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A separação entre público e privado: a questão da “esfera social”

4 O ANIMAL LABORANS E AS QUESTÕES CONTRA ARENDT

4.1 A separação entre público e privado: a questão da “esfera social”

A separação entre público e privado e o surgimento da “esfera do social” talvez seja o ponto mais criticado da teoria arendtiana. Quando Arendt separa, de modo inflexível, o público do privado, muitos temas tipicamente políticos parecem ser excluídos da política, mantidos, por ela, na esfera privada, como no caso da discussão que faz acerca da Revolução Francesa26. É, em geral, crítica como esta a mais ocorrente, que a toma como alguém contra o Estado-providência, na medida em que um Estado assim estaria a confundir, ao rigor de sua teoria, questões privadas com assuntos públicos. Os problemas de família, entre parceiros, sexismo, racismo, homofobia, preconceitos sociais ficariam, com isso, na esfera privada, a salvo da discussão pública27.

Margaret Canovan, uma das primeiras a ver problemas no conceito do “social” de Arendt, alega haver nessa teorização duas correntes de significado, separadas e incompatíveis entre si. Na primeira, baseado na administração doméstica dos gregos antigos, o social, dizendo respeito aos domínios privado e biológico, estaria a desviar o foco das questões políticas para as necessidades e carências biológicas. Na segunda, o termo sociedade estaria ligado à noção de alta sociedade que, mediante modas e pressões sociais, estaria a promover a conformidade em detrimento da distinção inerente à liberdade. Canovan, por isso, acredita que Arendt não conseguiu explicar como esses dois significados podem ocorrer simultaneamente, na medida em que o termo “social”, tal qual alude, recai sobre todas as classes ao mesmo tempo. As que comandam e as que são comandadas.

Também não parece razoável a Canovan crítica às classes trabalhadoras por concentrarem- se em suas necessidades vitais em vez de preocupações políticas com a liberdade, conquanto, na verdade, questões como essas só podem ser compreendidas exatamente por quem está livre do trabalho. Noutra medida, haveria outra bivalência na teoria arendtiana. É que, segundo ela, há, para Arendt, uma grande quantidade de poder positivo na ação livre, e, também, negativo, autodestrutivo, em relação ao desenvolvimento de tecnologia. Mas, de outro lado, e ao mesmo tempo, os humanos seriam, de algum modo, impotentes, em face das forças da sociedade e do totalitarismo (CANOVAN, 1974, p. 105-108).

Hanna Pitkin, em o ataque da bolha: o conceito do social de Hannah Arendt é quem faz, no entanto, a crítica mais famosa a respeito do conceito arendtiano de esfera social, tentando demonstrar haver múltiplas ambiguidades conceituais no termo, ligando esta categoria à bolha do filme de terror de 1950. Para ela, Arendt teria criado algo que parece devorar as pessoas como se esta esfera fosse uma entidade, com intenções, a ameaçar com massificação e conformidade (PITKIN, 1998, p. 4 e 16).

Para Pitkin, a noção arendtiana do social parece se focalizar no econômico e na rejeição da pensadora ao comunismo e ao Estado-providência. Pitkin concorda com Arendt no sentido de que o

26 Richard J. Bernstein, sob este aspecto, alega ser ilusório o pensamento de Arendt, porque a definição do que

seja um problema privado, público ou social, pode ser a questão definitiva da política (BERNSTEIN, 2006, p. 248). Eli Zaretsky, discordando de Arendt, assevera que as questões econômicas são fundamentais para qualquer grupo oprimido na sociedade moderna (ZARETSKY apud CALHOUN, C.; McGOWAN, J., 1997, p. 225).

27 Para John MacGowam, por exemplo, se a regulamentação dos negócios privados e problemas de abuso dentro

da família estão no âmbito privado, ficariam, então, também, fora do domínio da política (McGOWAN, 1998, p. 49).

social parece representar uma coletividade de pessoas que são incapazes da política, mas não lhe parece possível que algo aparentemente externo como o social possa interferir no processo político em si (PITKIN, 1998, p. 250).

De fato, a forma com que Arendt descreve o social, em “A condição humana”, é polêmica. Mas é possível extrair da diferenciação que faz entre público, privado e social, distinções coerentes e que podem ser aplicadas a situações políticas comuns, para seu propósito último, que é diagnosticar o que estamos fazendo a fim de nos prevenir do totalitarismo.

O que parece ser fundamental para ela, aqui, é que o crescimento do social associa-se ao crescimento do poder do Estado e, consequentemente, à diminuição do espaço reservado aos indivíduos para decidirem questões privadas. É como se ela quisesse dizer, por exemplo, que o Direito – que distingue o público do privado e estes do social, disciplinando-os no espaço público – deve estar submetido à “ação”, e não ao governante. À luz do “interesse social”, cada vez mais, vemos, hoje, o Estado, pelo Direito, falar mais sobre como devemos nos comportar na esfera privada. Parece inegável que, de fato, quanto mais se intensifique o processo nesse sentido, menos espaço haverá para, na privatividade, deliberar-se sobre assuntos privados os quais o Estado já tenha definido devam ser conduzido em certo sentido.

A “ação” de Arendt é inovadora, e como se realiza mediante total imprevisibilidade, supera as fronteiras estabelecidas pelas leis. Quando a política é realizada livremente, por atos e palavras, excede o Direito posto, que, ao ter-se fixado numa dada solução positivada num dado momento, acaba por cercear a produtividade política acerca do novo. Se o interesse social – na verdade uma espécie de “interesse único” sujeito sempre a noções pré-estabelecidas do que isso seja – está na base do discurso político da produtividade jurídica, parece acertado dizer que tanto mais próximos do totalitarismo estaremos quanto mais o social avançar na disciplina da vida privada das pessoas, à luz desse pretenso “interesse único”.

Vista desta forma, a separação entre o público e o privado, e o surgimento da esfera social, parecem dizer respeito, de fato, aos domínios privado e biológico, afeto ao animal laborans, denunciando a “necessidade” como o novo “absoluto” do Estado Moderno, mas sem a incompatibilidade asseverada por Canovan, na medida em que aplicável a quaisquer parcelas da sociedade, como pode se ver, claramente, do exemplo do Direito, seara em que é possível perceber os dois significados por ela registrados atuando simultaneamente. Dizer-se, então, que questões como essas só podem ser compreendidas exatamente por quem está livre do trabalho, ao invés de refutar, apenas confirma o diagnóstico feito por Arendt de que, a sociedade de massa constituída de trabalhadores consumidores, isolados que estão nessa atividade, constitui campo fértil ao ressurgimento do totalitarismo. Em razão, vale repetir, da massificação e da conformidade que caracteriza a sociedade moderna na qual sobrepuja o animal laborans, já respondendo também a Pitkin.

Com relação à outra bivalência denunciada por Canovan, no sentido de que há, de um lado, uma grande quantidade de poder positivo na ação livre propugnada por Arendt, e, de outro, negativo, autodestrutivo, em relação ao desenvolvimento de tecnologia, ao mesmo tempo em que os humanos seriam, de algum modo, impotentes, em face das forças da sociedade e do totalitarismo, não vemos

como admiti-la. Trata-se de uma constatação que faz Arendt. Ao mesmo tempo em que o homem foi capaz de gerar energia elétrica e as comodidades dela decorrentes, também foi capaz de construir a bomba atômica. E, a despeito das forças da sociedade e de todo poder capaz de emanar da pluralidade na defesa dos direitos humanos, o totalitarismo se impôs e fez acontecer o holocausto. A bivalência aqui denunciada será então do próprio homem que Arendt apenas diagnostica e que pode ser entendida no âmbito da “fragilidade” ou da “acidentalidade” dos assuntos humanos que, segundo Arendt, os modelos de corpos políticos pretendem evitar, desde Platão.

Mas como poderia, então, o animal laborans, com as noções que encerra, responder a essa crítica em especial?

Como visto, a divisão entre público e privado, assim como a noção de “esfera social” se relacionam, intimamente, com o animal laborans. A “esfera social” – isto é, a sobreposição das esferas pública e privada – é a expressão arendtiana da vitória do animal laborans; da privativização do público e da publicização do privado. Na compreensão de Arendt, representa o fim da política, e com ele, a ideia de que estamos todos, trabalhadores e consumidores que somos, sujeitos a quaisquer espécies de violência. Nesse contexto, a divisão entre público e privado é o meio encontrado por Arendt, já vimos como, para expor em que medida o Estado já avançou sobre a esfera privada de cada animal laborans que integra a sociedade de massa, mas, também, quanto pode ainda avançar sob a égide do “social”.