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A analogia do relógio e do relojoeiro

2 O ANIMAL LABORANS E A QUESTÃO DO AGIR

2.1 Os riscos da substituição da ação pela fabricação

2.1.1 A analogia do relógio e do relojoeiro

Arendt encontra no exemplo do relógio e do relojoeiro, uma analogia que favorece o esclarecimento que ora se quer feito, no sentido de que o funcionamento do corpo político, enquanto máquina inventada pelo homo faber, e o esforço realizado pelo homem nesse âmbito, fundem-se em um autômato só. O relógio funciona como um autômato. Os homens que o fazem funcionar também. Indivíduos que funcionam como peças, mas que não olham nem para o relógio e nem para a parede em que está fixado; olham somente para si mesmos.

Essa analogia revela que o corpo político é passível de ser construído segundo um modelo de uma máquina, por alguém que, dominando as técnicas dos assuntos humanos (ARENDT, 2010a, p. 283), encontrando os elementos pré-totalitários para tanto – indivíduos isolados no trabalho, que não pensam, tornados autômatos pelo modo de vida que levam – coloca-a em funcionamento para dominar os membros da comunidade retirando todos do espaço público destinado à deliberação a respeito do interesse comum. Impossibilitando-os de agir, como fez Hitler – em uma espécie de apropriação macabra desse modelo – em face do Nazismo.

A imagem do relógio e do relojoeiro é mesmo muito adequada na medida em que “contém tanto a noção de um caráter processual da natureza na imagem dos movimentos do relógio quanto a noção do seu caráter de objeto ainda intacto, na imagem do próprio relógio e do fabricante” (ARENDT, 2010a, p. 372). Arendt, nesse contexto, fala sobre as tentativas feitas no século XVII com o objetivo de formulação de novas filosofias políticas; de inventar meios e instrumentos com os quais se pode “produzir um animal artificial... o Commonwealth [a comunidade] ou Estado”. E que “o primeiro motor foi a dúvida”, e a introspecção o método escolhido para estabelecer a “arte do homem”, que lhe permitiria produzir e governar seu próprio mundo como “Deus produziu e governa o mundo pela arte da natureza”.

A introspecção a que alude Arendt enquanto método é fundamental para a compreensão deste processo, na medida em que exprime que o ser humano, tornado animal laborans, além de experimentar o isolamento que lhe desampara, além do mecanicismo e do automatismo de seu modo de vida na modernidade, é alguém que não olha para o que acontece no mundo; pelo contrário é alguém que está voltado para dentro de si, desde Descartes. Platão teria partido de fora do sujeito para desenvolver seu modelo, mas, os modernos, pelo contrário, a partir do próprio sujeito. Ambos, no entanto, para a exclusão dos governados do âmbito das decisões a respeito dos assuntos humanos. Os modernos, então, aprofundaram ainda mais o abismo existente entre governante e governados e a distância que há entre cada membro da comunidade política.

Assim é que Arendt reflete sobre a introspecção como uma espécie de arte de ler em si mesmo a semelhança que há entre os pensamentos e paixões de cada um dos homens (ARENDT, 2010a, p. 373). Isto porque as paixões dos homens se encontram, pela introspecção, na interioridade humana. Ou seja, construímos e julgamos o corpo político, “a mais humana de todas as obras de arte”, obedecendo a regras e critérios que se encontram dentro, e não fora, do homem, o que desvela a imagem do relógio aplicada, primeiro, ao corpo humano, e depois, aos movimentos das paixões. “O estabelecimento do Commonwealth, a criação humana de ‘um homem artificial’, equivale à construção de um ‘autômato’[uma máquina] que [se] move por meio de molas e rodas, como um relógio” (ARENDT, 2010a, p. 374).

O estado e a própria comunidade, seriam, então, uma máquina – uma máquina que nos condiciona –; um artefato humano fabricado pelo homo faber. Mas “os processos da vida interior, encontrados nas paixões mediante a introspecção, podem tornar-se critérios e regras para a criação da ‘vida automática’ daquele ‘homem artificial’ que é ‘o grande leviatã’” (ARENDT, 2010a, p. 374). A idealização da máquina nazista, nesse contexto, teria ocorrido movida pelas paixões de Hitler; e o movimento totalitário que a consolidou, do compartilhamento dessas paixões pelos integrantes da massa que a operava.

Um exemplo prático disso pode ser extraído de “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal”, outra obra de Arendt publicada em 1963. Trata-se da narração do desenrolar do julgamento de Adolf Eichmann, um dos arquitetos da “solução final”, na verdade um arrivista pouco inteligente pronto a obedecer quaisquer ordens do Führer12. Se de um lado, esta obra

12 “Hannah Arendt considera Eichmann um personagem banal não só por ser uma figura comum, sem qualquer

expressa a possibilidade de um corpo político construído segundo um modelo de uma máquina, por alguém que, dominava as técnicas dos assuntos humanos, por outro, revela o ponto a que pode chegar o mecanicismo que Arendt refere. Numa passagem podemos ver como o próprio Eichmann descreve cada componente do mecanismo do relógio nazista como “pequenos dentes”:

“Eichmann admitiu, como já havia admitido na entrevista a Sassen, que ele “não recebeu seu encargo com a apatia de um boi sendo levado para o curral”, que ele era muito diferente daqueles colegas “que nunca tinham lido um livro básico [o Judenstaat de Herzl], meditado sobre ele e absorvido seu texto, absorvido com interesse”, e que portanto não tinham “relação interna com seu trabalho”. Eles “não passavam de burros de carga”, para quem tudo era decidido “por parágrafos, por ordens, que não se interessavam por mais nada”, que eram, em resumo, exatamente os “pequenos dentes da engrenagem” que, segundo a defesa, o próprio Eichmann havia sido. Se isso significava nada mais que prestar obediência cega às ordens do Führer, todos eles haviam sido pequenos dentes da engrenagem – até mesmo Himmler, que, conforme revela seu massagista, Felix Kernsten, não recebeu a Solução Final com grande entusiasmo, e Eichmann garantiu ao interrogador policial que seu próprio chefe, Heinrich Müller, jamais teria proposto nada tão “bruto” quanto o “extermínio físico”” (ARENDT, 2011a, p. 70-71).

Eichmann era, pois, apenas uma pequena engrenagem. Que apenas cumpria as ordens do

Führer, automaticamente, irrefletidamente, mas que acabou, contudo, por constituir-se numa espécie

de confluência entre a capacidade humana destrutiva e a burocratização da vida pública – o que Arendt acabou por chamar de “banalização do mal”13. Daí porque comportar-se, simplesmente, para

Arendt, é estar a reboque dos acontecimentos que de sua vez, constitui um movimento permanente de realização do modelo do corpo político em voga, onde tudo acontece para confirmar seus fundamentos. Daí o temor de Arendt acerca do conformismo moderno em face do totalitarismo.