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3. ANÁLISE DAS TRADUÇÕES

3.8 A imagem da personagem Mary Poppins

Provavelmente, a primeira imagem de Mary Poppins que vem à mente é a de uma figura feminina voando com seu guarda-chuva e maleta sobre a cidade de Londres (Lawson, 1999, p. 2; Vasconcelos, 2014, p. 185). Em nossas cabeças, há também um conceito mais profundo de Mary Poppins como uma pessoa boa e gentil que cuida das crianças com carinho e atenção, garantindo uma infância se-gura e uma solução para o eterno problema do equilíbrio entre as demandas do-mésticas e profissionais (Lawson, 1999, p. 2). O responsável pela disseminação dessa imagem no mundo não foi o livro Mary Poppins de Travers, mas o filme homônimo dos Estúdios Disney de 1964, dirigido por Robert Stevenson, como já

29 Grieco opta por traduzir very white babies por mininos brancos brancos, usando o primeiro

branco provavelmente para designar a raça (conceito em geral considerado pedagógica e moral-mente incorreto na contemporaneidade) e o segundo branco para representar a cor branca em oposição à preta. PUC-Rio - Certificação Digital 1412284/CA

visto na subseção 2.2.4. Porém, a personagem do cinema é muito diferente daque-la do livro, que é uma pessoa ameaçadora, vaidosa, irritadiça, autoritária, rabugen-ta e, por vezes, punitiva. Será que a imagem “edulcorada do original” (Vasconce-los, 2014, p. 185) disseminada pela Disney afetou, consciente ou inconsciente-mente, o trabalho do tradutor? Qual a força dessa imagem e como ela afeta a LIJ? O trecho a seguir parece sugerir que Grieco suavizou a personagem, dando a ela características mais positivas, enquanto Terron se manteve próximo ao origi-nal (meus grifos):

Mary Poppins’s head came out of the top of the nightgown. She looked very

fierce. (M.P., Travers, 1997, p. 13)

A cabeça de Mary Poppins apareceu no alto do camisolão. Uma cabeça erguida e

cheia de altivez. (M.P., Grieco, 1967, p. 22)

A cabeça de Mary Poppins apareceu no buraco da camisola. Parecia estar muito

brava. (M.P., Terron, 2014, p. 26)

A tradução de Grieco do próximo trecho mostra ainda melhor essa suaviza-ção de Mary Poppins ao optar por traduzir very vain (Travers), ou seja, muito vai-dosa (Terron), como um pouquinho faceira. Além disso, em Travers e Terron Mary Poppins tem certeza de sua ótima aparência, enquanto em Grieco a persona-gem é mais modesta, e a certeza vira uma opinião pessoal (meus grifos):

(…) Besides, Mary Poppins was very vain and liked to look her best. Indeed, she

was quite sure that she never looked anything else. (M.P., Travers, 1997, p. 15)

(…) Mary Poppins, além disso, era um pouquinho faceira, gostava de boa apa-rência. (E, em sua opinião, sua aparência era sempre a melhor possível.) (M.P., Grieco, 1967, p. 24)

(…) Além disso, Mary Poppins era muito vaidosa e gostava de estar vestida sem-pre da melhor maneira possível. Assim, ela tinha a certeza de nunca se parecer com nenhuma outra pessoa. (M.P., Terron, 2014, p. 29)

O trecho a seguir corrobora a sugestão anterior de que Grieco “adocicou” a personagem principal, embora Terron tenha se mantido mais próximo ao texto de Travers (meus grifos):

And that, when you think how very much she liked raspberry-jam-cakes, was

ra-ther nice of Mary Poppins. (M.P., Travers, 1997, p. 18)

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(E quem soubesse o quanto Mary Poppins gostava de bôlos com geléia poderia imaginar até onde ia a bondade de seu coração.) (M.P., Grieco, 1967, p. 26)

E isso, se você pensar no quanto ela gosta de tortas de geleia de framboesa, foi

muito gentil da parte de Mary Poppins. (M.P., Terron, 2014, p. 32)

Por fim, a suavização das características de Mary Poppins está nos detalhes da tradução de Grieco, conforme pode ser observado no texto complementar a seguir (meus grifos):

“How often does your Uncle get like that?”

“Like what?” said Mary Poppins sharply, as though Michael had deliberately said something to offend her. (M.P., Travers, 1997, p. 41)

─ Êle faz isso muitas vêzes, Mary Poppins?

─ Meu tio? Faz o quê? ─ indagou Mary Poppins com um tom meio severo, co-mo se a pergunta de Miguel a tivesse insultado. (M.P., Grieco, 1967, p. 34)

─ Com que frequência o seu tio fica daquele jeito?

─ De que jeito? ─ perguntou Mary Poppins com secura, como se Michael tivesse dito algo para ofendê-la. (M.P., Terron, 2014, p. 55)

Estando a LIJ sujeita às restrições do sistema educacional, qual seria a ima-gem de babá construída pelos leitores do contexto brasileiro: alguém muito autori-tária, zangada e fútil (conforme sugere o texto de Traves e Terron) ou alguém se-vera, mas gentil, que gosta de se cuidar e tem um enorme coração (conforme su-gere o texto de Grieco)? Uma babá assustadora, embora cheia de fantasia, ou ado-rável, porém misteriosa?

Levando-se em consideração que o livro de Grieco foi publicado em 1967 logo após o lançamento do filme dos Estúdios Disney em 1964 no Brasil, pode-se pensar que o tradutor estivesse, de alguma forma, relacionado a essa imagem, em-bora informações a esse respeito não tenham sido obtidas. Além disso, a quarta capa do livro traduzido por Grieco não deixa dúvida sobre a grande popularidade e influência da imagem cinematográfica, pois a capa contém uma foto de Julie Andrews interpretando a Mary Poppins do cinema, conforme já citado na subse-ção 2.2.2. Assim, a presença do filme provavelmente ajudou a aumentar as vendas do livro no mercado. E provavelmente essa mesma imagem influenciou Grieco na tradução dos trechos anteriores, bem como a percepção cultural sobre as caracte-rísticas pedagogicamente adequadas a uma babá.

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Já Terron, em contrapartida, afirma que sequer assistiu ao filme antes de fa-zer a tradução, tendo partido do fa-zero para compor a personagem30. Embora, na verdade, ninguém parta estritamente do nada, talvez Terron tenha composto sua Mary Poppins sujeito a menos influências imagéticas externas. O contexto de 2014 do lançamento do livro está bastante distante daquele da imagem cinemato-gráfica de Mary Poppins dos Estúdios da Disney. A maioria das crianças do sécu-lo XXI provavelmente nem viu o filme.

A concepção de tradução de LIJ aponta para uma experiência “intrinseca-mente ligada à noção de criatividade” (Azenha, 2005, p. 385), indicando que, “nesse domínio, todos os textos traduzidos são, forçosamente, recontados e adap-tados ao seu ambiente de recepção. Trata-se aqui, em suma, de uma questão de grau e não de natureza” (ibid, p. 379). Esse pensamento sugere a existência de diferentes graus de reescrita entre tradutores de épocas e contextos distintos, desde que se entenda a tradução como recriação: “a tradução de LIJ é um campo fértil em que o tradutor é convidado, continuamente, a recriar” (ibid, p. 379).