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A questão do “elitismo” (ou do individualismo) do pensamento de Arendt

4 O ANIMAL LABORANS E AS QUESTÕES CONTRA ARENDT

4.3 A questão do “elitismo” (ou do individualismo) do pensamento de Arendt

Também é oposta ao pensamento de Arendt, crítica no que diz respeito a um pretenso elitismo de sua teoria, em especial por ela ter buscado sua noção de ação política na Grécia e Roma antigas, onde se vivia em situações fortemente desfavoráveis às mulheres e aos escravos. Era em sacrifício destes que se conquistava a liberdade para engajar-se na política. Além disso, dizer que o ator político é aquele que se sobressai e se distingue pela ação parece se voltar para uns em detrimento de todos; parece voltar-se àqueles que participam mais apropriadamente da política e que,

30 Sobre se a razão comanda a vontade, Arendt remete-se a Kant, para quem “a vontade é a faculdade de escolher

apenas o que a razão [...] reconhece como [...] bom” (KANT, 2008, p. 29).

31“Mesmo a bíblia, onde todas as falhas humanas ocorrem em algum trecho, silencia a respeito, pelo que eu

saiba; e essa talvez seja a razão por que Tertuliano e também Tomás de Aquino, numa santa inocência, por assim dizer, contaram a contemplação dos sofrimentos no inferno entre os prazeres a serem esperados no paraíso. O primeiro a ficar realmente escandalizado com isso foi Nietzsche (Genealogia da moral, I, 15)” (ARENDT, 2004, p. 137).

32 Utópica no que diz respeito à avaliação otimista das naturezas morais da humanidade, e não enquanto teoria

para tanto, requerem qualidades superiores, em prestígio dos mais talentosos em detrimento dos demais33.

Margaret Canovan também vê uma tensão na teoria política arendtiana e a inclusividade que os ideais democráticos exigem, por Arendt priorizar o ator político. Segundo Canovan, mesmo que às massas fosse permitida a participação no governo, isso não significa que elas saberiam distinguir o que é bem comum para o povo (CANOVAN, 1994, p. 199-200). Na opinião de Pitkin, a teoria de Arendt refere-se a “menininhos exibidos, reclamando atenção”, numa espécie de ostentação à singularidade que acaba por descartar a análise das preocupações mais sérias da comunidade34, observando como ambíguo o fato de Arendt colocar foco na individualidade, na medida em que isso parece significar despreocupação com o conteúdo da ação.

Arendt, de fato, não explicita diferenças de sua teoria para a teoria política grega a que faz referência. No entanto, fala da injustiça do modelo grego da pólis na medida em que tirava vantagens dos não cidadãos para a libertação das necessidades do trabalho de uns em detrimento de muitos, que ela refere como “exploração” (ARENDT, 2000, p. 172). Para ela, é possível a liberação do homem em face de suas necessidades pelos avanços tecnológicos, em vez de maior opressão (ARENDT, 2000, p. 171). Ou seja, por ser contrária a um modelo político baseado em relações domésticas, é possível falarmos, sim, de uma igualdade arendtiana partilhada por todos35.

Mesmo porque Arendt defende uma política que se realiza debaixo para cima com o partilhar horizontal do poder. É enfática em criticar o modelo político que se realiza de cima para baixo, que implica em um poder vertical e hierárquico. Sua visão de política, por isso, indica formas participativas de governos, o que está a afastar o alegado elitismo de sua teoria. Pelo contrário, o que Arendt diz a respeito dos conselhos como o melhor lugar para essa participação política está a mostrar uma política aberta a todos.

Quanto ao pretenso foco na individualidade, tal qual afirma Pitkin, é de se asseverar que se para Arendt o antídoto do totalitarismo está na “ação” é porque acredita no poder que emana de todos, na pluralidade, enquanto manifestação do interesse comum no espaço público. Assim é que,

33 Hauke Brunkhorst é um dos que pensa assim, alegando que Arendt teria criado duas noções incompatíveis

entre si de liberdade. Uma versão igualitária com base no pensamento cristão de Agostinho; e outra com base no pensamento elitista Greco-romano (BRUNKHORTS, 1999, p. 178). Sua noção de liberdade estaria fortemente ligada a uma interpretação que não considerava a igualdade entre todos, o que o leva a ser cético quanto a teoria de Arendt.

34 Para John McGowam, de sua vez, é preciso esclarecer como seria o processo para se conquistar atenção dos

outros na ação política. Se haverá uma competição acirrada no espaço público ou se haverá exclusão de uns, do palco político, em razão de sua não qualificação.

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André Duarte faz um comentário interessante sobre o assunto que bem traduz a noção que se pretende aqui elucidar: “Eis como defino o projeto de reflexão político-filosófico de Hannah Arendt: uma descrição fenomenológica daquilo que a experiência política pode ser, a partir de uma análise de fragmentos das experiências políticas que inventaram a democracia e a república, tendo em vista compreender certas experiências políticas marginais do presente, as quais guardam consigo a memória das determinações da política democrático-radical originária. Nem saudosismo nostálgico, satisfeito em lamentar aquilo que ‘foi’ a política antiga; nem a arrogância teórica de pretender determinar, pela construção racional de modelos normativos jurídico-políticos, aquilo que a (boa) política ‘deve’ ser; antes, e por outro lado, a discussão daquilo que ‘é’ a política, à luz da descoberta, no passado, daquilo que ela ainda pode ser, hoje e no futuro” (DUARTE, 2006, p. 11).

falar da “ação” promovida pelo ator político esquecendo-se desta circunstância deturpa, por assim dizer, o pensamento arendtiano.

Para Kohn, a quem recorro para fortalecer esta posição, a proposta de Arendt é atingir este objetivo por meio do que chama de “razão comunicativa” que só se realiza coletivamente. Por intermédio da persuasão do discurso busca-se, em cada interlocutor, sem qualquer elemento de constrição ou de engano, o reconhecimento da qualidade da argumentação dos demais, tendo em vista o consenso. Não havendo a persuasão nesses moldes, o que haverá é a manipulação e a propaganda próprias dos regimes totalitários. Persuadir, para Arendt, significa debater livremente para, dessa forma, chegar à opinião comum que torna possível o compartilhar solidário do destino de todos.

Todos os homens livres possuem poder, segundo Arendt. Por isso, o poder é uma pré- condição para a ação política. Para ela, poder é capacidade de ação, mas, em especial, de “agir em comum acordo”. E se o poder pertence a um grupo e só existe enquanto este grupo permanece unido, não poderá ser nunca propriedade de um só indivíduo. O poder é essencialmente intersubjetivo. Ao ser exercido pelo discurso e pela ação constitui-se como a própria expressão da pluralidade, importando, nesse passo, que cada indivíduo participante do debate desenvolva sua própria capacidade para defender seus direitos no exercício de sua liberdade na esfera pública.

Ao contrário da força, que é atributo e propriedade de cada homem em seu isolamento frente a todos os demais, o poder somente está presente onde os homens se reúnem com o propósito de realizar algo comum, e cessará de existir quando, por qualquer motivo, estes se dispersem ou separem. Portanto, os vínculos e promessas, a reunião e o pacto são meios pelos quais o poder se conserva; sempre e quando os homens conseguem conservar intacto o poder que surgiu em seu meio durante o curso de uma ação ou empreendimento determinado, pode se dizer que se encontra em pleno processo de fundação, de constituição de uma estrutura secular estável que dará abrigo, por assim dizer, ao poder coletivo da ação (ARENDT, 2011d, p. 228).

Por outro lado, as noções de contrato e de promessas propugnadas por Arendt devem ser entendidas como um acordo deliberado como algo moralmente correto, e não como algo que os debatedores concordem, cada qual, em sacrificar algum interesse seu em prol de uma avença minimamente aceitável. O que Arendt pretende aqui, é que cada um dos afetados por uma norma ou por sua práxis a aceite porque foi plenamente convencido das razões aduzidas para a sua produção, tendo em vista as prescrições anunciadas satisfazerem interesses passíveis de ser generalizáveis, numa prática discursiva que só pode ocorrer em espaços públicos não manipulados. Ou seja, o poder deve, pela persuasão, formar uma vontade comum por intermédio de um processo comunicativo sempre orientado pela vontade de alcançar o entendimento.

Assim é que se pode dizer que, de fato, se ao animal laborans fosse dada a palavra no espaço público para a defesa do interesse comum, o esforço provavelmente será mesmo em vão, já que se trata de alguém que não habita um mundo comum, e, como tal, não pode sequer perceber o que seja o interesse a ser compartilhado por toda a comunidade. Esta circunstância não fortalece a posição de Canovan e Pitkin, mas a de Arendt, na medida em que as primeiras, sem perceber, referem-se ao efeito produzido pela substituição da ação pelo fazer promovida pelo modelo do corpo

político, tal qual critica Arendt que, pelo contrário, extrai do mesmo fenômeno as condições pré- totalitárias que identifica no animal laborans. Nesse contexto, importando a Arendt preservar a

pluralidade na criação do poder para, concomitantemente, fazer confluir opiniões distintas, o

individualismo ou elitismo criticado por Canovan e Pitkin perdem totalmente o sentido.