atividades consideradas pré-políticas para os gregos que queriam exatamente combater a política e a ação. “Para os socráticos, o ato de legislar e a tomada de decisões pelo voto eram as mais legítimas atividades políticas, porque nelas os homens ‘agem como artesãos’” (ARENDT, 2010a, p. 244).

Contudo, a rigor, isso não se trata ainda da ação que Arendt refere. Primeiro, porque o resultado da ação dos artesãos é tangível; depois, porque se refere a um processo que tem um fim claramente identificável. Para Arendt, a obra, tal qual considerada pelos gregos, pode, no entanto, tornar-se “conteúdo da ação” quando qualquer ação subsequente for “indesejável” ou “impossível”; e seu significado “autêntico, intangível e frágil” seja sempre “destruído” (ARENDT, 2010a, p. 245). Foi exatamente o compartilhamento de atos e de palavras o remédio grego encontrado para essa fragilidade, com a fundação da pólis.

Assim é que a antiga pólis grega parecia assegurar que as mais fúteis atividades humanas, “a ação e o discurso, e que os menos tangíveis e mais efêmeros ‘produtos’ do homem, os feitos e as estórias que deles resultam, se tornariam imperecíveis” (ARENDT, 2010a, p. 247). Sua organização, enquanto poder constituído, garantida por suas leis era, no entanto, uma espécie de “memória organizada” com o intuito de que as gerações futuras não mudassem sua identidade a ponto de não mais reconhecê-la21.

Manter um Poder Constituído à forma de “quem” o instituiu, permanentemente, é como se os que regressaram da guerra de Tróia, diz metaforicamente Arendt, quisessem fazer permanente “o espaço da ação que havia surgido de seus feitos e sofrimento e impedir que este espaço desaparecesse com a dispersão deles e o regresso de cada um a seus domicílios isolados” (ARENDT, 2010a, p. 247). Mas, como a pólis não é sua estrutura física, e sim sua organização de pessoas resultante da ação e do discurso em conjunto, seu verdadeiro espaço é o espaço das aparências, que se localiza entre homens que vivem com o propósito de nela permanecerem juntos.

Espaço da aparência que sempre existirá quando os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação, “e, portanto, precede toda e qualquer constituição formal do domínio público e as várias formas de governo, isto é, as várias formas possíveis de organização do domínio público” (ARENDT, 2010a, p. 249). Como esse espaço sempre existirá em potência onde e quando as pessoas se reunirem, e dadas as pretensões de permanência do Poder Constituído, impõe-se a “ação”, enquanto permanente movimento na vida política dos homens.

Poder não se armazena nem se mantém em reserva para emergências, como acontece com a violência. Só existe em sua efetivação. Não efetivado, perde-se. E só se efetiva por palavras e atos que não se divorciam. Por palavras não vazias, que não velam intenções, mas que desvelam

21 Aqui nos parece possível relacionar o que Arendt chama de “memória organizada” pelo poder constituído com

a questão da “segurança jurídica” tão cara ao Direito, como faz, por exemplo, Vera Regina Pereira de Andrade em seu livro A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal (ANDRADE, 2003), e Alessandro Nepomuceno, em Além da Lei (NEPOMUCENO, 2004).

realidades; e por atos não violentos, que não violam nem destroem, pelo contrário, estabelecem relações e criam (constituem) novas realidades.

O poder só existe entre homens, quando agem juntos, e se desfaz no momento em que dispersam. Com essa característica peculiar comum às “potencialidades que podem apenas ser efetivadas, mas nunca inteiramente materializadas”, o poder revela sua independência dos fatores materiais. “O único fator material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Estes só retêm poder quando vivem tão próximos uns aos outros que as potencialidades da ação estão sempre presentes” (ARENDT, 2010a, p. 251).